Frankenstein na fronteira: o Paquistão, os talibãs e as feridas de uma região

Frankenstein na fronteira: o Paquistão, os talibãs e as feridas de uma região

Enquanto os confrontos fronteiriços entre o Paquistão e o Afeganistão eclodem mais uma vez, as falhas na ordem pós-11 de setembro no sul da Ásia ficam brutalmente expostas

Alternative Viewpoint e Farooq Sulehria 25 nov 2025, 13:22

Enquanto os confrontos fronteiriços entre o Paquistão e o Afeganistão eclodem mais uma vez, as falhas na ordem pós-11 de setembro no sul da Ásia ficam brutalmente expostas. O que inicialmente parecia uma relação de patrocínio — a busca contínua de Islamabad por “profundidade estratégica” por meio de seus protegidos talibãs — transformou-se em hostilidade aberta. O declínio econômico do Paquistão, a legitimidade cada vez menor de seu exército e a nova afirmação diplomática dos talibãs criaram uma situação precária que ameaça remodelar a dinâmica regional.

Nesta longa conversa, Farooq Sulehria — escritor, pesquisador e observador de longa data da política do sul da Ásia — debate com a Alternative Viewpoint sobre a crise ao longo da fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, os equívocos dentro do establishment militar paquistanês e o cenário geopolítico global e regional em transformação.

Sulehria traça o percurso histórico desde a “Jihad afegã” patrocinada pela CIA na década de 1980 até o atual confronto entre um Estado paquistanês enfraquecido e o regime talibã fortalecido em Cabul. Ele argumenta que a estratégia de longa data do Paquistão de sustentar proxies militantes acabou se voltando contra ele, resultando em um “monstro de Frankenstein” que agora se alinha com a Índia e desafia seu antigo protetor.

A conversa abrange uma variedade de tópicos, desde as repercussões internas do militarismo paquistanês até a evolução da geopolítica da rivalidade entre os Estados Unidos e a China, o papel crescente da Índia no Afeganistão e a situação desastrosa dos refugiados afegãos presos entre Estados falidos. Sulehria afirma que a única alternativa viável reside na solidariedade socialista, secular e internacionalista em toda a Ásia Meridional — transcendendo as fronteiras militarizadas e as configurações imperiais.

Alternative Viewpoint: Você descreve o Talibã como o “monstro de Frankenstein” do Paquistão. Você poderia explicar o que quer dizer com essa metáfora no contexto atual, especialmente após os recentes confrontos na fronteira?

Farooq Sulehria: Desde a década de 1980, o Estado paquistanês susbsidiou e apoiou grupos fundamentalistas armados. Essa colaboração inicial envolveu os Estados Unidos, a Arábia Saudita e outros países no âmbito da chamada Jihad afegã. No entanto, depois que as tropas soviéticas se retiraram em 1988-89 e o governo de esquerda em Cabul caiu em 1993, a política de apoio às milícias fundamentalistas continuou. O foco mudou do Afeganistão para Jammu-Caxemira, administrada pela Índia. O establishment mobilizou esses grupos contra os governos civis. Após o 11 de setembro, algumas facções ficaram insatisfeitas com o aparente alinhamento de Islamabad com Washington contra os talibãs em Cabul. Como resultado, o Paquistão passou por uma onda de terrorismo durante os quinze anos seguintes. Simultaneamente, os talibãs afegãos receberam refúgios seguros no Paquistão durante duas décadas. O Paquistão funcionou como um Estado cliente, constantemente dependente do apoio americano. Tal abordagem revelou-se uma estratégia arriscada. Islamabad deu prioridade ao patrocínio americano para fortalecer os talibãs, com o objetivo de restabelecer o seu controlo sobre Cabul e transformar o Afeganistão num “quintal estratégico”, sem influência indiana. Ironicamente, os talibãs, alimentados e armados a um custo elevado para o Estado e a sociedade, alinharam-se agora com o principal rival do Paquistão, a Índia. É aqui que entra a analogia com o monstro de Frankenstein.

Estamos testemunhando uma verdadeira ruptura entre o Paquistão e o regime talibã, ou simplesmente a uma renegociação no âmbito de uma longa e difícil aliança?

FS: É difícil determinar se estamos testemunhando uma ruptura real entre o Paquistão e o regime talibã ou simplesmente uma renegociação dentro de sua antiga e difícil aliança. Ambas as partes carecem de princípios, e o oportunismo define o comportamento tanto dos talibãs quanto da elite paquistanesa. Esse comportamento oportunista não é exclusivo deles; as elites governantes em todo o mundo costumam agir de maneira semelhante. No entanto, acredito que a ruptura atual seja autêntica. A viagem de Amir Khan Mutaqi a Nova Délhi representa uma violação significativa do que Islamabad considera uma linha vermelha diplomática.

Como as atuais crises internas do Paquistão — colapso econômico, dependência do FMI e desordem política — moldam sua nova agressividade em relação ao Afeganistão?

FS: Na verdade, a agressividade em relação ao Afeganistão demonstra uma confiança renovada. Desde que a “vitória na guerra” contra a Índia serviu para legitimar o regime híbrido, com o incentivo constante de Donald Trump e o silenciamento de todos os tipos de oposição e dissidência, a elite governante ficou embriagada pelo poder. No entanto, Islamabad continua enfrentando desafios por parte da militância no Baluchistão e dos talibãs paquistaneses, também conhecidos como Tehrik-e-Taliban Pakistan (TTP). Os ataques do TTP a partir de seus refúgios seguros no Afeganistão incomodam o establishment. Talvez haja uma ilusão em Islamabad de que eles podem forçar Cabul à submissão. Em resumo, não vejo a agressão contra Cabul como uma expressão de crise. É exatamente o contrário.

Até que ponto as recentes ações militares são uma tentativa do exército paquistanês de reafirmar sua legitimidade a nível nacional?

FS: Existe uma afeganofobia generalizada, propagada por diversos meios de comunicação e propaganda. Esse sentimento vem se desenvolvendo desde os eventos de 11 de setembro. Além da Índia, o Afeganistão se tornou o novo “outro” para o Paquistão. Como resultado, entre segmentos importantes da sociedade pakistanes se dvidem entre ou o apoio às ações militares contra o Afeganistão ou uma indiferença generalizada..

Em um artigo anterior, você mencionou que “correr com a lebre e caçar com os cães” [“ficar em cima do muro”] tem sido a política de Estado do Paquistão há décadas. Por que essa duplicidade persistiu ao longo dos regimes — tanto civis quanto militares?

FS: No campo da política internacional envolvendo a Índia, o Afeganistão e grandes potências como a China e os EUA, a influência militar é predominante. Os chamados líderes civis têm muita pouca autoridade nessas questões.

Você observa que os talibãs adotaram uma retórica patriótica em vez de religiosa em seus recentes confrontos com o Paquistão. Isso marca uma mudança em seu projeto ideológico ou é puramente tático?

FS: É semelhante à situação no Irã, onde os aiatolás misturaram sua interpretação do fundamentalismo com uma forma de nacionalismo durante a guerra contra o Iraque. Os talibãs continuam firmemente comprometidos com sua ideologia fundamentalista; sem ela, eles deixariam de ser os talibãs. No entanto, eles incorporam estrategicamente elementos de retórica nacionalista e chauvinista.

Como os afegãos comuns veem o Paquistão hoje, e esse sentimento popular limita a influência de Islamabad sobre Cabul?

FS: Muito antes do atual confronto, o Paquistão já havia perdido toda a simpatia da população afegã. Muitos afegãos o consideram responsável, em grande parte com razão, pelas inúmeras misérias que sofreram.

Qual o papel do faccionalismo interno entre os talibãs — especialmente os grupos Haqqani contra Kandahar — nessa tensão crescente?

FS: Há muitos rumores circulando, mas nenhuma informação concreta disponível. É difícil fazer afirmações definitivas. No entanto, aqueles que acompanham a situação no Afeganistão, incluindo cidadãos afegãos e a diáspora, continuam a destacar as diferenças internas, assim como vários comentaristas na mídia.

Você se refere à rivalidade entre os Estados Unidos e a China que molda a situação regional. Até que ponto é plausível que Washington tenha sancionado os ataques do Paquistão ao território afegão, talvez para recuperar influência por meio de Bagram ou desafiar a China?

FS: Mais uma vez, a questão é amplamente especulativa, e nenhuma evidência documentada sustenta essas afirmações. Os comentários de Donald Trump fornecem um contexto sobre o ataque a Cabul, pois ele afirmou que os EUA pretendiam retomar o controle da base aérea de Bagram, no Afeganistão, para cercar a China. No entanto, é crucial observar que o Paquistão também não pode se dar ao luxo de irritar a China.

Por outro lado, a economia do Paquistão é profundamente dependente de Pequim. Como a classe dominante paquistanesa lida com essa contradição entre apaziguar os EUA e a dependência da China?

FS: Eles lidam com essa relação desde a década de 1960. A questão não é simplesmente como eles vão apaziguar Pequim e Washington; é mais que Islamabad tem dois protetores, e esse duplo patrocínio representa uma ameaça à democracia no Paquistão. Notavelmente, os dois protetores muitas vezes têm interesses que se sobrepõem, e o Paquistão tenta satisfazer ambos simultaneamente.

Essa tensão triangular (Paquistão-Estados Unidos-China) é sinal de uma crise mais ampla na ordem regional “pós-guerra contra o terrorismo”?

FS: Sim, é um fator de complicação. No entanto, essa relação triangular é apenas um aspecto de uma situação mais ampla. A Índia é outro elemento significativo. Anwar ul Haq, um ex-primeiro-ministro interino, observou francamente: “O Paquistão é o Israel da China”. Um lapso freudiano como esse é bastante incomum no Paquistão. No entanto, uma aproximação entre a Índia e a China pode ser crucial para manter os EUA à distância nessa região. Atualmente, especialmente com o domínio ideológico do BJP sobre a Índia, tal aproximação parece cada vez mais uma miragem.

A visita do ministro das Relações Exteriores do Afeganistão a Nova Délhi, como você observou, deixou Islamabad constrangida. Como devemos interpretar essa proximidade crescente entre a Índia e o Afeganistão?

FS: Acredito que qualquer governo em Cabul se esforçará para manter relações sólidas com Nova Délhi. O regime talibã pode buscar se reconciliar com Islamabad em um futuro próximo; no entanto, eles provavelmente não sacrificarão sua amizade recém-formada com a Índia. Eles podem ser implacáveis, mas não são estúpidos. Eles se absterão de depositar toda a sua confiança no Paquistão.

Nova Deli está buscando preencher o vazio deixado pela retirada americana — ou é mais uma questão de projeção de hegemonia regional sob a agenda nacionalista do governo Modi?

FS: Não tenho como analisar essa questão para um público indiano. No entanto, não acredito que a Índia possa preencher efetivamente o vazio deixado pelos Estados Unidos.

Como você percebe as narrativas da mídia e da política indianas em torno da “instabilidade” do Paquistão? Elas têm uma função estratégica em nível nacional, além da política externa?

FS: No passado, a mídia indiana, especialmente durante o domínio da imprensa escrita, inspirava um respeito significativo no Paquistão e além. No entanto, atualmente, a mídia indiana, com exceção de alguns meios alternativos, muitas vezes carece de credibilidade. Também acompanho alguns blogueiros, como Shekhar Gupta, do The Print, e Praveen Swami, para avaliar o que pensa o establishment indiano. Ravish Kumar é uma exceção notável, embora tenha a tendência de se concentrar na política interna. No geral, mesmo em plataformas como o YouTube, há uma notável falta de jornalismo de qualidade, especialmente no que diz respeito ao Paquistão.

A deportação pelo Paquistão de quase um milhão de refugiados afegãos chocou muitos observadores. O que isso revela sobre a direção militarizada e xenófoba do Estado paquistanês?

FS: Além de refletir a xenofobia, isso também evidencia o oportunismo. Na década de 1980, a mídia celebrava os refugiados afegãos, apresentando-os como “irmãos muçulmanos” resistindo aos “infieis soviéticos”. A narrativa enquadrava a Jihad afegã como, na verdade, uma Jihad paquistanesa destinada a contrariar as aspirações soviéticas de acesso às águas quentes do Mar Arábico. Acredito que esta expulsão foi usada também como forma de pressionar o Talibã. No entanto, é importante notar que o Talibã trata os afegãos de uma maneira que lembra a forma como o Paquistão tratava os refugiados afegãos. Essa situação também deve ser considerada parte de uma tendência global mais ampla na era do trumpismo. Quando as chamadas democracias liberais violam os direitos dos refugiados e os direitos humanos, elas normalizam as más práticas. O Irã também expulsou refugiados afegãos com brutalidade comparável. Ironicamente, tanto o Paquistão quanto o Irã professam defender os direitos da Umma [a comunidade global de todos os muçulmanos].

Como esse militarismo afeta a classe trabalhadora, tanto no Paquistão quanto no Afeganistão? Há alguma resistência, solidariedade ou dissidência visível emergindo da base?

FS: No Afeganistão, talvez ninguém queira mais problemas. Eles já enfrentam uma situação que ameaça suas vidas. Da mesma forma, a sociedade civil foi totalmente destruída. No Paquistão, a esquerda e alguns nacionalistas progressistas no Baluchistão e em Khyber Pakhtunkhwa (antiga NWFF) se opuseram a essa escalada. Mas eles são marginalizados.

Você termina um artigo recém-publicado assim: “Os Frankensteins não podem viver em paz quando os monstros do terror reinam supremos”. Existe alguma força política — dentro ou fora desses Estados — capaz de quebrar esse círculo vicioso?

FS: Atualmente, a situação é muito pessimista. No entanto, a fonte de esperança continua lutando. Nós, na região Af-Pak, não temos outra opção a não ser nos organizarmos contra todas essas forças das trevas dos dois lados da fronteira. Precisamos de solidariedade internacional, especialmente vinda do sul da Ásia.

Como seria hoje um quadro regional progressista e anti-imperialista — um quadro que pudesse contrariar tanto a reação talibã quanto o nacionalismo militarista no Paquistão e na Índia?

FS: Acho que ele deve sem ambiguidade socialista, laico, internacionalista e anti-imperialista. É importante ressaltar que setores da esquerda na Índia e no Paquistão têm enormes ilusões sobre a China. A esquerda precisa entender que a China representa uma nova forma de imperialismo. Além disso, a chamada multipolaridade é apresentada como uma oportunidade. É uma oportunidade para as classes dominantes, não para as classes trabalhadoras.

Infelizmente, uma parte da esquerda no Paquistão está até abandonando o secularismo, sem falar no internacionalismo e no anti-imperialismo baseados nos princípios marxistas em vez do campismo. Como marxistas, o que privilegiamos acima de tudo são os interesses da classe trabalhadora.

Por fim, o que a esquerda indiana pode aprender com a experiência do Paquistão com a “profundidade estratégica” e suas consequências desastrosas?

FS: Acho que a principal lição é: não apoie as aventuras de estilo imperialistas das elites fora do país. As classes trabalhadoras e os setores subalternos sofrem as consequências.


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