Não existe conciliação com o fim do mundo
Os leilões de blocos de petróleo, o desenvolvimentismo e a necessidade de um programa transitório que avance rumo ao ecossocialismo e ao decrescimento
Foto: Refinaria de petróleo Alberto Pasqualini, na cidade de Canoas. (UFRGS/Reprodução)
Via Juntos!
Nesta semana, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) e o governo federal realizaram o quinto ciclo da oferta permanente de concessão para a exploração de petróleo no Brasil. A partir de uma lógica gananciosa de leiloar 172 blocos de petróleo, as nove empresas vencedoras do leilão desembolsaram mais de R$989 milhões pelo direito de explorar essas áreas. Estão vendendo a foz do Amazonas por petróleo e gás. Em meio à crise climática cada vez mais aguda e a iminência da realização da COP 30 em Belém do Pará é fundamental debatermos o significado da exploração de petróleo na Foz do Amazonas e a entrega dessa exploração para empresas privadas.
O questionamento que nos fica é: de que lado está o governo Lula? É a primeira vez que os blocos de petróleo na Margem Equatorial entram nesse modelo de concessão, e a inclusão de 47 novos blocos representa uma ameaça grave à região, que coloca em risco o futuro e os direitos de cerca de 13 mil indígenas e populações tradicionais, mas não é a primeira vez que o governo promove e defende a exploração que terá resultados catastróficos para o meio ambiente.
Um dos argumentos usados pelos desenvolvimentistas, inclusive da esquerda, é que a Margem Equatorial pode ser um “novo pré-sal”. Nada mais equivocado: já foram perfurados 94 poços na Foz do Amazonas e apenas em 2% deles foram notificados a descoberta de petróleo – muito longe dos 100 bilhões de barris de petróleo das reservas do pré-sal. Mais greve ainda, o empreendimento é também um risco direto à biodiversidade local: animais marinhos podem se afastar da região por conta dos ruídos, luzes das embarcações e sonda de perfuração; os mangues e recifes podem ser destruídos com as perfurações e com vazamentos de fluídos de petróleo.
Esse leilão ocorre a apenas cinco meses antes da COP 30, que será sediada na Amazônia, onde o governo colocava como promessa de campanha tornar o Brasil uma liderança ambiental. Porém, o que está colocado é uma grande contradição que expressa o cerne dos interesses governistas e a incapacidade de uma saída socioambiental a partir do desenvolvimentismo. De um lado o governo argumenta que os recursos financiarão a transição energética, mas na verdade sabemos muito bem a quem interessa vender a foz do Amazonas e o território brasileiro. Não se trata apenas de emissão de carbono ou do petróleo, mas sim de injustiça. Ao leiloar a floresta e a vida amazônica, o governo leiloa também os direitos dos povos originários.
É preciso compreender que o projeto que hoje leiloa poços de petróleo parte da mesma concepção que aprovou recentemente o desmonte do licenciamento ambiental no congresso nacional. A verdade é que querem dinheiro fácil e lucro acima de qualquer custo, e o projeto de destruição é justamente esse: acabar de vez com o licenciamento ambiental para construir estradas e empreendimentos e abrir espaço para o agronegócio e petroleiros.
Desenvolvimentismo: etapismo do fim do mundo
A defesa que Lula está fazendo de explorar petróleo na foz do Amazonas não tem início neste ano. Na verdade, a defesa que beira o negacionismo ocorre já há bastante tempo e ignora alertas do Ibama, de ambientalistas e demais áreas técnicas do governo. Chega ao absurdo de chamar de “lenga lenga” os relatórios e avisos do Ibama que classificam a exploração de petróleo na região como de “máximo risco”. As declarações não surgem do nada, estão ancoradas em dois problemas fundamentais desse governo com relação à questão climática: um apego à uma concepção antiquada da esquerda, o desenvolvimentismo; e a necessidade de atender às pressões do capital para sustentar seu esquema de governança pautado na “conciliação” de classes. Tudo isso reforça o capitalismo fóssil, em que a lógica do lucro justifica a exploração do meio ambiente desenfreadamente, enquanto é a classe trabalhadora que é condenada a lidar com as consequências disso.
O desenvolvimentismo possui uma história própria dentro da esquerda que remonta à um importante debate: o quão desenvolvido deve estar as forças do capital, sua produção e sua lógica de reprodução (incluindo o pleno estabelecimento da divisão social e política das classes) para que seja possível operar uma superação do sistema e a socialização destes meios de produção em um modelo socialista? Vejamos por outro ângulo. Marx e Engels haviam estipulado, analisando as contradições do capitalismo, que os frutos de sua superação se encontravam dentro do próprio sistema, nesse caso, da classe trabalhadora. Nessa medida, Marx tenta prever que será ou na França ou na Inglaterra que ocorreriam as primeiras revoluções, por terem o capitalismo mais desenvolvido nesses países, com a classe trabalhadora tendo se desenvolvido enquanto tal.
Mas a revolução ocorreu, primeiro, na Rússia. O elo mais frágil do capital caía, ao mesmo tempo que se via derrotada a revolução alemã, pondo dois problemas sérios aos bolcheviques: (1) como realizar uma revolução socialista em um país de maioria camponesa e com uma classe trabalhadora reduzida a poucos milhares, despedaçados pela guerra civil? (2) que tipo de riqueza poderia ser socializada para atender as necessidades do povo, uma vez que, isolada, a URSS não era autossuficiente? Problemas complexo que deram origem aos principáis debates da esquerda revolucionária pós-1917, que estão na origem do que levaria a perseguição de Trotsky e o assassinato de milhares de comunistas na era stalinista após a morte de Lenin.
Mas havia um consenso entre os bolcheviques: frente aos dois problemas elencados acima, era necessário buscar desenvolver economicamente a URSS para dar capacidade de socialização de sua produção e para o fortalecimento da classe trabalhadora. A formulação da NEP está intimamente conectada com isso. Inclusive por tais aspectos levantados até aqui que a dicotomia que posteriormente se levantou entre internacionalizar a revolução e a tese do “socialismo em um só país” se faz de maneira falaciosa, como se Trotsky e a OE (Oposição de Esquerda) fossem contra o desenvolvimento produtivo interno. A questão, porém, era a redução da estratégia bolchevique à uma leitura esquemática e etapista que, posteriormente ao exílio e/ou assassinato dos membros da OE, se tornou linha oficial da III internacional sob comando de Stalin. Essa política oficial teve consequências fundamentais para os Partidos Comunistas da III Internacional na periferia do capitalismo – no Brasil, por exemplo, durante boa parte do século XX, o PC defendeu que nosso país era caracterizado por um modo de produção feudal e, por isso, era necessária uma aliança com uma suposta “burguesia nacional” para desenvolver plenamente as forças produtivas nacionais para depois, só então, avançar com um programa socialista.
E por que essa história é relevante para o que estamos debatendo? Pois, quando debatemos a questão do aumento da capacidade produtiva brasileira, é justamente em termos extremamente similares que é dado o debate, de forma mecânica. A linha oficial da III Internacional do etapismo e de confiança na “burguesia nacional” para desenvolver as forças produtivas ainda está impregnada no imaginário da esquerda quando defende-se que o desenvolvimento e proteção da indústria brasileira seria o mesmo que garantir a soberania do Brasil frente ao mundo, e que, posteriormente, isso daria capacidade de resolver nossos problemas internos.
É justamente esse pensamento que é reproduzido quando Lula diz: “A gente não pode saber que temos uma riqueza embaixo de nós e a não vamos explorar, até porque é dessa riqueza que a gente vai construir a famosa e sonhada transição energética.” O discurso do presidente não só está impregnado com um nacionalismo que esquece que as riquezas não serão “nossas”, mas sim de acionistas de uma empresa que vêm praticando uma política de preços que não beneficia o povo brasileiro, mas também reproduz a mesma lógica etapista em um modelo “primeiro a gente enriquece, depois a gente resolve o problema”.
Bem, se pensássemos o Brasil como um território que, ao se isolar, se isolaria do mundo todo, essa lógica faria sentido. Mas fazemos parte do mundo, e somos, não apenas por princípio, mas pela necessidade de combater um sistema mundial, internacionalistas. Se assumirmos que para o Brasil garantir sua soberania, seja agora, seja na eventualidade de uma revolução, precisamos desenvolver mais nossas forças produtivas, mesmo que isso signifique colocar em risco zonas como a foz do Amazonas, então, também defenderemos isso para todos os demais países do sul global? Nossa linha seria “Países do sul, enriquecei-vos?” Repetiremos a máxima trumpista do “drill, baby, drill” para todas as nações?
Também não podemos deixar passar uma imensa contradição – a quem esse petróleo está a serviço? Como se não bastasse todas as incongruências colocadas até aqui, o petróleo brasileiro hoje abastece tanques e aviões de Israel para atacar palestinos e iranianos. O principal produto exportado do Brasil ao regime israelense em 2024 foi o petróleo, e embora o governo tenha feito declarações contra o genocídio em Gaza, ainda nao houve o rompimento comercial e economico com Israel. Não aceitaremos que nosso petróleo sirva de munição e abasteça a limpeza étnica contra o povo palestino
Conciliação e destruição
Em que pese o arcabouço ideológico que é mobilizado para justificar a perfuração na Foz do Amazonas, os motivos para o governo estar batalhando e até mesmo se desgastando com esse assunto não se resume ao pensamento desenvolvimentista. A insistência de Lula com essa operação ecocida encontra seus ecos na lógica de conciliação com a burguesia promovida abertamente pelo governo como, segundo ele, meio para construir “governabilidade”.
A Petrobras é hoje uma empresa de capital misto, onde mais da metade de suas ações estão em mãos privadas, sem o governo perder controle sobre a empresa. Segundo a própria Petrobras, 44,98% da composição acionária está nas mãos de “investidores não-brasileiros” (!!), 37,06% com o “grupo de controle” e 17,96% com “Investidores brasileiros”. Ou seja, a Petrobras hoje está longe de ser uma empresa livre das pressões e disputas do capital internacional. Não à toa o governo Lula não rompeu com a vinculação de preço internacional ao preço da gasolina internamente, medida que serve única e exclusivamente para garantir o lucro destes acionistas privados.
Assim, na lógica da conciliação, não há enfrentamento à essa lógica entreguista. O próprio governo parte de uma leitura extremamente parcial e formalista de que não há correlação de forças para qualquer luta, portanto abaixa as bandeiras de luta e atua conscientemente para calar quaisquer críticas que venham a surgir. Nessa lógica, figuras como a da Marina Silva são um problema, pois tencionam essa relação de submissão aos interesses do capital em suposta harmonia com o governo.
A conciliação parte desse pressuposto, de que só é possível governar preservando uma tentativa de harmonia com a burguesia com o argumento de “fazer o possível” diante da correlação de forças. A questão é que há dois problemas fundamentais com esse pressuposto: 1) a correlação de forças é disputável, não é um dado da realidade imutável dado pela ocupação de cadeiras no congresso; pelo contrário, processos de mobilização alteram a correlação, como já vimos em tantos exemplos na história do nosso país; e 2) Não há conciliação com interesses opostos. De um lado está o direito do povo e da natureza em existir, de outro a sanha exploratória predatória que aceita acabar com o mundo, mesmo que isso signifique a extinção da vida se isso significar aumento nas taxas de lucro.
O que vemos, pelo contrário, é um governo que acaba por ele mesmo aplicando as medidas que a direita sonha em aplicar. Seja realizando uma política econômica neoliberal simbolizada pelo arcabouço fiscal e pelo déficit 0, seja nesse caso da Foz do Amazonas, ao invés de usar o espaço institucional conquistado para denunciar e organizar a luta capaz de vencer a pressão do capital, usa-se de tal espaço para amordaçar e taxar de colaboracionista com a extrema-direita quem crítica tais medidas. Na nossa opinião, é justamente o sentimento de decepção e traição que tais medidas geram com a base que elegeu o governo que alimenta e fortalece o fascismo no Brasil.
Por uma alternativa que supere o desenvolvimentismo e avance no decrescimento com a força da nossa classe
Em meio à crise de representação da esquerda, do avanço da extrema-direita em um cenário de crise e monopólio do neoliberalismo no debate econômico, é fundamental para uma nova esquerda fazer o debate das questões ambientais não mais como setorizadas do todo, mas como parte orgânica e fundamental da realidade cada vez mais em crise que vivemos. A exploração da natureza “sem custos imediatos” segue a lógica, por exemplo, da exploração do trabalho reprodutivo não remunerado, também “sem custos imediatos”. É a população racializada, em especial da periferia do capitalismo, que é obrigada a lidar com as consequências das ações dos bilionários. São os trabalhadores precarizados, como ambulantes e entregadores de aplicativo, que são submetidos a respirar um ar cada vez mais poluído porque precisam trabalhar ao ar-livre.
Diante da generalização das consequências da crise ambiental, apresentar uma alternativa de futuro significa também apresentar uma nova relação com o nosso planeta que não passe pela ideia apodrecida do desenvolvimentismo. Para isso, devemos partir das demandas mais imediatas da classe trabalhadora geradas pela crise ambiental, como a invasão de mineradoras em terras indígenas ou a destruição de lares pelas tempestades, para disputar consciências até o nosso programa ecossocialista, nos moldes do método dialético do Programa de Transição de Trotsky.
O programa ecossocialista não está pronto e ele só será plenamente desenvolvido com a aposta na luta social, na mobilização e no levante de todos os povos oprimidos pela exploração do trabalho e do meio ambiente. Entretanto, sabemos que ele se dá em marcos internacionais, com a força da classe trabalhadora e com o impulso da luta dos povos originários que demonstram que outros modos de vida são possíveis. Sabemos também que do jeito que está, não dá mais: decrescer em nível internacional é uma necessidade. O problema da desigualdade e da falta de acesso das populações pobres aos meios de vida que garantam uma vida digna não é um problema quantitativo de produção, mas sim qualitativo.