Nicarágua: desterrados, porém livres
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Nicarágua: desterrados, porém livres

Ditadura Ortega-Murillo libertou e exilou 220 presos políticos esperando redução de sanções internacionais

Sergio Ramírez 10 fev 2023, 11:12

A grande maioria dos presos políticos da Nicarágua cumpria pena nas prisões da ditadura por crimes que nunca cometeram, inventados em leis repressivas adotadas para esse fim. Ontem, 9 de fevereiro, 220 deles foram libertados, colocados em um avião fretado e enviados nas primeiras horas da manhã para o exílio – da mesma forma arbitrária em que foram capturados e submetidos a julgamentos que nunca tiveram qualquer valor legal, e mantidos em condições iníquas em celas de isolamento, alguns deles confinados a suas casas. 

Acabo de ver o vídeo oficial no qual um magistrado, o presidente do Tribunal de Apelação de Manágua, lê em voz cavernosa, em uma sala vazia no Complexo Judiciário, a sentença na qual a pena de prisão é transformada banimento, e eles também são privados, perpetuamente, de todos os seus direitos políticos e civis por traição, outro ato arbitrário sem qualquer base.

Pouco tempo depois, a Assembleia Nacional, reunida em sessão de emergência, aprovou com obediente unanimidade, um decreto para retirar a nacionalidade nicaraguense dos traidores à pátria, ou seja, aqueles banidos em voo, contrariando a Constituição. Ainda mais arbitrariedade. E esquecem que as leis não são retroativas por princípio universal, mesmo se fosse uma lei constitucional. Mas, na Nicarágua, os princípios universais não se aplicam mais. 

Exilados, apátridas, mas livres. Deus escreve certo por linhas tortas. E esta é apenas a primeira página. As melhores páginas ainda estão por vir.

Eles são despojados de sua nacionalidade para encontrar uma maneira de agradar os ouvidos de fanáticos raivosos, militantes cegos, paramilitares comprometidos com sangue na repressão – que devem sentir-se confusos, acostumados como estão ao discurso raivoso, martelados todos os dias de que esses traidores à pátria, terroristas responsáveis por um golpe de Estado em 2018, nunca veriam a luz do dia.  Esse tem sido o discurso oficial. Traidores, terroristas, lixo, vende-pátrias.  E eles a viram. Eles viram a liberdade. Como todo o país o verá um dia.

Todos os presos políticos sob a ditadura, aqueles que embarcaram no avião que os levou ao exílio e aqueles que ficaram, ainda não sabemos por quê, são nicaraguenses exemplares, que resistiram com dignidade durante longos meses em solitária, e fizeram da prisão sua trincheira de luta, a prisão onde nunca deveriam ter estado. Homens e mulheres corajosos, líderes políticos, sindicais e camponeses, defensores dos direitos humanos, executivos empresariais, jornalistas, líderes estudantis, juristas, acadêmicos, padres católicos e até mesmo um bispo, chefe das dioceses de Matagalpa e Estelí, Monsenhor Rolando Álvarez, uma voz profética da verdade.

Todos eles, culpados de um crime sacado da manga, “minando a soberania nacional”; a soberania sequestrada por um casal, uma família no poder, um velho partido revolucionário transformado em um arremedo de um sonho há muito fracassado.

Eles nunca se abateram. Nunca abaixaram a cabeça diante dos juízes mequetrefes nas audiências Orwellianas. Eles usavam uniformes de prisioneiros sem perder sua dignidade, e deram um exemplo de dignidade a um país silenciado pela força, que enquanto isso vê milhares saindo pelos pontos cegos através de suas fronteiras, fugindo da repressão, do silêncio, do medo. Um país que ainda não despertou de seu longo pesadelo, depois de outra ditadura ainda mais feroz, mas que ao decolar do avião que leva os prisioneiros desterrados, intimamente comemoram, como uma pequena alegria, mesmo sabendo que está longe do objetivo final de liberdade e democracia.

Sempre esteve claro que estes prisioneiros políticos eram reféns. A ditadura, diante de seu crescente isolamento internacional, quis manter esta moeda de troca, a única possível, os prisioneiros em troca de algo: as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos, a União Européia, o Canadá, a Suíça, a Inglaterra, tanto a entidades governamentais e empresas públicas e privadas simpatizantes do regime, quanto à polícia, funcionários públicos e membros da família ditatorial. Ainda não se sabe o que eles receberam em troca. O voo especial em que os reféns viajaram tinha como destino o aeroporto de Dulles, em Washington, mas o Departamento de Estado foi rápido em esclarecer, em uma comunicação aos congressistas, que esta era uma decisão unilateral de Ortega, “sua própria decisão”, e o incitam a tomar outras medidas para a restauração da democracia e da liberdade na Nicarágua, sem reconhecer qualquer compromisso.  

De qualquer forma, a ditadura ficou de mãos vazias. Sua melhor estratégia teria sido negociar os reféns em lotes, e não libertá-los todos de uma só vez, a fim de manter cartas na mão. Mau sinal, no que diz respeito a eles. E libertá-los não é uma prova de força, mas de fraqueza.  Prova-o declarando-os apátridas, uma vingança final, já fora do alcance de suas garras, como se seus decretos, e as sentenças e leis de seus coortes, juízes e deputados, tivessem valor perpétuo, e a Nicarágua continuaria a estar sob seu domínio para sempre.  

Estes exilados são mais nicaraguenses do que nunca.


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