Depoimento sobre Ernest Mandel (1923-1995), um militante internacionalista e revolucionário no pensamento e na ação
Uma homenagem nos 30 anos de falecimento do histórico dirigente da IV Internacional
Foto: Eric Toussaint, Hugo Blanco e Ernest Mandel. (CADTM/Reprodução)
Ernest Mandel um militante internacionalista e revolucionário que sempre associou pensamento e ação durante toda a sua vida. Em termos intelectuais, sua extensa produção teórica, suas numerosas análises da situação econômica e política e seus muitos artigos influenciaram uma importante geração de militantes, estudantes, pesquisadores e líderes de organizações sindicais, sociais e políticas, muito além da Quarta Internacional [QI], cuja direção Mandel fazia parte. Mandel foi um construtor de organizações. Ele dedicou tanta energia à construção da Quarta Internacional e de suas seções nacionais quanto à produção de obras teóricas e políticas. No que diz respeito à segunda metade do século XX, Mandel é um dos cerca de vinte intelectuais marxistas de estatura internacional e, entre eles, é um dos raros que souberam combinar a ação com uma elaboração intelectual criativa e inovadora, desenvolvendo conceitos originais. O que se segue foi escrito no modo de um depoimento.
Entre 1971, quando fui eleito para a direção da seção belga da Quarta Internacional, e até sua morte em 1995, estive em contato com Ernest Mandel. Os contatos se intensificaram a partir de 1980, quando fui convidado a participar da direção da Quarta Internacional, chamada de Secretariado Unificado (SU), que se reunia várias vezes ao ano por 3 a 4 dias, e do Comitê Executivo Internacional (CEI), que se reunia anualmente durante 5 a 6 dias. A colaboração se intensificou a partir de 1988, quando me tornei membro do Birô1, uma instância reduzida e permanente que preparava as reuniões do Secretariado Unificado e que se reunia pelo menos duas vezes por mês em Paris. Fiquei acompanhando os contatos com movimentos sociais e revolucionários na América Central, principalmente na Nicarágua e em El Salvador, e mais amplamente na região que se estende do México à Colômbia. Nos últimos anos da vida de Ernest Mandel, nossas relações se tornaram cada vez mais regulares e próximas, especialmente durante o período da queda do Muro de Berlim em 1989, do fim da União Soviética em 1991, da realização do 13º Congresso Mundial da Quarta Internacional no início de 1991 e a preparação e da realização do 14º Congresso Mundial em 1995, que se reuniu um mês antes da morte de Ernest Mandel. Nesse meio tempo, realizamos juntos uma missão à Nicarágua em 1992.
Conheci Ernest Mandel (1923-1995) em 1970, quando eu tinha 16 anos. Foi pouco antes dos 16 anos que decidi entrar para a Quarta Internacional, após a intervenção dos trotskistas belgas (a Jovem Guarda Socialista e o Partido dos Trabalhadores da Valônia) em uma greve de mineiros de carvão na Bélgica, primeiro em Limburg, que fica na parte flamenga do país, e depois na região de Liège, que fica na parte de língua francesa. Antes de me tornar membro do QI, eu participava ativamente das lutas no ensino médio, em solidariedade às greves dos trabalhadores, no movimento contra a guerra no Vietnã, em solidariedade à luta dos afrodescendentes pelos direitos civis nos Estados Unidos, em apoio à revolução em Cuba etc… Ernest Mandel era um dos dirigentes da seção belga da QI, ele também era um dos dirigentes da QI como tal. Eu não sabia disso quando decidi entrar para a QI. Na minha visão, considerando o que os militantes da QI haviam feito em 1968, sua direção só poderia estar sediada em Paris. Foi completamente intuitivo. Decidi, com um amigo da minha idade, ir de carona até Paris em junho de 1970 para conhecer a QI. Na primeira noite, dormimos debaixo do Pont Neuf, às margens do Sena. Em seguida, fomos nos encontrar com a Ligue Communiste. No mesmo dia, fomos a Paris para bater na porta da QI, 95 rue Faubourg Saint Martin. Quem abriu a porta foi Pierre Frank, que tinha sido secretário de Leon Trotsky, especialmente durante seu exílio na ilha de Prinkipo, na Turquia, em 1929, e que nos recebeu com grande entusiasmo. O diálogo com ele foi fascinante. Sem dúvida, ele ficou muito feliz com o fato de dois jovens adolescentes terem se apresentado para fazer parte da QI. Descobrimos então que Ernest Mandel era um dos principais dirigentes e que ele morava em Bruxelas [também na Belgica], portanto se quiséssemos conhecer o QI, bastava bater na porta dele lá mesmo.
Percebemos rapidamente que Ernest Mandel desempenhava um papel importante, embora – e isso é muito positivo – ele não fosse apresentado como “o líder” do QI. Posteriormente, pude ver por mim mesmo que a direção da QI funcionava coletivamente. Ernest Mandel nunca pretendeu ser seu líder, ao contrário de que acontece em outras organizações. Nunca o vi tentar impor algum tipo de liderança pessoal. Ele nunca procurou se beneficiar de qualquer privilégio ou prioridade nas discussões. Sua influência era o resultado de suas ações e de sua contribuição para a análise. E por ter participado de mais de cem reuniões com ele entre 1970 e 1995 que posso dizer isso sem hesitação.
Vi Ernest Mandel pela primeira vez em novembro de 1970. Ele estivera um dos palestrantes em uma importante conferência da Europa Vermelha. Foi uma conferência convocada pelas organizações da QI e, na época, foi chamada de “vinculada ao Secretariado Unificado da QI” porque há vários ramos da QI ou várias organizações internacionais que reivindicam continuidade com a IVa Internacional fundada em 1938 com a participação de Leon Trotsky (consulte Daniel Bensaid, Trotskysmos, Editora Combate). A QI, à qual me filiei e da qual Ernest Mandel era dirigente, era vista como o “Secretariado Unificado da Quarta Internacional”, ou seja, era o resultado da reunificação entre dois componentes principais da QI: a maioria dos militantes da QI na Europa (liderada pelo trio Ernest Mandel – Pierre Frank – Livio Maitan) e a seção nos Estados Unidos, o Socialist Workers Party (SWP), uma reunificação que ocorreu em 19632. Estávamos em 1970 e o Secretariado Unido havia convocado uma grande conferência de dois dias para a Europa Vermelha em Bruxelas. Participaram mais de 3.000 jovens de toda a Europa, em particular da França. Ernest Mandel, juntamente com outros oradores, como Alain Krivine [da França], Tariq Ali, um militante paquistanês que vivia na Grã-Bretanha, e Livio Maitan, da Itália, fizeram discursos muito combativos e, para alguém como eu, que tinha 16 anos, isso me deu muita convicção e, ao mesmo tempo, muita força.
Também conheci Ernest Mandel através de suas obras escritas. Como eu disse, entrei para o QI no verão de 1970 e comecei a ler os trabalhos de Mandel. Antes disso, eu havia lido vários de seus artigos no semanal La Gauche [A Esquerda], que ele ajudou a fundar em 1956. O que me convenceu a entrar para a QI, em termos de análise (além da prática e em particular a intervenção dos trotskistas belgas na greve dos mineiros e na luta contra a intervenção dos USA no Vietnã) foi um texto de Ernest Mandel intitulado “O Novo Avanço da Revolução Mundial”. Esse texto foi adotado pelo 9º Congresso Mundial da Quarta Internacional, realizado em abril de 1969 na Itália. O relatório introdutório de Ernest Mandel está disponível aqui (em francês). Esse texto destaca a dialética dos três setores da revolução mundial. Ele leva em conta os eventos de 1968, ou seja, o que aconteceu na França, que teve repercussões no resto da Europa, mas também na Tchecoslováquia com a Primavera de Praga de 1968 e a ofensiva do Tet na noite de 30 para 31 de janeiro de 1968, quando os revolucionários vietnamitas tomaram o controle provisório de Saigon, a capital do Sul (antecipando a derrota total dos Estados Unidos em 1975). Esse texto analisava o estado das lutas nos três setores da revolução mundial (os países capitalistas mais industrializados, os países do bloco oriental e os países do Terceiro Mundo) e mostrava que esses três setores estavam interconectados. Maio de 1968, o ano de 1968 e o que aconteceu em 1969-1970 foi uma demonstração clara do que tratava de um texto fundamental da QI e qual intervenção essa internacional queria ter.
E que me influenciou também em 1970 foi a leitura do Tratado de Economia Marxista3. Devorei a edição de 4 volumes de capa flexível [da edição francesa] no final de 1970, durante as férias escolares de Natal. Pouco tempo depois, li avidamente outro livro de Ernest Mandel: A Formação do Pensamento Econômico de Karl Marx, publicado em 1967 pela editora Maspero. Isso pode parecer muito precoce, mas tinha lido o Manifesto Comunista de Marx e Engels quando tinha 13 anos, em 1967, e a partir daquele ano comecei a ler vários livros sobre revoluções e, em particular, sobre a revolução chinesa, em especial, em 1967, o livro A estrela vermelha brilha sobre a China (publicado pela editora Stock em 1964 e emprestado da biblioteca do meu vilarejo) e, em 1968, China on the Move [A China em marcha], de Edgar Snow. Ao mesmo tempo, li La Chine de Mao. L’autre communisme [A China de Mao- O outro comunismo], escrito em 1966 por K.S. Karol. Depois de entrar para a Quarta Internacional, em junho e julho de 1971, li História da Revolução Russa, de Leon Trotsky. Esse livro causou uma profunda impressão em mim e me convenceu da enorme capacidade de análise dos processos revolucionários de seu autor.
Em 1971, envolvi-me profundamente com a nova seção belga da QI. Em junho de 1970, eu havia de fato entrado para uma organização juvenil chamada Jovem Guarda Socialista (JGS), que era uma organização dirigida por membros da QI e que havia rompido com o Partido Socialista Belga no final de 1964/início de 1965, quando sua liderança apoiou o fortalecimento repressivo do Estado belga. De 1968 a 1969, o JGS se via como uma organização revolucionária de jovens. Ela tinha o status de uma organização simpatizante da Quarta Internacional. A organização cresceu significativamente durante as revoltas juvenis que começaram em 1968, recrutando 150 ou 200 jovens em várias cidades belgas. Esses eram ativistas que desempenhavam um papel importante em suas comunidades, geralmente nas universidades ou, como eu, nos colégios do secundário, mas também em comunidades da classe trabalhadora. Em 1970, essa organização estava em processo de fusão com a geração mais velha organizada na Confederação Socialista dos Trabalhadores. Ernest Mandel, é claro, pertencia à geração mais velha. Ele nasceu em 1923, portanto tinha 47 anos, não era velho, mas obviamente para jovens como eu, de 16 ou 17 anos, Mandel era um ancião e um representante da geração mais velha. Essa era uma geração que havia lutado muito durante a ocupação nazista em 1940-1945 e que se tornou ativa em um movimento de esquerda dentro do Partido Socialista Belga e de sua organização juvenil. Portanto, o JGS iniciou um processo de fusão com a organização dos membros mais antigos, que tinha uma grande presença da classe trabalhadora nas fábricas, especialmente na minha cidade natal, Liège, na indústria siderúrgica. No final de 1970, participei do último congresso da JGS, realizado em Ghent, que aprovou a fusão4. Em maio de 1971, o congresso de fusão foi realizado em Liège, que era um dos locais mais importantes para o que viria a ser a nova seção belga da QI. A Ligue Révolutionnaire des Travailleurs (LRT, Liga Revolucionária dos Trabalhadores) nasceu, portanto, da fusão da JGS com a Confederação Socialista dos Trabalhadores, que reunia três organizações: na Valónia, o Parti Wallon des Travailleurs, em Bruxelas a Union de la Gauche Socialiste e a Revolutionaire Socialisten, e na região flamenga, com o seu jornal De Socialistische Stem (que mais tarde se tornou Rood). Em maio de 1971, houve então o congresso de fusão. Ernest Mandel esteve ativamente presente neste congresso de fusão. Havia delegados internacionais como Alain Krivine, da Ligue Communiste, a secção francesa da Quarta Internacional, e Livio Maitan, membro do secretariado unificado da Quarta Internacional e dos Groupes Communistes Révolutionnaires, a secção italiana da Quarta Internacional. Éramos uma organização de cerca de 350 pessoas (poderíamos até dizer que éramos quase 500) com uma grande base de trabalhadores da indústria e uma boa presença nas universidades flamengas, bruxelenses e francófonas, bem como nas escolas secundárias. Fui eleito para o Comité Central sendo o membro mais jovem. Ainda nem sequer tinha 17 anos. Penso que havia pouco mais de 30 membros. Havia operários industriais que tinham aderido sobretudo depois da grande greve do inverno de 1960-1961. Havia camaradas que tinham aderido à QI, como Ernest Mandel, antes da Segunda Guerra Mundial e que tinham participado na Resistência: Emile Van Ceulen (1916-1987), antigo operário dos curtumes que aderiu à organização trotskista em 1933, René Groslambert, antigo tipógrafo, Pierre Legrève (1916-2004), membro da organização trotskista desde 1933, professor, eleito deputado da União da Esquerda Socialista de 1965 a 1968, muito ativo no apoio à revolução argelina5 e na solidariedade com os presos políticos em Marrocos. Havia trabalhadores industriais que desempenhavam um papel fundamental na indústria siderúrgica de Liège e na indústria vidreira de Charleroi e Mons. Havia também intelectuais de renome. Ao lado de Ernest Mandel, havia, por exemplo, o jurista Nathan Weinstock que, em 1969, publicou um livro notável e corajoso intitulado Le sionisme contre Israël [O sionismo contra Israel] na editora parisiense Maspero. E o CC, que se reuniu 15 dias ou três semanas depois desse congresso, elegeu-me para o Bureau Político. Digo isto porque foi no Bureau Político que tive o primeiro contacto direto com Ernest Mandel e com a sua companheira, Gisela Scholz (1935-1982), uma camarada alemã que desempenhou um papel importante na QI. Em 1971, Mandel tinha 48 anos, a sua namorada era doze anos mais nova e pertencia à geração da esquerda revolucionária alemã, amiga de Rudi Dutschke (1940-1979)6, conhecido como “Rudi o Vermelho”.
Neste BP, havia uma série de militantes mais jovens em relação á geração do Ernest Mandel. Entre as principais figuras desta geração mais jovem tinha François Vercammen, Eric Corijn, Denis Horman e Jan Vankerkhoven. Havia mulheres na casa dos quarenta: a advogada de Liège, Mathé Lambert, a jornalista de Bruxelas, Doudou Neyens, etc. Tinha também o urologista Jacques Leemans. François Vercammen (1944-2015) e Eric Corijn (1947- ) eram cerca de dez anos mais velhos do que eu, e quando se tem 17 anos e se enfrenta alguém com 27, eles são “velhos”. Tal como a Gisela, que tinha 36 anos, era “velha” para mim. Com isso, tínhamos um BP e um CC em que havia 3 ou 4 gerações políticas diferentes e foi aí que passei a conhecer melhor Ernest Mandel. O Bureau Político reunia-se todos os sábados em Bruxelas. Apreciei não só o seu conhecimento histórico e político, a sua contribuição teórica com um livro como Tratado de Economia Marxista, mas também o seu comportamento num órgão dirigente de uma organização em pleno desenvolvimento, confrontado com circunstâncias de radicalização de sectores inteiros da população, na classe operária industrial, nos serviços públicos e entre os jovens, e com métodos de ação radicais.
Na sequência do maio de 68, as organizações do QI foram capazes de se defender da repressão policial, logo de se preparar para tanto. Tínhamos desenvolvido uma capacidade de autodefesa. Estávamos também preparados, em determinadas circunstâncias, para participar em ações dirigidas contra símbolos muito claros do imperialismo, por exemplo, os Estados Unidos e o seu papel abominável no Vietname. Em 1970, o Vietname estava sob as bombas americanas, o napalm era muito utilizado, mas também fizemos ações contra os símbolos da ditadura de Franco, os símbolos da junta dos coronéis gregos. Estou falando de 1970, 1971, portanto a Espanha franquista estava muito presente e havia uma comunidade espanhola, muitos deles republicanos ou filhos de republicanos, que tinham se exilados de Espanha entre 1936 e 1939, vítimas do regime de Franco. Havia também uma comunidade grega, sobretudo entre os mineiros de carvão, que se opunha ao regime dos coronéis gregos. No final dos anos 60, na Argentina, uma importante organização de guerrilha juntou-se à IVa Internacional: o Partido Revolucionário dos Trabalhadores-Exército Revolucionário do Povo (PRT-ERP), inicialmente conhecido como PRT Combatiente. Tratava-se de uma organização muito forte que se reivindicava tanto da Quarta Internacional como de Guevara e Castro, dos revolucionários vietnamitas e da revolução chinesa. O principal dirigente do PRT-ERP era Mario Roberto Santucho (1936-1976). Ele esteve presente em Paris em maio de 1968, em na ocasião entrou em contato com a Juventude Comunista Revolucionária, (que mais tarde se tornou a Liga Comunista). No quarto trimestre de 1972, Mario Roberto Santucho teve um longo encontro com Ernest Mandel (na casa de Mandel, em Bruxelas), Daniel Bensaïd e Hubert Krivine. Santucho, que tinha conseguido escapar da prisão de Rawson, na Patagónia, quatro meses antes, estava prestes a regressar à Argentina para assumir a direção da luta armada7. Durante esta reunião, os participantes constataram que havia grandes divergências quanto à forma de travar a luta armada e, em outubro de 1973, o PRT-ERP anunciou a sua separação da Quarta Internacional.
Um exemplo do tipo de ação em que participei: em abril de 1970, houve uma grande manifestação em Bruxelas para protestar contra a guerra no Vietname, contra a NATO e contra as armas atómicas. Penso que havia entre 6.000 e 7.000 manifestantes e a JGS, a organização trotskista da juventude, tinha decidido convencer um sector da manifestação a ultrapassar o percurso oficial da manifestação, a invadir a Estação do Norte, em Bruxelas, e a aproximar-se o mais possível, seguindo os trilhos, dos edifícios onde se encontrava a sede da NATO para denunciar a sua ação. Em abril de 1970, ainda não tinha 16 anos, mas já participava nas atividades da JGS, nomeadamente após a intervenção da organização na luta dos mineiros. Vivia num vilarejo mineiro da região de Liège. Éramos centenas de pessoas a participar nesta transbordamento, talvez mesmo 1.000. Não chegamos até o quartel-general da NATO, mas estivemos muito perto e, quando saímos das ferrovias, fomos severamente reprimidos pelas forças da repressão. Quando estava a ajudando um outro jovem que tinha sido ferido na sobrancelha – ele estava perdendo bastante sangue – fui severamente espancado pelos gendarmes e depois detido e levado para uma delegacia da polícia. Por fim, apesar de ter sido detido por participar numa manifestação não autorizada e de ter sido interrogado durante horas, não fui processado porque, na altura, não tinha 16 anos. Na época, não era possível processar um jovem com menos de 16 anos por este tipo de “delito”. Não fui condenado, apesar de os gendarmes me terem acusado de ter batido e ferido um dos seus colegas, o que era completamente falso. Este episódio me ensinou a lidar com a polícia quando interrogado, me ensinou uma atitude simples: assinar uma declaração dizendo que não tinha nada a declarar. Isto é muito importante quando se tenta evitar uma ação judicial. Menciono esta experiência porque, ao ler a biografia de Ernest Mandel8, fiquei sabendo que Gisela Scholz, que tinha 35 anos em abril de 1970, foi uma das organizadoras deste transbordo e da manifestação contra a guerra no Vietname e que ficou muito contente com a nossa capacidade de organizar esta ação contundente, ainda que, infelizmente, não termos conseguido chegar ao quartel-general da NATO. Eis o que Gisela Scholtz escreveu a um dos seus camaradas da altura, comentando uma ação semelhante em Bruxelas, um ano antes: “Então os cavalos, os blindados, vieram com tudo. (…) Lutámos o mais que pudemos e nos orgulhamos do fato de só alguns entre nós terem ficado feridos. No máximo, 40 ficaram ligeiramente feridos e um gravemente (…) Dois gendarmes me atiraram para cima de um carro, mas felizmente consegui amortecer a queda”9.
Uma anedota significativa sobre a minha relação com Ernest Mandel e as questões da repressão e da segurança. Em setembro ou outubro de 1973, fui chamado a Bruxelas, na casa de um velho militante da IVa Internacional, para responder a perguntas sobre a segurança da secção belga. Ernest Mandel e Hubert Krivine estavam presentes na reunião. De que se tratava? Mandel e Krivine me perguntaram se eu estava colocando em perigo a organização consumindo e vendendo drogas. Respondi que não e tudo correu muito bem, sem a mínima irritação ou tensão.
Como é que Mandel e Krivine chegaram a me convocar para uma reunião num local discreto, quando estavam muito ocupados com questões sérias como a direção do PRT-ERP na Argentina, a interdição da Ligue Communiste em França em junho de 1973, o alargamento da IV Internacional… Eis a minha explicação: a partir de 1972, estive na mira da polícia belga. Isto está diretamente relacionado com a minha participação na direção da LRT. Em fevereiro de 1972, no salão académico da Universidade de Liège, presidi uma conferência do LRT em que demos a palavra a um representante do IRA (Exército Republicano Irlandês), apesar da decisão do ministro socialista da Justiça e do Governo Alfons Vranckx10, de nos impedir de o fazer. O LRT tinha organizado cinco reuniões nas cinco principais cidades universitárias e, de cada vez, a polícia não conseguiu prender o companheiro irlandês, que reaparecia no dia seguinte noutra cidade11. Em Liège, havia mais de 500 pessoas. Conseguimos evitar a prisão do camarada irlandês, apesar de uma intervenção impressionante da polícia, que se sentiu humilhada por um bando de jovens e ficou muito zangada conosco, e comigo. Em setembro de 1972, algumas semanas depois de ter feito 18 anos, fui chamado à Polícia Judiciária de Liège. O oficial da PJ que me interrogou ameaçou me intimar por estupro de uma menor. Pura armação: estava namorando uma moça poucos meses mais jovem e tínhamos relações sexuais. Quando cheguei aos 18 anos, virei maior de idade e “por tabela” potencial culpado de estupro de uma menor, porque uma menor não podia ter consentimento. Quando protestei, o delegado me disse que o Ministério Público lhe tinha pedido para me intimar e abrir um processo contra mim por estupro, porque eu pertencia ao birô político da LRT e à direção da Socorro Vermelha Internacional, consideradas organizações que punham em perigo a segurança do Estado. O delegado disse que se eu cooperasse, fornecendo informações confidenciais sobre estas duas organizações, a acusação de estupro seria retirada. Me recusei a me tornar informante e, quando saí da sua sala, ele estava furioso e ameaçou me arranhar (sic!). No dia seguinte, a polícia se apresentou na casa do meu irmão, depois na casa dos meus pais e, por fim, na casa de uma amiga jornalista para nos intimidar. Relatei esses fatos no jornal La Gauche de 22 de setembro de 1972, página 3.
Apresentei uma queixa por invasão de privacidade e a PJ nunca mais me convocou. Os meus advogados cometeram o erro de não pedir uma indemnização financeira, o que permitiu que o Ministério Público não desse seguimento à minha queixa.
No final de 1972 e início de 1973, me tornei líder e porta-voz de um movimento muito poderoso nas escolas secundárias. De acordo com os números da polícia, 160.000 alunos do ensino médio entraram em greve e se manifestaram em todo o país contra uma proposta de serviço militar obrigatório para jovens de 18 anos. Alguns meses depois da Bélgica, o mesmo tipo de medida levou a um grande movimento de protesto na França (conhecido como movimento contra a lei Debré). O governo e seu Ministro da Defesa Nacional acusaram o LRT de manipular estudantes do ensino médio. Devido ao meu papel no movimento ao lado de outros membros do LRT, o desejo da polícia de me causar problemas foi reforçado. Na primavera de 1973, fiquei sabendo por um amigo mais velho que não tinha nada a ver com o LRT que a polícia estava tentando me denunciar por tráfico de drogas. Esse amigo me disse que era um informante da polícia. Ele me disse que a polícia estava tentando fazer com que ele testemunhasse contra mim. Ele acrescentou que, durante as prisões, a polícia mostrava minha foto a jovens pegos usando drogas e detidos temporariamente na prisão para que me denunciassem como traficante de drogas. Aconteceu que um membro da LRT era assistente social e compareceu aos interrogatórios na prisão. Ao ver minha foto entre as de traficantes, ele realmente acreditou que eu estava colocando a organização em risco e talvez eu mesmo fosse um traficante. Ele passou as informações para a organização sem me dizer nada. É por isso que tive de responder a Ernest Mandel e Hubert Krivine. Acho que Ernest e Hubert se comportaram muito bem comigo enquanto estava alvo de acusações infundadas. Mais tarde, a polícia, em particular a BSR (Brigade de Sécurité et de Recherche), tentou de novo me transformar em informante, oferecendo-me informações confidenciais sobre grupos neonazistas em minha região, com a condição de que eu lhes desse informações sobre a LRT e a Quarta Internacional. Acabaram desistindo, mas me mantiveram constantemente em sua mira. Levaria muito tempo para resumir os vários eventos que se seguiram.
É preciso ter em mente que o ministro socialista da Justiça, Alphons Vrankx, tinha rancor dos trotskistas que haviam sido expulsos do Partido Socialista Belga em 1965 e, acima de tudo, que durante viagens aos Estados Unidos para fortalecer a cooperação entre os serviços de segurança, ele havia sido convencido pelo governo Nixon de que havia uma conexão entre as organizações de extrema esquerda e o tráfico de drogas.
O Tratado de Economia Marxista
É muito importante frisar que o seu livro “Tratado de economia marxista” foi um contraponto aos tratados de economia marxista que dominavam o pensamento “marxista” ou “comunista” da época, ou seja, os textos de economia política ou os manuais oriundos da União Soviética, ou produzidos em Pequim, que eram ao mesmo tempo dogmáticos e fracos em reflexão e método. O Tratado de Economia Marxista, que foi publicado em 1962-1963, adoptou uma abordagem genética, ou seja, percorria a história desde as suas primeiras etapas conhecidas e tentou ver a evolução das relações humanas e a forma como a economia das diferentes sociedades foi construída em diferentes momentos da humanidade. É muito claro que, para os marxistas críticos, não existem 5 ou 6 etapas pelas quais todas as sociedades teriam passado, do comunismo primitivo à sociedade de escravos, depois ao feudalismo e à pequena produção mercantil para chegar ao capitalismo e finalmente ao socialismo, ou mesmo ao comunismo. Esta ideia de etapas pelas quais passam todas as sociedades é estranha ao pensamento de Marx, que Mandel prolongava. Este fato está patente na obra de Marx de 1850-1860, nos Grundrisse e noutras obras de Marx, nomeadamente na sua correspondência de 1881 com Vera Zassoulitch12. A obra de Ernest Mandel é um trabalho instigante e renovador em relação ao modo como o marxismo tinha sido praticado até então. Ele não foi o único, claro, mas não houve muitos que seguiram a mesma abordagem e, como resultado, teve um eco muito importante para toda uma geração, a geração que me precedeu, ou seja, a geração de 1963-1964 a 1968. Pertenço à geração de 1968, uma geração que teve a sorte de viver grandes mobilizações que voltaram a colocar a revolução na ordem do dia. Esta geração, como outras antes dela, mergulhou no marxismo para tentar compreender a sociedade que nos rodeava, para tentar destruir o capitalismo e construir uma sociedade livre de todas as formas de opressão. Para destruir o capitalismo, tínhamos de compreender exatamente como funcionava, e Ernest Mandel foi uma grande ajuda para muitos militantes. No quarto volume do seu Tratado de economia marxista, analisou as sociedades em transição para o socialismo, tentando compreender e explicar a realidade do “socialismo real” e de sociedades como a União Soviética e a Europa de Leste, a degeneração de uma sociedade em transição para o socialismo numa ditadura da burocracia sem que haja qualquer restauração capitalista. No terceiro volume, tentou e conseguiu fazer entender a sociedade capitalista dos anos 50 e 60, a sociedade herdada do período de grande crescimento económico que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, apresentado como os “Trinta Gloriosos”. Mandel apresenta as características e contradições da sociedade capitalista pós-Segunda Guerra Mundial, demonstrando que as crises foram sempre uma constante na sociedade capitalista e que exigiam uma perspectiva de superação do capitalismo e uma solução revolucionária. Para saber mais sobre o Tratado de Economia Marxista na obra de Mandel, recomendo a leitura do capítulo 5 da biografia de Ernest Mandel, de Jan Willem Stutje.
Quando conheci Ernest Mandel como membro da direção belga, em 1971, ele ensinava na Universidade Livre de Berlim, aonde ia todas as semanas dar aulas a 1000 estudantes13. Tinha acabado de terminar a sua tese de doutorado, que escreveu e defendeu em alemão. Lembro-me muito bem que ele nos anunciou isso com entusiasmo numa reunião do Bureau Político do LRT, no verão de 1971. O resultado foi um livro publicado em francês em 1976 com o título Le troisième âge du capitalisme (a edição alemã tinha sido publicada em 1972, com o título Spätkapitalismus. [A edição brasileira O Capitalismo Tardio veiou em 1982]). Ernest Mandel estava então no auge da sua capacidade intelectual. Tinha muitos contatos e trabalhava muito, como se pode ver. Era também professor de ciências políticas na Vrije Universiteit Brussel (Universidade Livre de Bruxelas, sector de língua neerlandesa). Em termos de leitura, de escrita e de ação, trabalhava muitas horas por dia.
A influência de Ernest Mandel nos sindicatos
Tinha eco nos sindicatos, no mundo dos trabalhadores e entre os jovens estudantes. No mundo dos trabalhadores, nomeadamente na Bélgica, a sua influência remonta aos anos 50, pois foi um dos colaboradores mais próximos de André Renard, o principal dirigente sindical belga da ala radical do sindicalismo que reunia militantes socialistas, comunistas e trotskistas, ou seja, a Federação Geral do Trabalho da Bélgica (FGTB), que contava com mais de um milhão de membros. Dois congressos realizados em 1954 e 1956 sobre o tema “Holdings e Democracia Económica” introduziram a ideia de reformas estruturais anticapitalistas14. Mandel foi um dos inspiradores. Para André Renard, redigiu muitos documentos e foi convidado a fazer um grande número de palestras em fábricas e secções sindicais, bem como a intervir em congressos sindicais. Tinha uma grande capacidade de comunicar coisas aparentemente complicadas de uma forma simples e compreensível. Tinha também a capacidade de tentar mostrar aos seus ouvintes que era necessário agir para mudar a realidade e, por isso, utilizava com frequência exemplos do que fazer enquanto sindicatos de fábrica para lutar numa empresa transnacional, que contatos estabelecer com trabalhadores de outras sedes de fábrica, como comunicar, como tentar realizar ações conjuntas. E a questão da auto-organização e do controlo dos trabalhadores era absolutamente central15. Para Ernest Mandel, não se tratava apenas de explicar como funcionava o capitalismo, tratava-se de mostrar como os trabalhadores, com base em exemplos concretos e lutas concretas, podiam tornar-se capazes de controlar o que os patrões faziam, em particular exigindo a abertura dos livros contábeis, impondo o controlo do horário de trabalho, impondo a redução do tempo de trabalho, quando se recorria à greve, organizando-se para que a greve fosse o mais eficaz possível para obter concessões dos patrões o mais rapidamente possível. Uma greve pode alastrar-se, pode levar à conquista de direitos importantes para os trabalhadores, mas pode ir até uma greve geral, ou mesmo uma greve insurrecional, e então tratava estes temas em assembleias de trabalhadores. E, obvio. aro, formava militantes anticapitalistas e revolucionários no âmbito da LRT e das secções do QI. Era um comunicador apaixonado, um formador de alto nível. Frequentei muitos dos cursos de formação de Mandel e isso me ajudou a me tornar formador. Muitos militantes recordarão os seus cursos, a formação que deu sobre a revolução alemã, a revolução russa, sobre o que é uma greve geral, como passar de uma greve geral para uma greve ativa com ocupação, uma greve geral que conduza à criação de órgãos do poder operário, com base nas experiências mais avançadas do maio de 68 francês, do “maio rampante” italiano, mas também na experiência dos conselhos operários italianos de 1920-21, dos conselhos húngaros de 1918-19, evidentemente dos sovietes da revolução russa, dos órgãos do poder popular ou das organizações de operários e camponeses da revolução espanhola de 1936-1938/39. Mandel tinha um conhecimento profundo da história das lutas de emancipação, não apenas dos séculos XIX e XX, mas da longa história da humanidade à escala mundial, e um desejo de transmitir às gerações mais jovens o melhor que se podia aprender com essas experiências.
Os seus escritos sindicais
Ernest Mandel esteve sistematicamente atento às lutas que se desenrolavam, tanto em relação ao movimento operário do seu país, a Bélgica, e mais geralmente da Europa e do resto do mundo. Atuava nelas. Produzia enormes quantidades de artigos no semanal que tinha fundado com outros militantes anticapitalistas da esquerda do PS, o jornal La Gauche (A Esquerda), que fundou em 1956 com o apoio do sindicalista de que falei há pouco, André Renard, com quem mantinha relações cada vez mais tensas à medida que Renard adoptava uma posição cada vez mais moderada. La Gauche “tinha” também uma versão neerlandesa (Links), na qual desempenhou igualmente um papel importante. Escreveu centenas de artigos e colaborou em numerosos periódicos noutras línguas, jornais, revistas, revistas lidas por sindicalistas e académicos. Na Bélgica, produziu relatórios muito importantes para o sindicato FGTB sobre a estrutura do capitalismo na Bélgica, sobre a forma como uma série de grandes empresas capitalistas, nomeadamente holdings, controlavam a economia belga.
Escreveu um folheto que considero de extrema relevância chamado “O socialismo pela ação” que saiu assinado por André Renard e do qual foram distribuídas dezenas de milhares, se não centenas de milhares, de cópias. Foi lido por dezenas de milhares de delegados sindicais na Bélgica e teve uma grande influência sobre eles na segunda metade da década de 1950. Convém também ter em conta que, nessa altura, a Bélgica tinha sido palco de greves muito importantes. Durante a Segunda Guerra Mundial, tinha havido numerosas greves nas fábricas e resistência contra os ocupantes nazis, nas quais o jovem Ernest Mandel tinha participado (tendo sido preso três vezes pelas autoridades nazis e fugindo duas vezes). Houve a greve geral pela república, pela abdicação do rei, em 1950. Nos anos 50, houve uma grande greve dos mineiros para obter a nacionalização e uma grande greve dos trabalhadores do sector siderúrgico e metalúrgico pelo décimo terceiro mês de salário. Houve a greve geral no inverno de 1960-61, com mais de um milhão de trabalhadores em greve num país de dez milhões. Ele era como um peixe na água. Os seus laços com o movimento operário eram muito estreitos. Uma das suas prioridades era estimular uma dinâmica de auto-organização.
Após 30 anos de militância em condições difíceis, a segunda metade dos anos 60, marcada por uma profunda radicalização da juventude e da classe operária nos países da Europa, a criação em 1971 da nova secção belga da QI, a LRT, que tinha uma influência real nas fábricas, etc., havia uma dinâmica de auto-organização, Ernest Mandel podia constatar que estas propostas encontraram uma concretização sob a forma de controlo operário em várias grandes fábricas da Bélgica, nomeadamente na siderurgia de Cockerill, em Liège, e na fábrica de Glaverbel, em Gilly, uma vidraria da região de Charleroi.
Mandel e a juventude
Já referi a influência que Mandel exerceu sobre a classe operária belga nas décadas de 1950 e 1960. Esta influência estendeu-se a outros países, uma vez que os militantes operários e os dirigentes sindicais ouviram as propostas de Ernest Mandel na França, Itália, Alemanha e Grã-Bretanha, nessa época, e mais tarde na Espanha e Portugal. Também teve um impacto na juventude estudantil radicalizada na Alemanha, com o movimento estudantil anticapitalista e internacionalista SDS16, que tinha como um dos seus líderes Rudi Dutschke, com quem manteve relações estreitas entre 1966 e 1967, ou seja, antes do maio de 68. Em 1966, casou-se com uma das dirigentes deste movimento estudantil, Gisela Scholz. E, claro, teve um impacto nos jovens trotskistas franceses, incluindo os irmãos gémeos Alain e Hubert Krivine, Daniel Bensaïd, Henri Weber, Pierre Rousset, Janette Habel, Catherine Samary, Josette Trat e Janine, a sua irmã gémea, que fundaram a Jeunesse Communiste Révolutionnaire, depois de ter sido expulsa da Union des Étudiants Communistes (UEC) de França. E depois, na Bélgica, teve um impacto na juventude estudantil radical, alguns dos quais aderiram ou lideraram a JGS, que se fundiu com a Confederação Socialista dos Trabalhadores para formar o LRT em maio de 1971.
Em 1971, como mencionei anteriormente, depois de concluir sua tese de doutorado na Universidade Livre de Berlim, ele se tornou professor da Universidade Livre de Bruxelas, na seção de língua holandesa, ou seja, a Vrije Universiteit Brussel. Eu morava em Liège e, sob pressão do movimento estudantil e de professores marxistas progressistas, Mandel foi convidado a ministrar um curso de economia marxista na Universidade de Liège em 72-73-74, quando eu mesmo me tornei estudante lá, junto com outros alunos da minha geração. Entre eles estava Luc, um dos dois irmãos Dardenne, que iam se tornar cineastas liègeois de renome internacional, ganhando a Palma de Ouro em Cannes em duas ocasiões, principalmente pelo filme Rosetta. Jean-Luc Dardenne e eu assistimos às aulas ministradas por Ernest Mandel na Universidade de Liège.
Ernest Mandel em debate com outros intelectuais marxistas diante de grandes públicos
O impacta das intervenções de Ernest Mandel no período de 1967 até o final da década de 1970 deve ser enfatizado. É importante ressaltar que EM teve um eco com seus escritos. Ele debateu com grandes autores marxistas, como Perry Anderson, Ernst Bloch, Herbert Marcuse, Roman Rosdolsky, Lucien Goldman e Jean-Paul Sartre. Ele polemicou com os principais historiadores, economistas e filósofos do Partido Comunista Francês, como Charles Bettelheim, Jean Ellenstein e Louis Althusser, em debates públicos. E quando ele falava em certas reuniões, quando sua presença era anunciada, durante todo o período entre 1967 e o final da década de 1970, havia 1.000, 2.000, 2.500, 3.000 pessoas presentes. Isso aconteceu na Alemanha em 1967-68. Voltou a acontecer na Alemanha, de forma muito importante, em 1988-89, com debates com líderes comunistas críticos, como Gregor Gysi, com 3.000, 4.000 pessoas em Berlim e, se estivermos falando do período de maio de 68, uma grande reunião em 9 de maio, a noite das barricadas, em Paris, uma reunião organizada pelo JCR, com 2.500 pessoas, um discurso em 71, para a comemoração do centenário da Comuna de Paris, perto do Père Lachaise, deve ter havido cerca de 15.000, 20.000 pessoas; reuniões em Portugal logo após a Revolução dos Cravos, em 1974-75, com a presença de 2.000 ou 2.500 pessoas; reuniões na Espanha, após a queda do regime de Franco, também com a presença de 2.000 ou 3.000 pessoas; uma grande reunião que mencionei para a Europa Vermelha, em novembro de 1970, na Universidade Livre de Bruxelas, uma reunião europeia do QI, com a presença de 3.500 pessoas. Portanto, Mandel era um orador com um eco de massa na vanguarda radicalizada e era capaz de falar tanto para estudantes quanto para trabalhadores. Era fluente em alemão, francês e holandês, mas não hesitava em fazer discursos em espanhol na Espanha e na América Latina, em portuñol (uma mistura de português e espanhol) em Portugal e em italiano quando ia à Itália. Ele combinava um grande poder analítico com uma capacidade impressionante de transmitir uma análise, uma mensagem e energia em seus discursos públicos, apelando sempre para o anticapitalismo, o internacionalismo e um projeto emancipatório e revolucionário.
A Quarta Internacional
Ernest Mandel ingressou a Quarta Internacional aos quinze ou dezesseis anos de idade, em 1939, pouco antes da guerra. Ele participou da resistência desde o início da ocupação alemã e foi preso três vezes pelos nazistas. Na segunda vez em que foi preso, estava distribuindo panfletos aos trabalhadores da metalurgia em Liège, em 29 de março de 1944. Ele foi preso pelo exército alemão, levado a julgamento na prisão de St. Léonard, em Liège, e condenado a anos de trabalhos forçados. Ele teve a “sorte” de ser condenado pelo exército alemão como um combatente da resistência política e não pela Gestapo. Se tivesse sido condenado pela Gestapo, teria sido simplesmente enviado a um campo de extermínio ou executado no local. Deportado para a Alemanha no início de junho de 1944, ele escapou de uma das primeiras prisões em que foi encarcerado graças à sua capacidade de despertar a simpatia de dois carcereiros, um deles ex-membro do Partido Socialista e o outro ex-membro do Partido Comunista. Ele foi rapidamente recapturado e transferido para diferentes campos de concentração. Ele foi sucessivamente preso em seis campos na Alemanha nazista. Foi libertado em março de 1945 pelo exército americano no campo em que estava preso. A lista dos campos em que foi internado está nos arquivos alemães e foi incluída em sua biografia por Jan Willem Stutje17.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, Ernest Mandel tornou-se um dirigente da QI. Ele participou da primeira conferência europeia clandestina para relançar a QI, ainda durante a ocupação e antes de sua segunda prisão, onde se reuniram delegados belgas e franceses da QI em uma fazenda em St Hubert, nas Ardenas belgas, em fevereiro de 1944. Ele então participou do renascimento do QI após a libertação. Lá ele se tornou, junto com Michel Pablo, um dos dirigentes mais importantes do QI. Na época da libertação, ele tinha 23 anos de idade. Seu papel como líder do QI nos anos 1940-50 até o início dos anos 1960 foi ao mesmo tempo muito importante e discreto. Ele era conhecido como economista marxista pela publicação de seu Traité d’économie marxiste, foi o fundador do semanal belga de língua francesa La Gauche, foi jornalista do diário socialista Le Peuple e depois se tornou jornalista do diário sindical FGTB na Valônia, de Liège. Foi no final da década de 1960 e após sua expulsão do Partido Socialista Belga em meados da década de 1960, na esteira de maio de 1968, que ele veio a público como líder do QI e, como tal, dado seu papel no movimento internacional de estudantes e trabalhadores revolucionários, foi proibido de entrar em vários países por diversos governos, inclusive o governo francês, que o proibiu de entrar em território francês, e os governos dos Estados Unidos, Suíça, Alemanha e Austrália. No caso da Alemanha, é particularmente escandaloso porque ele havia resistido aos nazistas, tinha uma medalha concedida pelas autoridades alemãs após a Segunda Guerra Mundial por sua participação na resistência antinazista, mas foi proibido de entrar em território alemão, mesmo tendo uma tese de doutorado e intelectuais alemães antinazistas e, é claro, o movimento estudantil protestou contra essa proibição e exigiu que ela fosse suspensa. Lembro-me de Ernest Mandel me pedindo para falar em Liège quando o chanceler socialista alemão Helmut Schmidt foi à Universidade de Liège. Ele queria que eu falasse para protestar publicamente contra sua proibição de entrar em território alemão. Essas proibições não o impediram de cruzar as fronteiras. Ernest Mandel viajava muito e, apesar de sua proibição na França, atravessava a fronteira com muita regularidade e, em particular, lembro-me muito bem, como milhares de manifestantes franceses, de sua chegada à comemoração da Comuna de Paris em maio de 1971, organizada pela Ligue communiste e pela Lutte ouvrière. Havia facilmente dez ou quinze mil manifestantes e Ernest Mandel chegou para discursar na garupa de uma motocicleta dirigida por Hubert Krivine, irmão gêmeo de Alain Krivine. Algumas vezes, ele foi preso pelas autoridades francesas e levado de volta para a Bélgica e, como conta seu biógrafo holandês, em uma ocasião, quando foi deportado para a Bélgica ao chegar ao aeroporto Roissy Charles de Gaulle, no mesmo dia ele pegou o trem de Bruxelas de volta para Paris porque havia uma reunião da liderança do QI em Paris.
Na segunda parte, examinarei o relacionamento de Mandel com a revolução cubana e Che Guevara.
Continua.
Post scriptum
Depois de ter terminado este relato, recebi o seguinte comentário de Rafael Bernabe, professor universitário e senador em Porto Rico: “Quando falamos de figuras ou polêmicas com as quais Mandel teve de lidar, poderíamos incluir também a polêmica com Martin Nicolaus (tradutor inglês dos Grundrisse) sobre o imperialismo americano (publicada em espanhol pela Anagrama e também na coleção Ensayos sobre el neocapitalismo da editora ERA); a polêmica com Baran e Sweezy sobre o capital monopolista (também reunida em Ensayos sobre el neocapitalismo); a polêmica com Nicolás Krassó sobre o marxismo de Trotsky, inicialmente na New Left Review e depois em espanhol em Cuadernos Pasado y Presente, que foi amplamente lida; suas críticas a Solzhenitsyn e depois a The Alternative, de Rudolf Bahro, também publicadas originalmente na New Left Review. E, é claro, as respostas aos eurocomunistas (Enrico Berlinguer, Santiago Carrillo, Fernando Claudin) são brilhantes.
Gostaria de salientar que, entre O Tratado e O Capitalismo Tardio, Mandel insistiu em sua tese (contra integrantes da corrente dominante e da esquerda) de que nem os monopólios, nem as medidas keynesianas ou sociais, nem o planejamento “indicativo”, nem a chamada “economia mista”, nem as instituições de Bretton Woods, etc. haviam permitido e permitiriam que o capitalismo superasse suas contradições fundamentais e que, portanto, o boom do pós-guerra chegaria ao fim, como todos os booms anteriores. O resultado seria um novo ataque aos ganhos obtidos pela classe trabalhadora. Uma análise que se mostrou correta a partir da crise generalizada de 1974-75, ou um pouco antes. Em comparação com aqueles que viam o boom capitalista do pós-guerra como uma refutação do marxismo e com aqueles que, em defesa do marxismo, negavam a realidade do boom, Mandel defendia e desenvolvia um marxismo dinâmico (ortodoxo, mas não dogmático, dizia ele), capaz de explicar os novos desenvolvimentos do capitalismo com base em suas categorias fundamentais. Não havia necessidade de negar a realidade do boom ou do capitalismo em sua nova fase, nem de abandonar a análise marxista. Pelo contrário, o marxismo poderia explicar o primeiro, tanto seu surgimento quanto seus limites.
Obviamente, acho que Mandel esperava uma resposta mais ampla e enérgica da classe trabalhadora à ofensiva dos patrões…. que, depois de 1980 ou antes, não se materializou como ele esperava… e ainda estamos nessa luta….
Aqui estão meus comentários, na medida em que possam ser úteis.
Acho que as obras completas de Mandel deveriam ser publicadas um dia, ele tem um legado militante e intelectual impressionante.
Por fim, também acho admirável sua disposição constante, até o fim, de dedicar tempo para escrever textos introdutórios ao marxismo, sempre pensando não nos grandes intelectuais, mas nos ativistas que estavam começando (desde Introdução ao marxismo, que circulou muito na América Latina, até O lugar do marxismo na história, que foi o último e é muito bom).” (Fim do comentário enviado por Rafael Bernabe em agosto de 2023)
2 Também participaram da reunificação militantes da América Latina, como o líder indígena e camponês Hugo Blanco (1934-2023), do Peru, que, na época do Congresso, tinha acabado de ser preso em seu país. Também havia ativistas muito ativos na Bolívia. Sobre o Congresso de Reunificação da Quarta Internacional, consulte Livio Maitan, Pour une histoire de la Quatrième Internationale, La Brèche-IIRE, Paris, 2021. 547 páginas ISBN 9782955816851 p. 146 à 159. Consulte também a resenha Quatrième Internationale, Le Congrès de réunification de la Quatrième Internationale, edição especial do 3º trimestre de 1963, Paris, 72 páginas.
Notas
- O birô da QI entre 1988 e 1991 era composto por Ernest Mandel, Livio Maitan, Claude Jaquin, Gilbert Achcar, Janette Habel, Daniel Ben Saïd e eu. Penny Duggan participou de todas as reuniões. Após o 13º Congresso Mundial, no início de 1991, o novo executivo eleito pela secretaria unificada tinha a seguinte composição: Gilbert Achcar, Janette Habel, Phil Hearse, Claude Jacquin, Livio Maitan, Ernest Mandel, Braulio Moro e eu. Penny Duggan participou de todas as reuniões (consulte Livio Maitan, Pour une histoire de la Quatrième Internationale, La Brèche-IIRE, Paris, 2021. p. 475). ↩︎
- Também participaram da reunificação militantes da América Latina, como o líder indígena e camponês Hugo Blanco (1934-2023), do Peru, que, na época do Congresso, tinha acabado de ser preso em seu país. Também havia ativistas muito ativos na Bolívia. Sobre o Congresso de Reunificação da Quarta Internacional, consulte Livio Maitan, Pour une histoire de la Quatrième Internationale, La Brèche-IIRE, Paris, 2021. 547 páginas ISBN 9782955816851 p. 146 à 159. Consulte também a resenha Quatrième Internationale, Le Congrès de réunification de la Quatrième Internationale, edição especial do 3º trimestre de 1963, Paris, 72 páginas. ↩︎
- Primeiro volume disponível em pdf no link https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/377846/mod_resource/content/1/MANDEL%2C%20Ernest.%20Tratado%20de%20Economia%20Marxista%20Tomo%20I.pdf ↩︎
- No congresso da JGS de 1970, juntamente com outros, apoiei uma proposta de chamar a nova organização de Ligue Socialiste Révolutionnaire, em vez de Ligue Révolutionnaire des Travailleurs. Continuo convencido de que isso teria sido melhor. ↩︎
- Pierre Le Grève foi alvo de uma tentativa de assassinato com pacote-bomba como parte de suas atividades em apoio à Argélia independente pela organização La Main rouge em 1960, que tinha ligações diretas com os serviços secretos franceses. ↩︎
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Rudi_Dutschke Rudi Dutschke teve vários debates públicos com Ernest Mandel diante de grandes assembléias na Alemanha. Em setembro de 1968, ele ficou por quinze dias na casa de Ernest Mandel e Gisela Sholtz depois de um atentado contra sua vida. Consulte Jan Willem Stutje, Ernest Mandel Un révolutionnaire dans le siècle, Editions Syllepse, Paris, 2022, 454 páginas. P. 278 a 286. ↩︎
- Da biografia de Mandel por Jan Willem Stutje, Ernest Mandel. Un révolutionnaire dans le siècle, Paris, Syllepse, 2022, p. 319. ↩︎
- Jan Willem Stutje, Ernest Mandel. Un révolutionnaire dans le siècle, Paris, Syllepse, 2022, p. 319. ↩︎
- Gisela Scholtz à Ray, 13 março 1969, Archives Ernest Mandel, arquivo 652 citado par Jan Willem Stutje, Ernest Mandel. Un révolutionnaire dans le siècle p. 322. ↩︎
- Ver La Gauche do 11 de fevereiro 1972, p. 2 ↩︎
- Ver o relató sobre as três primeiras conferências (500 pessoas em Liège, 1.500 em Bruxelas, 1.000 em Louvain) no La Gauche de 11 de fevereiro de 1972, p. 5 e a entrevista exclusiva com Jerry Lawless (parte 1) p. 4 e 5 e parte 2 no La Gauche de 18 de fevereiro de 1972, p. 4 e 5. Deve-se observar que a imprensa diária, tanto da direita quanto da esquerda, deu ampla cobertura a essas conferências. ↩︎
- Karl Marx, “Carta a Vera Ivanovna Zasulitch, 8 mar. 1881”, em: Karl Marx e Friedrich Engels, Lutas de classes na Rússia (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013) ↩︎
- Jan Willem Stutje, Ernest Mandel. Un révolutionnaire dans le siècle, p. 235 ↩︎
- Sobre as reformas estruturais neocapitalistas versus anticapitalistas, ver Ernest Mandel, La stratégie des réformes de structure, 1965 http://pinguet.free.fr/mandel1965.pdf ↩︎
- Ver Ernest Mandel: controle operário, conselhos operários, … (insurgencia.org) ↩︎
- Sozialistischer Deutscher Studentenbund (União socialista alemã dos estudantes) ↩︎
- Jan Willem Stutje, Ernest Mandel… nota 142, p. 79. ↩︎