“Quem pode representar o destino dos bolivianos são decisões que devem ser tomadas pelos bolivianos” – entrevista exclusiva com Adriana Salvatierra
Entrevista com a ex-senadora boliviana Adriana Salvatierra sobre as eleições presidenciais, a situação política do país e a crise do MAS
Estamos às vésperas de um inédito segundo turno [1] nas eleições presidenciais na Bolívia, disputado pelo senador Rodrigo Paz (Partido Demócrata Cristiano) e pelo ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga (Alianza Libre) – ambos tiveram, respectivamente, 32,1% e 26,8% dos votos. No primeiro turno, o terceiro lugar, assim podemos considerá-lo, reservou-se ao voto nulo, que atingiu a marca histórica de 20%, para o qual o ex-presidente Evo Morales fez campanha. O empresário Samuel Doria Medina (Unidad Nacional), candidato preferencial da burguesia boliviana, apontado como favorito dias antes da votação, obteve 19,6% dos votos. As duas candidaturas ligadas ao campo do MAS, que governa a Bolívia desde 2005, sofreram duras derrotas eleitorais: Eduardo del Castillo (Movimiento al Socialismo), candidato oficial apoiado por Luís Arce, somou 3,1% [2], enquanto o dissidente Andrónico Rodríguez (Alianza Popular) alcançou 8,15%.
O escrutínio eleitoral não é suficiente para entender a situação da Bolívia, por onde passou um profundo processo de lutas populares e rebeliões de massa nos últimos 25 anos – no interior das quais o MAS se desenvolveu como instrumento político. Agora, no entanto, passadas duas décadas desde a primeira eleição presidencial vencida por Evo Morales, a acachapante derrota eleitoral do MAS [3] é sentida também como o esgotamento de um ciclo político.
Mas, afinal de contas, quais lições a esquerda no mundo tem a tomar com o ainda aberto processo boliviano? Estamos testemunhando uma derrota histórica? As reservas do povo boliviano, postas à prova em lutas populares de caráter antineoliberal e antiimperialistas, serão suficientes perante uma direção em crise? As conquistas históricas, como o Estado Plurinacional e a nacionalização de recursos naturais, serão liquidadas? Como reagirá o imperialismo sob Trump com os espaços abertos, considerando que a Bolívia tem a maior reserva de lítio do mundo? Todas as interrogações demonstram como é importante acompanhar de perto o desenvolvimento da experiência boliviana.
Nós, da Revista Esquerda em Movimento (EM), desde a divulgação dos resultados oficiais do primeiro turno das eleições bolivianas, publicamos artigos sobre o processo, buscando estimular e contribuir com os debates nos círculos de esquerda. Nesse direção, agora, estamos dando um passo adiante ao iniciar o Especial Bolívia, uma incursão na realidade desse país a partir de entrevistas com parlamentares, dirigentes sindicais e intelectuais bolivianos.
Nossa primeira entrevistada é a ex-senadora boliviana Adriana Salvatierra. Nossa entrevistada é uma das figuras importantes para entender a situação na Bolívia e o ciclo político dirigido pelo MAS nos últimos 20 anos, partido para o qual entrou aos 16 anos em 2005. Em 2019, quando a crise política ganhou contornos mais profundos, Adriana Salvatierra era presidente do senado, renunciando seu posto junto ao então presidente Evo Morales.
EM – No último dia 17 de agosto, confirmou-se um inédito segundo turno nas eleições presidenciais bolivianas. Trata-se também da primeira derrota eleitoral do MAS em uma disputa presidencial após 20 anos, se considerarmos os dois candidatos ligados ao partido. Como você analisa estes eventos?
AS – Em relação à primeira pergunta, creio que, por um lado, existe um esvaziamento tanto do capital político como dos elementos que constituíam a legitimidade eleitoral do instrumento político eleitoral que era o MAS-IPSP. E o esvaziamento do capital político vem principalmente a partir da forma como o governo de Luis Arce retorna ao poder depois do golpe de Estado, prometendo recuperar a estabilidade e o crescimento econômico — indicadores que eram conhecidos pelo povo entre 2006 e 2019.
Esses indicadores levaram mais de três milhões de bolivianos a sair da pobreza; registraram os índices mais altos de crescimento do produto interno bruto, multiplicando-o mais de quatro vezes, passando de 9 bilhões de dólares para mais de 42 bilhões de dólares; o crescimento do investimento público, que passou de 600 milhões de dólares em 2005 para níveis recordes de 6 bilhões de dólares; 80% das estradas do país foram construídas durante a gestão de Evo Morales. Tudo isso fazia parte da gestão do capital político que o governo de Evo Morales possuía, e que melhorou substancialmente as condições de vida dos bolivianos e bolivianas.
Assim, quando, depois do golpe de Estado e de um ano do governo de Áñez, assume o governo de Luis Arce, ele entra com a promessa de recuperar a economia e os indicadores que o povo conhecia — mas descumpre a promessa cinco anos depois, com políticas que, como disse Evo Morales em seu momento, foram de contração econômica, ao impor um teto ao investimento público, que não superou, em nenhum dos três dos quatro primeiros anos de gestão, os 2,6 bilhões de dólares. Somam-se a isso a desaceleração econômica, a contração da participação do Estado na economia a partir das exportações, a perda do controle sobre o câmbio, a perda do controle sobre os preços do mercado interno e da dinamização econômica (como já dissemos, em função do investimento público). Todos esses fatores contribuíram para que hoje estejamos na crise que estamos presenciando e que a população atualmente questiona.
EM – O terceiro colocado, Samuel Medina, candidato preferencial das classes dominantes bolivianas, alcançou 19,6%, contrariando as previsões que o colocavam seguramente no segundo turno com o ex-presidente Tuto Quiroga. Você os resumiu como sinônimos de privatização e repressão, sendo o primeiro vinculado aos processos de privatização dos anos 1990 e o segundo aos massacres indígenas. Como poderíamos resumir Rodrigo Paz, que liderou o primeiro turno apesar das previsões?
AS – Em relação à candidatura de Rodrigo Paz, observavam-se dois elementos: um como uma constante e o outro como algo conjuntural, muito próximo da realização das eleições. Primeiro, o número de votos em branco, nulos e indecisos aparecia em todas as pesquisas com percentuais altos, em alguns casos chegando a superar os 30%, e isso foi uma constante durante todo o processo eleitoral. Parte desse voto nulo efetivamente se materializou em uma decisão eleitoral, e outra parte, que não queria votar nulo mas também não estava convencida com o processo eleitoral, acabou se inclinando pela candidatura de Rodrigo Paz.
Aí surge a interpelação que se faz… esse normalmente era um eleitorado que votava no Movimento ao Socialismo. Portanto, esse fenômeno de se inclinar pela candidatura de Rodrigo Paz está muito vinculado a como isso coincidiu, em tempos eleitorais, com a realização do processo eleitoral e com a emergência de seu candidato a vice-presidente, Edman Lara, um policial, que conseguiu precisamente se posicionar.
Na verdade, a candidatura conseguiu se posicionar efetivamente em territórios onde normalmente o Movimento ao Socialismo vencia de forma esmagadora. Isso se nota claramente nesse comportamento eleitoral, principalmente em La Paz, Oruro, Potosí, Cochabamba, Chuquisaca e nos territórios onde tradicionalmente ganhava o MAS. Ali houve uma divisão do eleitorado entre os que antes votavam no MAS: alguns decidiram continuar votando nulo, e outros optaram finalmente pela candidatura de Rodrigo Paz e Lara.
A pergunta que se deve fazer é: por que, se Andrónico se proclamava candidato do movimento popular, do setor popular, do campo popular da Bolívia, por que ele, e não Rodrigo Paz, acabou não conseguindo captar esse eleitorado que tradicionalmente votava no MAS?
Vale destacar que Edman Lara chegou ainda a esse eleitorado com algo que considero importante ver a partir de um processo autocrítico. Todas as forças políticas falavam em atender à crise muito a partir do macroeconômico: muito sobre redução do déficit fiscal, sobre cortar ou não os subsídios aos combustíveis, sobre fechamento de folhas de pagamento. Enquanto isso, Edman Lara foi a esses territórios.
[1] Este mecanismo passou a existir pela primeira vez desde 2009.
[2] Na Bolívia, caso um partido não alcance o percentual mínimo de 3% na eleição presidencial, sua existência legal está comprometida. Os votos presidenciais também determinam a eleição de parte dos deputados e de todos os senadores.
[3] Nestas eleições, o MAS saiu de 75 deputados dos 130 eleitos em 2020 para apenas 2 nas eleições de 2025. No Senado, onde tinha 21 dos 36 senadores eleitos na última eleição, agora não tem mais representação parlamentar.