Recorde nos feminicídios expõe omissão do Estado
Com 1.459 feminicídios e mais de 83 mil estupros em 2024, dados do Mapa da Segurança Pública escancaram a urgência de políticas públicas com recorte de gênero e o protagonismo feminino na política
Foto: Fotos Públicas
O Brasil registrou em 2024 o maior número de feminicídios desde o início da série histórica, em 2020. Foram 1.459 mulheres assassinadas por razões de gênero, segundo o Mapa da Segurança Pública, divulgado nesta quarta-feira (11) pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Em média, quatro mulheres são mortas todos os dias em contextos de violência doméstica, familiar ou por menosprezo à condição feminina. Os dados escancaram a persistência do machismo estrutural e a insuficiência das ações estatais para proteger a vida das mulheres.
Embora o aumento de 0,69% em relação a 2023 pareça discreto, a estabilidade numérica revela uma normalização da barbárie: a taxa segue em 1,34 feminicídios a cada 100 mil mulheres. Desde 2020, o país assiste a uma escalada contínua desse tipo de crime, sem conseguir revertê-la.
Em coletiva, o ministro da Justiça Ricardo Lewandowski tentou relativizar os dados, chamando o crescimento de “insignificante” e dizendo que o índice está “estatisticamente no mesmo patamar do ano anterior”. Mas admitiu:
“O que posso dizer é que talvez a violência contra a mulher seja algo estrutural. Assim como o racismo estrutural, talvez seja uma característica absolutamente negativa, intolerável, da sociedade brasileira”.
Apesar do cenário alarmante, o ministro citou medidas como o programa “Antes que aconteça”, que destina recursos à prevenção da violência de gênero, além de iniciativas como o fortalecimento da Lei Maria da Penha, criação das “Salas Lilás” em delegacias e capacitação de profissionais da justiça.
Ainda assim, os números falam por si: os estados com maior aumento proporcional de feminicídios em 2024 foram Piauí (42,86%), Maranhão (38%), Paraná (34,57%) e Amazonas (30,43%). A Região Centro-Oeste segue como a mais letal para mulheres, com taxa de 1,87 por 100 mil, acima da média nacional. A Região Sudeste apresentou a menor taxa (1,16), mas concentrou o maior número absoluto de vítimas: 532 mulheres assassinadas.
Nos municípios, o destaque trágico ficou com São Paulo e Rio de Janeiro, ambos com 51 feminicídios em 2024. O Mapa destaca que os índices consideram a população feminina, que passou de 107 para quase 109 milhões nos últimos quatro anos.
Debate na Câmara
Na quarta-feira, a violência contra a mulher foi tópico de debate na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, que recebeu o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, para debater a segurança pública. Na ocasião, a deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS) o alertou sobre o crescimento alarmante dos feminicídios no Estado.
“Foram 72 em 2024 e outros 30 já registrados até abril de 2025. Só no feriado da Páscoa foram 10 mulheres assassinadas. Estamos com uma comissão externa, proposta por mim e composta por todas as deputadas gaúchas, para acompanhar esses crimes e exigir mudanças. Acabar com o Feminicídio é uma urgência. Precisamos tratar esse tema com a seriedade que exige e construir um estado onde as mulheres possam viver em segurança”, destaca a parlamentar.
Estupros batem recorde: 227 casos por dia
A brutalidade não se limita aos assassinatos. O Brasil também bateu recorde de estupros em 2024, com 83.114 casos registrados, o maior número dos últimos cinco anos. Isso significa que 227 pessoas são estupradas por dia no país — 86% delas, mulheres.
Nos últimos cinco anos, o crescimento foi de 25,8%. A Região Norte lidera o ranking de violência sexual com taxa de 62,44 casos por 100 mil habitantes, seguida pelo Centro-Oeste (57,73). Em números absolutos, o Sudeste lidera com 29.007 casos, com destaque para São Paulo, onde foram registrados 15.989 estupros. Já os estados mais violentos proporcionalmente são Rondônia (87,73), Roraima (84,68) e Amapá (81,96).
Para a advogada Maíra Recchia, presidente da Comissão das Mulheres Advogadas da OAB-SP, a persistência desses índices está ligada à estrutura patriarcal do Estado brasileiro.
“Existe um movimento na sociedade brasileira que nega os direitos fundamentais das mulheres, e isso está diretamente relacionado ao machismo estrutural. Outro ponto é a falta de políticas públicas adequadas ao enfrentamento da violência contra as mulheres, o que se deve à pouca participação feminina na política no Executivo e no Legislativo”, afirmou ao Estadão.
Segundo ela, há um evidente contrassenso entre a existência de leis específicas – como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio – e a baixa representatividade feminina no poder, o que dificulta sua plena aplicação.