Militância na corda bamba: ativismo em tempos de vulnerabilidade
Entre a urgência da sobrevivência e o desejo de transformação, o ativismo enfrenta o desafio de resistir sem se esgotar
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Ser militante em uma sociedade marcada por desigualdades é um ato de coragem, mas também um desafio que se intensifica quando a própria sobrevivência está em jogo. Como lutar por justiça social, igualdade e direitos humanos quando a fome aperta, a moradia é precária e o mercado de trabalho pune quem ousa levantar a voz? A reflexão sobre o ativismo em situação de vulnerabilidade revela não apenas as barreiras estruturais que atravessam a luta, mas também a resiliência de quem persiste, mesmo sob condições adversas.
Nos últimos anos, observa-se um fenômeno preocupante: o afastamento de muitas pessoas da militância e do ativismo. Não por falta de convicção, mas por esgotamento físico, emocional e material. A vulnerabilidade socioeconômica impõe um custo alto àqueles que se engajam em causas coletivas. Para muitos, o ativismo não é apenas uma questão de tempo ou energia, mas uma escolha que pode significar a perda de oportunidades no mercado de trabalho. Profissionais que se expõem publicamente em defesa de pautas como direitos trabalhistas, igualdade racial ou de gênero frequentemente enfrentam retaliações, desde a exclusão em processos seletivos até demissões veladas. Essa perseguição silenciosa cria um ciclo de precarização, onde a luta por direitos coletivos colide com a necessidade de garantir o sustento individual.
A fome, uma realidade cruel para milhões de brasileiros, é outro obstáculo que desmobiliza. Como marchar por mudanças estruturais com o estômago vazio? A insegurança alimentar, agravada por crises econômicas e políticas, força muitas pessoas a priorizarem a sobrevivência imediata em detrimento da participação em movimentos sociais. Da mesma forma, a falta de moradia digna com milhões vivendo em ocupações, favelas ou em situação de rua limita a capacidade de organização e engajamento. A energia que poderia ser direcionada para reuniões, protestos ou articulações políticas é consumida pela luta diária por um teto, por comida ou por segurança.
Para mulheres, especialmente negras, indígenas e de outras minorias, os desafios do ativismo são agravados por recortes de raça e gênero. Além das barreiras socioeconômicas, elas enfrentam assédios dentro e fora dos espaços políticos. Fora, sofrem com violências como comentários misóginos, racistas e ameaças à sua segurança, que buscam silenciá-las. Dentro dos movimentos, o assédio moral e sexual, por vezes perpetrado por aliados, cria um ambiente hostil que desmobiliza e fere a confiança. Mulheres que denunciam essas violências muitas vezes são desacreditadas ou marginalizadas, enfrentando a dupla violência de lutar contra opressões externas e internas.
Essa realidade expõe uma contradição dolorosa: as pessoas em maior vulnerabilidade, que seriam as principais beneficiadas por transformações sociais, são frequentemente as que menos têm condições para militar. O ativismo, que deveria ser um espaço de resistência coletiva, acaba, em muitos casos, sendo dominado por quem tem algum grau de privilégio, seja financeiro, educacional ou de acesso a redes de apoio. Isso não significa que a militância tenha se tornado elitista, mas que as barreiras estruturais filtram quem consegue permanecer na luta.
A crítica aqui não recai sobre os indivíduos que se afastam, mas sobre o sistema que os coloca nessa posição. É necessário repensar como os movimentos sociais podem acolher e apoiar militantes em vulnerabilidade. Criar redes de solidariedade, fortalecer cozinhas comunitárias e o cooperativismo, criação de fundos de apoio financeiro, e a criação de espaços de cuidado mútuo, podem ser um passo para reduzir o peso da precariedade e manter essas pessoas na luta. Além disso, é fundamental que o ativismo incorpore estratégias que protejam a identidade e a segurança de seus membros, e o fortalecimento de alianças com organizações que ofereçam suporte jurídico e psicológico.
Ser militante em situação de vulnerabilidade exige equilibrar-se em uma corda bamba, onde cada passo é um risco, mas também uma afirmação de dignidade. A luta não pode ser romantizada a ponto de ignorar as condições materiais de quem a sustenta. Para que o ativismo seja verdadeiramente inclusivo, ele precisa se reinventar, garantindo que ninguém precise escolher entre comer, morar ou lutar. Afinal, a resistência é mais forte quando todos têm espaço e força para erguer a voz.