30 anos da queda do stalinismo no Leste Europeu

30 anos da queda do stalinismo no Leste Europeu

No Natal de 1991, o Jornal Nacional destacou a renúncia de Mikhail Gorbachev e a extinção da URSS. O correspondente em Moscou, Pedro Bial, anunciou Boris Yeltsin como comandante supremo da “nova” Rússia e o fim do “comunismo”. Mas, afinal, o que levou a derrocada do chamado “socialismo real” e por quais vias o capitalismo foi restaurado no Leste Europeu? Essas são indagações relevantes e temas de polêmicas nas esquerdas, sobretudo, entre o trotskismo e o neo-stalinismo. Nessa coluna tratarei dos pontos cardeais desse divisor de águas no movimento socialista.

Leandro Fontes 20 dez 2021, 10:12

As causas aparentes

Para muitos analistas políticos, acadêmicos e neo-stalinistas, os problemas na URSS começaram com a Perestroika (reconstrução). Segundo Gorbachev, a União Soviética estava perdendo a disputa com as potências capitalistas no terreno tecnológico e econômico. Esse declínio começou a partir da década de 1970 e foi agravado na década seguinte. Uma das questões levantadas para essa causa se enquadra na superação do modo de produção fordista, uma vez que esse sistema era o modelo hegemônico seguido tanto nos países capitalistas e aplicado, ao seu modo (planejamento estatal centralizado), na URSS. Ou seja, um sistema rígido e de produção em grande escala dos mesmos produtos. Até o momento em que a régua medidora estava sob a baliza do fordismo, os soviéticos conseguiram manter viva sua economia. Mas, o capitalismo deu um salto em sua expansão no mercado mundial via as empresas multinacionais – tais como a Fiat, GM, Ford, Volkswagen – que dividiram as fases de produção e transportaram as peças para países determinados com mão de obra qualificada e barata, com isso aumentou a circulação mundial de mercadorias e foi ampliada a dimensão do mercado de compra no mundo. Esse novo sistema, totalmente integrado à revolução da informática, chamado de acumulação flexível ou simplesmente toyotismo, gerou as condições para um novo oxigênio para os países capitalistas avançados. E a União Soviética, por sua vez, ficou para trás.

Além disso, a crise do petróleo foi decisiva para essa mudança de fase do mercado mundial. O vetor da energia e da matéria prima foi levado ao segundo escalão e as tecnologias avançadas passaram a predominar. Nesse então, EUA (principalmente) e Japão, com suas empresas multinacionais, dominaram amplamente o mercado mundial. Desse modo, após a derrota ianque no Vietnã, o terreno tecnológico passou a ser uma válvula nada desprezível para o imperialismo norte-americano. Assim sendo, o avanço tecnológico, da computação e das telecomunicações, interligados a diversas fases de produção, passou a ser um elemento importantíssimo no tabuleiro da disputa geopolítica na última etapa da Guerra Fria.

Já a URSS que teve “seu ensaio de Vietnã” no Afeganistão em 1979, no calor da corrida armamentista, não teve combustível suficiente para alcançar os norte-americanos na disputa tecnológica e econômica. Gorbachev foi claro ao descrever em Perestroika:

“Deixe-me primeiro explicar a situação nada simples que se desenvolveu no país nos anos 1980 e que fez com que a perestroika se tornasse necessária e inevitável (…) Analisando a situação, primeiro descobrimos uma diminuição do crescimento econômico. Nos últimos quinze anos, a taxa de crescimento de renda nacional caíra para mais da metade e, no início dos anos 1980, chegava a um nível próximo da estagnação econômica. Um país que antes estivera alcançado rapidamente as nações mais avançadas do mundo, agora começava a perder posição. Além disso, o hiato existente na eficiência da produção, na qualidade dos produtos, no desenvolvimento científico e tecnológico, na geração de tecnologia avançada e em seu uso começou a se alargar, e não a nosso favor (…) E tudo isso aconteceu numa época em que a revolução científica e tecnológica abriria novos horizontes para o processo econômico e social”. (SEGRILLO, Angelo. O fim da URSS e a nova Rússia: de Gorbachev ao pós-Yeltsin. Petrópolis/RJ. Vozes, 2000. p. 9 e 10).

Quer dizer, o “socialismo num só país” com seu planejamento estatal centralizado não conseguiu manter o padrão de disputa diante das mudanças científico-tecnológicas e de produção no sistema-mundo. Um dos objetivos da Perestroika era, portanto, tentar adaptar a União Soviética a essa mudança. Porém, para esse passo, era necessário reduzir os gastos com a indústria bélica e, consequentemente, desidratar o poder do exército que gozava de prestígio e tinha força no Estado controlado pelo partido único. Para tanto, Gorbachev propôs simultaneamente a Glasnost (transparência) com objetivo de abrir o regime soviético.

Outro ponto latente na crise era o fato que a União Soviética agregava um conjunto de nações que eram regidas de modo autoritário por Moscou. Assim, o tema das nacionalidades não-russas se agregou contundentemente na problemática que culminou na desagregação. Soma-se ainda a ausência de perspectiva e de representatividade da juventude russa em relação aos líderes do Partido Comunista soviético. Nitidamente, os jovens não se enxergavam nos burocratas envelhecidos do aparelho do Estado. De tal modo, na busca do novo, os dirigentes do PCUS eram vistos como a representação do velho. Além disso, com a crise econômica e a crise de abastecimento, a insatisfação foi se acumulando e, como consequência, a ideia do “socialismo real” como modelo societário foi perdendo força na consciência em parcelas de massas do povo.

Assim sendo, a ideia do “socialismo num país” que pudesse competir economicamente com o capitalismo e que pudesse se sustentar na força do exemplo como modelo para outros países e povos, fracassou.

O bêbado e o equilibrista

Diante da tragédia, não se pode deixar de lado o papel dos sujeitos. E no desfecho da União Soviética é preciso apontar para Gorbachev e Yeltsin como protagonistas da restauração. Mas, não só. A rigor, Gorbachev e Yeltsin foram expressões públicas da burocracia stalisnista do Partido Comunista que caminhou hegemonicamente para a linha da mudança de sistema, tendo como objetivo a manutenção de seus privilégios. De tal maneira, a essência prática da Perestroika se resultou na tentativa de um socorro ecoado por Gorbachev ao imperialismo, tendo como moeda de troca, o plano de “500 dias” para transição em direção da economia de mercado. O auge desse movimento ocorreu em julho de 1991, quando Gorbachev reuniu com o G7 em Londres para debater um pacote financeiro e de créditos para a URSS. Entretanto, a ajuda do imperialismo nunca chegou e Gorbachev ficou com a própria sorte pendurado na brocha.

Paralelamente, explodiu a crise pela independência nos países bálticos: Lituânia, Estônia e Letônia. E na Rússia, o coração da União Soviética, as prateleiras dos mercados estavam vazias, faltava produtos básicos para o povo soviético. Não à toa, no 1º de maio de 1990, Gorbachev é obrigado a deixar o palanque do kremlin por conta das vaias da massa russa na Praça Vermelha.

Quer dizer, Gorbachev foi acumulando derrotas e, consequentemente, foi ficando isolado no PCUS, ao mesmo tempo, o partido estava dividido entre a ala dos “duros” (militares em sua maioria), que pleiteava maior controle da Perestroika para não perder seu poder na abertura. E a ala “reformista” (com Yeltsin na cabeça), que defendia o aprofundamento e aceleração da Perestroika e Glasnost, isto é, a linha aberta da restauração sem mediações. O meio termo entre essas duas alas foi descomprimindo no decorrer do triênio de 1989-90-91 e na medida em que Gorbachev sofria derrotas internas e externas.

Em agosto de 1991, membros da ala “dura” organizam um golpe e tentam tomar o poder a partir de uma manobra por dentro do próprio governo. Sob o falso argumento de que o presidente passava por problemas de saúde, Gorbachev é detido na Criméia e os conspiradores se autoproclamam como “Comitê do Estado de Emergência” e tanques vão às ruas. Porém, a reação não tardou. Os russos ocuparam as ruas de Moscou e Petrogrado para impedir a derrubada de Gorbachev e a instauração de um novo período de ditadura. A massa venceu o golpe. No entanto, devido às circunstâncias, o sujeito que capitalizou esse processo foi Yeltsin, que, naquela altura, era presidente da República Russa.

Nesse processo recheado de contradições, houve aqueles que se posicionaram contrários a mobilização das massas e se colocaram ao lado dos golpistas. Foi o caso de João Amazonas, dirigente histórico do PCdoB, que fez a seguinte declaração na Folha de S. Paulo (20/08/1991): “O golpe é positivo, no sentido de que essa é uma tentativa de se buscar uma solução que não seja a aliança descarada com os imperialistas americanos. Foi uma espécie de intervenção para botar ordem na casa” (Jornal Convergência Socialista, nº 304, 22 a 28/08/1991). Acontece que os “duros”, que deram o golpe, não tinham como objetivo impedir a restauração. Isto fica claro já na primeira entrevista coletiva do porta-voz dos golpistas, Gennadi Ianaiev, que exclamou: “não abandonamos o rumo para a economia de mercado” (Folha de S. Paulo 20/08/1991). Ou seja, João Amazonas estava totalmente equivocado, já que por qualquer via do stalinismo, a União Soviética desembocaria na restauração capitalista.

O destino, portanto, reservou a Yeltsin o golpe final. Poucos dias depois da derrota do “Comitê do Estado de Emergência”, no Congresso dos Deputados do Povo, numa queda de braço com Gorbachev, Yeltsin assinou um decreto que suspendia as atividades do PCUS na Rússia até ser revelada a participação da equipe de Gorbachev no golpe. Em seguida são formalizadas a independência da Lituânia, Estônia, Geórgia, Ucrânia e Bielorússia. E sob a liderança de Yeltsin, é formada a CEI (Comunidade de Estados Independentes). De tal maneira, a URSS se tornou uma casca vazia. Assim, Gorbachev faz seu melancólico discurso de renúncia da cadeira de presidente da União Soviética no Natal de 1991. Nesse então, se consolida como figura máxima na Rússia, Boris Yeltsin, o bêbedo que mostrou ser astuto na luta contra Gorbachev e contra os “duros”. Mas, logo em seguida, levou a Rússia à catástrofe das privatizações manipuladas, a farra da corrupção e permitiu a emersão das máfias. Tudo isso foi construído com as mãos das “crias” do moribundo partido stalinista.

A natureza estrutural da crise profetizada por Trotsky na Revolução Traída 

O Estado soviético era um Estado operário. A revolução bolchevique expropriou a burguesia russa e o czarismo. Mas, logo em 1924 Lênin morre e em seguida Stalin triunfa no aparelho do partido. Paralelamente a isto, com os efeitos contrários da guerra civil, milhares de soldados e operários que participaram da revolução são mortes, soma-se ainda a crise na economia, da crise de abastecimento e o isolamento da revolução vide a derrota da revolução alemã, o Estado soviético passa a ter que gerir a escassez. Aí está o ponto concreto. Pois, nesse contexto, os funcionários do Estado e do partido único passaram a exercer um grande poder. Este é o fundamento em essência da burocracia.

Esta burocracia, originalmente oriunda da classe trabalhadora, servia aos interesses do Estado soviético. Porém, passa a defender, diante das circunstâncias e da escassez, seus próprios privilégios. De tal modo, essa burocracia se torna uma casta privilegiada e anti-democrática. Para tanto, o posicionamento chave da casta é o aparelho de Estado. E simultaneamente, no caso das experiências de tipo stalinistas, o partido único. 

A burocracia, por assim dizer, é um produto de um refluxo. Isto gerou inevitavelmente o ponto controverso de caracterização dos Estados operários burocratizados, que ao mesmo tempo não são nem capitalistas e nem socialistas. Eles estão, fazendo uma analogia, no meio do rio entre uma ponta e outra. Esse era um pouco o diagnóstico de Trotsky frente à burocratização da URSS.

Entretanto, Trotsky não parou por aí no prognóstico, para ele, caso não ocorresse uma contrarrevolução imperialista ou uma nova revolução socialista, democrática e anti-burocrática, a burocracia estabilizada para perpetuar seus privilégios iria se converter em uma espécie de “acionista” das burguesias estrangeiras. Esse processo em série iria levar inevitavelmente a restauração do capitalismo nos países do “socialismo real” pela própria burocracia. E isto foi o que ocorreu na União Soviética, tal como Trotsky havia “profetizado”.

Consequentemente, Trotsky formulou a orientação de defesa dos países operários burocratizados frente a uma guerra mundial e a tentativa de invasão imperialista. Entretanto, Trotsky agregou o conceito de revolução política. Isto é, uma revolução dos trabalhadores contra a casta burocrática. E assim recolocar nos trilhos o trem da revolução socialista sob as bases da democracia operária. Tais revoluções chegaram a existir de modo mais cristalino na Hungria em 1956 e na Tchecoslováquia em 1968. Porém, em ambos os casos, as tropas soviéticas comandadas pelos stalinistas, esmagaram os levantes populares.

A ausência de direção 

Os tanques soviéticos, no entanto, não foram capazes de deter uma revolução democrática e anti-burocrática que sacudiu os países do leste europeu a partir de 1989. Esse acontecimento foi determinante para alterar a situação mundial e a selar o destino do stalinismo como um aparelho contrarrevolucionário mundial. Porém, a revolução reunia características que não foram previstas pelo marxismo revolucionário. Quer dizer, ocorreram explosões populares, greves gerais e mobilizações multitudinárias. A queda do Muro de Berlim, assim como a derrubada das ditaduras na Tchecoslováquia, Polônia, Romênia, Albânia, além da Lituânia, Estônia, Letônia, Armênia, Moldávia e Geórgia, foram efetivadas por revoluções rebelde das massas. Embora o processo em si contivesse confusão ideológica, programática e a ausência de uma genuína direção socialista revolucionária.

Lamentavelmente, desse rico processo não surgiu partidos operários independentes com influência de massas que pudessem disputar a revolução para um programa de retomada das bandeiras de outubro. Desse modo, os setores que capitalizaram com a revolução democrática foram os pró-capitalistas. 

Por tudo isso, a ilusão no capitalismo acabou prevalecendo. De tal maneira, o imperialismo não vacilou e realizou uma contraofensiva econômica, política e ideológica. Portanto, a revolução democrática e anti-burocrática na URSS não caminhou para uma revolução política como defendeu Trotsky. Entretanto, o aparelho contrarrevolucionário mundial do stalinismo deixou de existir. Esse fator possibilitou o surgimento de novas direções políticas, sindicais, classistas e independentes. Contudo, o balanço é contraditório já que a resultante foi a restauração do capitalismo no Leste Europeu. Mas, as lições para o tempo presente estão sob a mesa para que os erros do passado não sejam repetidos no futuro.


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