A “estratégia Milei” da burguesia brasileira
A “Via Milei”, apresentada como modelo por setores da burguesia brasileira para 2026, enfrenta seu pior momento
Setores da burguesia brasileira começaram a se articular para defender uma estratégia Milei, diante do cerco que se fecha contra o clã Bolsonaro. Na semana em que deve ocorrer o julgamento de Bolsonaro, os olhos estão postos sobre a decisão e um setor da burguesia já “cozinha” um plano alternativo, que supere o improviso de Bolsonaro, sem perder a agressividade de suas medidas.
Todo um setor quer trocar as peças para impor uma “motosserra” (símbolo do plano de Milei) sobre vários aspectos da vida social e política: uma motosserra que corte no orçamento, que destrua direitos sociais e aprofunde a devastação do meio ambiente. Cortes e cortes. Um ultraliberalismo de choque, sustentado por uma hegemonia mais “séria” e menos acidentada que os Bolsonaro.
Tarcisio é até agora, o homem que está se habilitando para encarnar a “missão Milei”. O próprio declarou isso recentemente, conforme Valor Econômico (https://www.removepaywall.com/search?url=https://valor.globo.com/politica/noticia/2025/04/28/tarcsio-diz-que-milei-mostra-caminho-para-o-brasil-na-economia.ghtml)
“Eles [Milei e assessores] estão mostrando que há um caminho, e é o caminho que a gente tem que adotar”, afirmou Tarcísio, nesta segunda-feira (28), em evento do Banco Safra. O governador, que exaltou suas medidas para reduzir custos e atrair capital privado, destacou iniciativas do presidente argentino como o corte nos gastos públicos de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) em um ano. Ele avaliou que as ações permitiram a queda da inflação, a elevação do fluxo de capital e o controle do câmbio no país vizinho.”
Com a nova situação política, onde Trump ampliou sua ingerência sobre o Brasil, esses setores da burguesia, sobretudo os ligados ao capital financeiro como os banqueiros, parte dos agroexportadores, além das empresas estrangeiras como as grandes mineradoras, sonham com o Milei brasileiro.
A questão é: será que o Milei original é capaz de entregar todas as suas promessas para os donos do dinheiro e os celerados da extrema direita mundial?
Milei: Aposta ou “cavalo-de-troia”?
A aposta de parte da burguesia brasileira pode se demonstrar imprecisa antes mesmo de se consolidar. Milei enfrenta uma importante crise política, que pode trazer fissuras em seu projeto e motivar derrotas eleitorais nas próximas semanas.
Ao contrário da aparência vitoriosa de Milei, que se autoreclama motivado pelas “Forças do céu”, sua gestão vem acumulando problemas e graves contradições que podem irromper em breve.
Apesar de ter aprovado, com a cumplicidade de setores moderados de sua oposição, várias medidas que deram certa margem de estabilidade ao longo de seus quase dois anos de governo, o resultado está longe de ser positivo.
Estamos às vésperas da eleição de meio período, onde se renova 1/3 do parlamento, antecedida pela eleição da Província de Buenos Aires (marcada para 7 de setembro), maior colégio eleitoral do país.
A mais recente crise política também foi a maior de seu mandato. Foram revelados áudios que tratavam do desvio de verbas destinada à pessoas com deficiência, por parte de um funcionário governamental, Spanuolo, com fortes suspeitas de vínculos com a irmã do presidente, Karina Milei. Isso gerou forte queda na popularidade – cerca de 7 pontos a depender do instituto de pesquisa- e desatou uma verdadeira “policrise” no governo Milei.
Além do fato de Karina ser uma figura considerada “intocável” e com influência direta sobre os rumos do governo, o escândalo de corrupção chega em momento onde a crise econômica volta a assombrar Milei. Após alguns meses, onde conseguiu conter o dólar com a combinação de um endividamento descomunal e a renovação do empréstimo com o FMI, deixando a inflação em índices controlados, novamente a tensão volta à economia. Seu plano inicial era chegar em outubro, data das eleições nacionais, com a economia “domada”, empurrando para frente as contradições, buscando uma vitória política que lhe permitisse maior estabilidade e margens de manobra. O que ocorre é quase o contrário: o dólar voltou a subir, bem como os preços, ativando novamente a pressão inflacionária, com um consumo e uma arrecadação bastante deteriorados. O anterior escândalo das “Libra$”, que mostrou Milei tirando vantagem de especulações com criptomoedas foi uma antecipação do que estaria por vir.
No “front político”, Milei amarga derrotas no congresso, onde importantes vetos foram derrubados como o do financiamento à hospitais estatais, fruto de uma luta dos trabalhadores da saúde e o orçamento das universidades.
Sem dúvidas, Milei passa pelo seu pior momento, em que pese que as dificuldades da oposição, que oscila entre um setor que muitas vezes sustenta Milei e outro que sofre com o desprestígio do peronismo. São problemas colocados para a burguesia brasileira: apostar em uma “Via Milei” quando o original pode chegar bastante debilitado para apresentar-se como modelo na eleição brasileira de 2026.
Argentina no espelho do Brasil
Há alguns anos, quando militávamos no PT, na sua ala esquerda, final dos anos noventa, lançamos um caderno que se titulava “Argentina, espelho do Brasil”. A tese principal era demonstrar como os processos se conectavam, naquela época afirmar que mesmo Menem tendo sido reeleito, havia espaço para lutas e que cedo ou tarde o esgotamento com o choque neoliberal levaria a uma mudança na relação de forças. E que isso valeria, com as guardadas proporções e devidos ajustes, para o Brasil de FHC.
E de alguma forma, tal prognóstico se efetivou: no auge dos duros anos noventa, com retração do movimento de massas, processos como os piqueteiros argentinos (iniciados na Terra do fogo e depois em Jujuy) e o crescimento do MST brasileiro(que teve como ápice a coordenação da marcha dos cem mil em 1999), indicaram que o horizonte futuro seria de embates. O Argentinazo de 2001 e a vitória de Lula em 2002 representaram pronunciamentos das massas com o neoliberalismo. No primeiro caso de forma muita mais aguda, com uma ação independente do movimento de massas; no caso brasileiro, conquistado pela via eleitoral, com mais mediações e contradições, entretanto, fazendo jus a palavra-de-ordem, Lula lá.
Queremos dizer com isso que a burguesia brasileira “acerta, errando”, ao buscar em Milei seu modelo. Sufocada pelo cerco a Bolsonaro e com dificuldades de acertar uma política de agitação mais pública diante do assédio de Trump ao país, corre para saudar o modelo do país vizinho. Contudo, podemos ter uma concordância ainda maior com a “mirada ao vizinho”. Podemos estar antecipando um processo de crise e resistência ao “ultraliberalismo” que um setor da burguesia brasileira sonha e precisa impor ao Brasil. Enquanto se discute a redução da jornada de trabalho no seio da esquerda e dos movimentos sociais, Fiesp e os bancos querem ir por mais. A questão é que a Argentina não é só Milei. É também sua crise, mesmo precoce.
E ao contrário do Brasil, onde Bolsonaro move massas, Milei não consegue colocar em pé grandes atos. E isso conta muito na tradição da política argentina. Nas últimas semanas, Milei foi escrachado por setores populares em regiões onde passou fazendo campanha, como na periferia de Buenos Aires, em Lomas de Zamora.
Mirar a Argentina, para além de Milei
Quem chegará antes? O “efeito Milei” ou sua crise?
As próximas semanas serão decisivas. As eleições, tanto da Província de Buenos Aires como as nacionais, podem dizer qual o tamanho da bronca e do mal-estar do povo argentino, que recém começa.
Por outro lado, é importante para o ativismo e a vanguarda brasileira seguimos de perto o que se passa nos próximos meses na Argentina; a crise social poderá liberar setores da classe trabalhadora argentina, motivados pela corrosão dos salários, a voltarem a protagonizar grandes batalhas e novas greves gerais? Os piqueteiros, setor social mais combatido e criminalizado por Milei vai conseguir retomar sua força, mesmo parcial? A juventude universitária que foi às ruas durante o ano de 2024 vai retomar suas lutas e será capaz de arrastar a juventude mais plebeia que votou em Milei “contra tudo” e agora se mostra arrependida?
A essas interrogantes se soma a própria dinâmica da esquerda argentina, que tem potências, reservas e debilidades, de forma muito peculiar. Suas reservas residem na enorme tradição de luta do povo argentino, na alta taxa de sindicalização do movimento operário e na capacidade de se inscrever como “nome próprio” na disputa política; suas potências incluem a combatividade dos atores sociais prioritários, que envolvem a esquerda de uma forma ou outra; suas debilidades são notadas no sectarismo de certas premissas teóricas e na incapacidade de ainda construir um projeto capaz de disputar a maioria social e trazer uma nova hegemonia diante de uma crise nacional. Por outro lado, em todas as lutas de resistência a esquerda argentina está presente.
Não houve derrota histórica. Macri tentou, de forma gradual, reverter a relação de forças estrutural, não conseguiu. Milei se creditava capaz, com as forças do céu, de impor um regime que destruísse a condição de 2001. Ainda que tenha tido vitórias parciais e colocado na defensiva o movimento de massas, com novas leis restritivas, a última palavra está longe de ser dada.
A próxima crise argentina merece ser acompanhada de perto, não só pela burguesia brasileira, mas também por aqueles que combatem a burguesia brasileira.