Portland se mobiliza contra Trump: entrevista com Laura Wadlin sobre o envio da Guarda Nacional
Entrevista com Laura Wadlin sobre o clima comenta o clima em Portland às vésperas da chegada da Guarda Nacional a mando de Trump, as ações do DSA na cidade e a conjuntura política mais ampla nos Estados Unidos
Estados Unidos Hoje da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco
Nesta semana, nossa coluna traz uma entrevista com Laura Wadlin, moradora e militante em Portland, a maior cidade do estado do Oregon. Wadlin é membro do Democratic Socialists of America (DSA) e integrou o National Political Committee (Executiva Nacional) do grupo por dois anos. Ela é professora no Portland Community College e membro do American Federation of Teachers (AFT) Seção 2277.
Na entrevista, realizada em 2 de outubro, Wadlin comenta o clima em Portland às vésperas da chegada da Guarda Nacional a mando de Trump, as ações do DSA na cidade e a conjuntura política mais ampla nos Estados Unidos.
FLCMF
Laura, obrigado pela entrevista. Salvo engano, Portland é a quinta cidade a sofrer intervenção de Trump, recebendo tropas da Guarda Nacional sem o consentimento local. Los Angeles, Washington D.C., Chicago, Memphis e Portland. As operações devem começar nos próximos dias. Gostaríamos saber: como está a cidade neste momento? Como as pessoas receberam a notícia e qual é a justificativa do governo para isso?
Laura Wadlin
Pelo que posso perceber, ninguém em Portland ou em Oregon está satisfeito com isso. Até mesmo a cúpula empresarial e o establishment liberal reagiram imediatamente, pressionando a administração Trump para recuar. A ironia é que, em 2020, durante o movimento Black Lives Matter, Portland foi notícia nacional devido à força dos protestos locais. Trump enviou agentes federais para a cidade na época, e houve um impasse em torno do tribunal federal no centro da cidade que durou cerca de 100 dias.
Naquele momento, a direita, tanto na administração Trump quanto localmente, retratou Portland como uma “zona de guerra”. Desde então, espalhou-se a narrativa de que a cidade teria sofrido economicamente por causa dos protestos, que supostamente transformaram Portland em um lugar violento e inseguro. Isso não era verdade: os protestos estavam limitados a uma pequena área no centro, e a cidade permanecia tranquila. Mas líderes empresariais e políticos alimentaram essa narrativa, culpando os protestos pelo declínio econômico, pelo aumento da criminalidade e da população em situação de rua. Mesmo anos depois, a mídia nacional continuou a reforçar a ideia de que Portland estava “em chamas”. Eu tinha amigos cujos familiares de outros estados mandavam mensagens perguntando: “Vocês estão seguros? É realmente uma zona de guerra?” — e não era.
Agora, Trump está reutilizando essa narrativa falsa. Ele chegou a citar imagens de 2020 na Fox News como justificativa para enviar tropas, alegando que Portland estava vivendo um caos. A ironia é que a mesma cúpula empresarial que antes culpava os protestos pelos problemas da cidade agora se opõe a Trump, insistindo que Portland é segura, que a criminalidade está diminuindo e que a intervenção federal é desnecessária. A real preocupação deles é que isso prejudica os negócios. E eles também reconhecem que a cidade mudou politicamente para a esquerda. Portland recentemente reestruturou sua Câmara de Vereadores, tornando-a maior e mais representativa, o que resultou em uma maioria muito progressista. O lobby empresarial sabe que precisa se adaptar a essa realidade política, e por isso agora se posiciona oportunisticamente contra Trump, denunciando uma narrativa que eles próprios ajudaram a criar.
A governadora Tina Kotek, no entanto, tem sido ineficaz. Ela é uma Democrata conservadora com pouco apoio popular e venceu por uma margem estreita a última eleição, contra um republicano. Até agora, sua resposta tem sido fraca, apenas pedindo que Trump não intervenha. Enquanto isso, sindicatos como a Associação dos Enfermeiros de Oregon emitiram declarações fortes contra a medida.
Até os soldados da Guarda Nacional de Oregon, que estão sendo enviados, estão insatisfeitos. Eles são trabalhadores comuns de Oregon, com empregos e famílias, não soldados em tempo integral. Eles esperavam atuar em desastres naturais, não em operações políticas. Suas vidas estão sendo interrompidas por algo que não apoiam. Eles já viram o que aconteceu em Los Angeles, onde os guardas ficaram sem fazer nada, dormindo em camas improvisadas e realizando tarefas sem sentido, como recolher lixo. Eles não querem passar pela mesma situação.
Em resumo, todos aqui estão indignados com essa intervenção.
FLCMF
O tema imigratório também é relevante em Portland? Ele está envolvido nessa tentativa de intimidação que Trump quer promover?
Laura Wadlin
Sim. Há muitos imigrantes em Portland e em Oregon. No meu trabalho, eu dou aulas de inglês como segunda língua, então interajo com imigrantes todos os dias. E sim, têm ocorrido detenções pelo ICE em Portland e na área metropolitana, assim como em outras partes do estado. Isso contribui muito para um clima de medo entre os imigrantes.
Ao mesmo tempo, fico encorajada com a resposta da esquerda. Há um foco deliberado na proteção dos imigrantes em Oregon. Temos imigrantes de todo o mundo, especialmente da América Latina, e as pessoas estão se mobilizando para apoiá-los. Meus colegas de trabalho, meu sindicato, o DSA e outros sindicatos e organizações estão promovendo treinamentos sobre os direitos dos imigrantes e compartilhando informações. As pessoas estão levando isso muito a sério e se organizando para proteger nossos vizinhos imigrantes.
FLCMF
Gostaria de saber sobre a atuação do DSA. Portland parece ser uma das regionais mais dinâmicas, com parlamentares e muitos militantes, incluindo você mesma. Como o DSA de Portland tem respondido a esse momento?
Laura Wadlin
Eu diria que nosso trabalho começou no momento em que Trump foi eleito. Na mesma noite em que ele venceu, em novembro passado, quatro membros do DSA foram eleitos para a Câmara Municipal de Portland. Eles souberam imediatamente que isso seria uma questão central durante seus mandatos. Desde então, têm dedicado muito tempo aos serviços para a população e à construção de redes de proteção aos imigrantes na cidade.
Uma das questões mais complicadas tem sido como lidar com a unidade de detenção do ICE em Portland. Há um movimento de protesto forte e persistente contra a unidade. Mas muitas famílias de imigrantes, na verdade, não querem que a unidade seja fechada, porque, se isso acontecer, os detidos seriam transferidos para locais muito mais distantes, tornando extremamente difícil para as famílias visitá-los. Obviamente, queremos que não haja nenhuma unidade do ICE, mas, taticamente, a questão é complicada. Para o DSA e nossos parlamentares, tem sido difícil navegar nesse cenário. Outro fator é que os protestos na unidade foram usados como justificativa para repressão e até para o envio de tropas federais. Por essas razões, como organização, o DSA tem, em geral, evitado envolvimento direto nesses protestos.
Em vez disso, focamos em outras áreas. Temos um Grupo de Trabalho de Direitos dos Imigrantes, e todos os nossos outros comitês também abordam a situação atual. Nosso comitê “Socialistas no Legislativo”, onde vereadores e deputados estaduais coordenam suas ações, discutiu o tema. Ele também foi abordado em nosso Grupo de Trabalho Sindical, já que muitos membros de sindicatos, especialmente professores, estão lidando com as consequências em seus locais de trabalho. Um dos lugares mais comuns para detenções pela ICE é nas escolas, durante a entrada e saída das crianças. Os pais saem do carro para buscar os filhos e são detidos por agentes da ICE. É horrível.
Também tivemos envolvimento em protestos organizados por grupos liberais, como 5051 e Indivisible [protestos como “Hands Off” e “No Kings”]. Não os organizamos, mas participamos. Esses protestos costumam ser dominados por pessoas mais velhas, brancas e de classe média, com poucos jovens ou membros de sindicatos, então engajar uma base mais ampla continua sendo um desafio.
Recentemente, após o anúncio da administração Trump sobre o envio da Guarda Nacional, realizamos uma reunião de emergência da regional com mais de cem participantes. Discutimos mobilizações, proteção aos imigrantes, treinamentos sobre direitos e estratégias de segurança. Pouco depois, divulgamos uma carta aberta contra o envio das tropas, explicando como a narrativa do lobby empresarial sobre Portland preparou o terreno para essa intervenção.
Infelizmente, muitas forças políticas que se opõem à intervenção ainda dizem coisas como “Deixem a polícia fazer seu trabalho”, refletindo uma postura pró-polícia. Nós rejeitamos isso.
O que precisamos não é apenas de protestos esporádicos, mas de um movimento de massa liderado por trabalhadores sindicalizados. Portland tem um dos movimentos trabalhistas mais ativos do país, e, como sindicalistas, temos uma obrigação especial de agir quando o autoritarismo chega à nossa cidade.
FLCMF
Nossa última pergunta é sobre Mitch Green, vereador do DSA em Portland. Há alguns dias, ele publicou um vídeo muito expressivo e corajoso no Instagram, falando tanto na condição de vereador quanto de ex-membro das Forças Armadas dos Estados Unidos. No vídeo, ele convocou veteranos e soldados da ativa a se manifestarem e a se recusarem a cumprir ordens injustas e ilegais. Quem é Mitch Green e por que essa mensagem foi tão importante?
Laura Wadlin
Mitch é membro do DSA de Portland há cerca de sete anos. Nas eleições do ano passado, endossamos dois candidatos para a Câmara de Vereadores, e Mitch foi aquele com quem as pessoas sentiram mais afinidade, “um de nós”.
Ele começou sua trajetória política no DSA, como parte da onda de pessoas que se filiaram por causa de Bernie Sanders. Serviu como dirigente da nossa regional, inclusive como tesoureiro, e esteve profundamente envolvido em nosso trabalho.
Pessoalmente, ele também é um camarada: trabalhamos juntos, e ele inclusive votou em mim quando me candidatei à presidência do nosso sindicato. Portanto, quando ele se lançou à eleição, foi incrivelmente animador ter alguém tão enraizado em nosso movimento apresentando uma plataforma que refletia diretamente nossa política, especialmente em relação à moradia. Moradia e população em situação de rua são os principais problemas em Portland, e Mitch fez campanha por moradia social para todos e pela solução da crise habitacional.
O que torna Mitch singular é que ele é um veterano (alguém que já serviu nas Forças Armadas). Nos Estados Unidos, a esquerda está amplamente desconectada de membros das Forças Armadas. Nosso movimento tende a surgir de meios liberais de classe média, e isso muitas vezes cria uma distância cultural em relação a pessoas da classe trabalhadora, que têm mais probabilidade de servir nas forças armadas. Essa é uma fraqueza real da esquerda.
Mitch preenche essa lacuna: ele não é apenas um veterano, mas um veterano antiguerra ativo. Ele se manifestou contra o genocídio dos palestinos e participa de movimentos que pedem o fim do envio de armas dos EUA para Israel. Isso lhe dá uma perspectiva quase única em Oregon, e talvez até no movimento socialista de forma mais ampla.
Em seu vídeo recente, Mitch fala com outros militares, no mesmo nível. Ele não aponta o dedo, nem chama ninguém de estúpido, nem critica por apoiar Trump. Em vez disso, fala com respeito e empatia, reconhecendo como a situação é difícil e incentivando-os a tomar a decisão honrosa: recusar ordens ilegais. Sua mensagem é: “Vocês são importantes, têm um papel a desempenhar, e precisamos que façam a escolha certa.”
Por isso, Mitch ocupa uma posição rara e poderosa. É difícil pensar em outro veterano de esquerda no DSA que esteja transmitindo esse tipo de mensagem. É um gesto tanto oportuno quanto essencial.
FLCMF
Laura, muito obrigado pela entrevista. Tem algo mais que você gostaria de compartilhar, ou alguma mensagem que queira deixar para o público brasileiro?
Laura Wadlin
Só acrescento o seguinte: o que está acontecendo em Portland é muito sério, mas ainda sinto algum otimismo. Não me sinto paralisada pelo medo. Na verdade, acho que isso pode ser uma oportunidade para Trump transparecer fraqueza, porque não acredito que ele conseguirá fazer com que membros das forças armadas cometam crimes de guerra nas ruas de Portland.
Neste momento, as pessoas aqui estão vivendo o medo. Mas vivenciar isso pode torná-las mais corajosas no futuro, porque, se conseguirmos superar essa situação, saberemos que somos capazes de enfrentar momentos difíceis.
Ao mesmo tempo, acredito que esse momento contribui para a deslegitimação da administração Trump. As ações dele não conquistam ninguém. Se o desemprego estivesse caindo, os salários melhorando, a crise de custo de vida diminuindo, as pessoas poderiam pensar: “Ok, elegemos Trump, e agora as coisas estão melhores, deixem ele fazer o que quiser, Portland vai ficar bem enquanto eu conseguir pagar minhas contas.” Isso seria realmente perigoso. Mas essa não é a realidade. O desemprego é alto, os salários são baixos e o custo de vida é insuportável. Ninguém sente que as coisas estão melhorando.
O que essa intervenção realmente faz é ativar apenas os grupos de extrema direita mais isolados, radicais e marginais em Portland. E sim, eles existem: Oregon tem uma longa história de racismo, incluindo como refúgio do Ku Klux Klan. Mas hoje a direita está muito menos organizada do que em 2016, quando Trump foi eleito pela primeira vez. Naquela época, grupos como os Proud Boys chegaram a tentar atrapalhar algumas reuniões do DSA, o que era assustador. Mas isso não acontece há muitos anos. A direita está mais fraca na cidade, e essa intervenção não está dando credibilidade à mensagem de Trump.
Portanto, acredito que esta é uma oportunidade para a política socialista prevalecer. Mas, para aproveitar essa oportunidade, precisamos estar preparados e dispostos a enfrentar o momento.