Semterra: um sujeito transformador
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Semterra: um sujeito transformador

Reflexão sobre a luta social no campo construída a partir da dissertação do mestrado em história realizado pelo autor

José Carlos da Silva Lima 30 maio 2023, 09:00

O modo como o sistema econômico avançou no campo – abrindo novas fronteiras, utilizando extensas áreas para a produção exportadora, expulsando e assassinando indígenas e posseiros – transformou o acesso, a posse e o uso da terra numa exclusividade de poucas famílias. Essa prática é uma realidade em todas as regiões do país e resultou numa das maiores concentrações mundiais de terra. Esse movimento de concentração da propriedade da terra faz dela um dos elementos-chave na resolução da questão nacional, que para Ianni (2003) se encontra inacabada, com equacionamentos sempre provisórios.

Terra e conflito agrário são praticamente sinônimos; a terra e o inacabado nacional são elementos articulados. De tal forma isto é significativo que ela é o elemento central deste texto, envolvendo toda uma discussão da estrutura do poder e, também, de uma economia política fundada sobre o princípio de exclusão social, desde que se tornou matriz de produção no período colonial. Essa matriz de produção liga-se ao objetivo de povoar e leva a uma economia dependente, a uma política violenta e a uma sociedade excludente.

O campo brasileiro é marcado por conflitos de terras desde a intromissão econômica, política e cultural da colonização nas terras de Pindorama. O projeto de ocupação do território nacional arquitetado pela Coroa e por seus agentes no Brasil caracterizou-se por inúmeros conflitos de terras. O processo de colonização encontrou no uso da violência o instrumento eficaz para liberar a terra.

O uso da violência, inicialmente promovido pela Coroa, e depois pelo mando senhorial, não foi capaz de evitar os levantes e as lutas sociais no campo brasileiro, a exemplo do Quilombo dos Palmares (1590-1695), dos Cabanos (1832-1835), de Canudos (1896-1897) e do Contestado (1912-1916). No Brasil colônia, no Império ou na República, os conflitos são sinais de resistência e de recusa da dominação.

No século XX, em sua quinta década, as Ligas Camponesas foram uma das organizações que atuavam no campo, a protagonizar um debate fundamental em torno da redistribuição da terra, com um programa radical: reforma agrária na lei ou na marra. Essa trajetória foi interrompida pelos militares golpistas em 1964. As Ligas Camponesas ou o advento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) poderiam isoladamente sugerir a necessidade deste trabalho, porém a relevância dessa questão vai além dessas lutas. Ela incide sobre a fundamental compreensão do que representa para a história do País o predomínio de estruturas sociais que determinam modos de pensar, fazer política e de viver na sociedade brasileira nos seus mais de cinco séculos de existência.

Inúmeras são as famílias que há séculos lutam pela terra e desafiam o poder público e as oligarquias com a ocupação dos latifúndios. A relevância da questão agrária no Brasil não se deve apenas a uma antiga situação de exploração dos trabalhadores, quando houve o surgimento da estrutura social hierarquizada, herdada do passado agrário, mas foi forjada historicamente pelo modelo concentrador de terra e renda, de grande potencial produtor de riquezas para as elites. A posse e a propriedade da terra são elementos históricos necessários na leitura da sociedade brasileira.

Muitas dessas implicações foram vistas no clássico trabalho sobre o Nordeste, escrito por Manoel Correia de Andrade, fundamental para o entendimento da economia agrária. Com base no histórico da matriz de produção e na persistência dos fatores coloniais na atualidade da questão agrária brasileira, este texto privilegiará o conflito, a tensão, a resistência e o sujeito coletivo semterra.

É inconcebível uma compreensão histórica mais próxima do real do Brasil que deixe de fora o processo violento empreendido contra os povos originários, posseiros, quilombolas, entre outras populações, desde sempre tomadas pelo modelo como obstáculos ao desenvolvimento da nação. Também é inaceitável não registrar, não perceber, não aprofundar a resistência desses grupos subalternos que vivem no campo brasileiro e lutam para nele permanecer ou conquistar terras e territórios, como se não houvesse uma história política e social. Essas reações e ações quase sempre resultam em conflitos com o sistema econômico e político.

A questão da terra vai além da reforma agrária. Entende-se como reforma agrária tanto a política do governo federal, que toma a Constituição brasileira como instrumento para efetivá-la, como, também, o processo de luta dos semterra; dos movimentos sociais do campo; dos intelectuais comprometidos com essa causa; dos partidos políticos de esquerda, de setores da Igreja Católica e de Igrejas protestantes.

Esse confronto entre os que desejam e lutam pela reforma agrária e os que se mantêm no poder, tendo a terra como lastro, não deve ser resumido à realização da reforma agrária, à desapropriação de propriedades e ao assentamento de famílias semterra. O conflito agrário, do lado dos que sofrem a ação do sistema capitalista, é muito mais complexo e tem outros autores e protagonistas aqui citados para exemplificar os povos originários e os quilombolas.

Quando o tema é a Constituição Federal de 1988, mesmo reconhecendo que se verificaram avanços significativos como a elaboração de capítulo especial, pela primeira vez, sobre a reforma agrária, no qual se enunciam elementos como a função social da terra e a perda sumária das áreas de psicotrópicos, preservou-se a falácia da propriedade produtiva e o restabelecimento do pagamento prévio como uma derrota, retrocedendo aos níveis da Constituição de 1946.

Compreende-se que o arcabouço jurídico é um instrumento derivado de um Congresso que é composto, em sua maioria, por políticos de direita com compromissos ideológicos e financeiros ligados ao agronegócio.

O que se pode chamar de ensaio da reforma agrária brasileira é, antes de tudo, resultado dos enfrentamentos políticos dos semterra e dos movimentos sociais do campo. Isso implica que se concorda com a tese de que existe no País, além dos debates ideológicos e acadêmicos, uma luta in loco e processual pela posse e pelo uso da terra. Neste espaço de pensamento, acham-se os que percebem a Reforma Agrária como resultado do conflito, da correlação de forças entre os movimentos sociais, governos e agronegócio.

O conflito agrário pela posse e pelo uso das terras é resultado de uma ação de resistência ao sistema agrário modelado pela acumulação capitalista, secularmente estabelecido no Brasil desde a montagem inicial da matriz de produção, a gerar uma sociedade de exclusão e uma política de violência.

O movimento é de resistência aberta e clara, coordenada e com tensões permanentes. As conquistas de terras são o resultado dessa experiência conflituosa e da organização coletiva. As resistências dos semterra são argumentos políticos contra a estrutura agrária arcaica ou, conforme o caso, contra a modernização inconsequente do agronegócio, que imprime uma lógica de acumulação sobre a pobreza tão forte quanto arcaica. Os semterra são aqueles que se recusam a permanecer à margem das disputas políticas e não aceitam a dominação.

O sujeito coletivo e político que se envolve no conflito são as famílias semterra; elas são as protagonistas que mantêm a tensão quando assumem o engajamento político ou quando ocupam um imóvel rural e estabelecem naquela propriedade uma rotina de vida e uma defesa coletiva e sistemática do acampamento. Aprofundam este conflito quando resistem a todo tipo de ameaças e constrangimentos, como a utilização de capangas, de pistoleiros; ou dentro da “ordem”, como no caso de uma decisão judicial que determina a reintegração de posse do imóvel ocupado ao suposto proprietário, despejando as famílias, sem nenhum tipo de amparo do Estado.

Os conflitos não foram nem são necessariamente suficientes para a superação do modelo agrário, mas foram e são capazes de questioná-lo e, em alguns casos, de provocar derrotas pontuais à oligarquia local. São inaugurados territórios livres de produção e, assim, ao refazerem o desenho da estrutura agrária, podem modificar a correlação de forças no município ou na região. Essa modificação estrutural, entendendo o conflito como um dos instrumentos dessa transformação, esclarece um movimento persistente dos semterra como agentes de alteração do status quo.

Dessa forma é que se pode encontrar a singularidade dos casos, dos locais, que, na realidade, são momentos especiais dos processos coletivos. O movimento, apesar do contexto geral em que se apresenta, se faz em momentos de confronto no local e a ele pertence, como forma concreta da contradição que se opera. O tensionamento é inerente à natureza da reação dialética e trabalha com o que é concreto, em função de um tempo e de um espaço.

O acampamento não existe em si mesmo, já que se caracteriza como relação. Ele está ligado a outros e se acha em movimento. Nessas relações, entra em confronto com o sistema agrário vigente, atuando como um agente, em busca de transformação, mediante um enunciado político que é espelhado na reforma agrária. Esse novo sujeito vai de encontro aos interesses que predominam nesse sistema de relações. É falso apresentar essa situação como um conflito entre os semterra e aquele fazendeiro ou aquele usineiro.

A tensão básica que se estabelece parte da possibilidade de aquela ocupação desajustar o mando senhorial; é nesse campo que todas as tensões se apresentam. De um lado, aqueles que amparam o mando senhorial, e do outro, os que contribuem para o desajuste desse modelo. São duas forças políticas de tendências opostas: a da manutenção e a da transformação.

O senhorial está intrinsecamente relacionado à terra como instrumental econômico e de poder. Seguindo esse raciocínio, dividir terra (permitir uma reforma agrária) equivaleria a dividir poder e, consequentemente, à perda de mando. A estrutura procura evitar qualquer tentativa de mudança, especialmente quando esta atinge a forma como o sistema jurídico define o direito de propriedade.

Ao recusarem viver às margens dos processos políticos e econômicos − condição de participação definida pelas elites agrárias como o espaço possível para sua reprodução −, os semterra entram em tensão com a injustiça formulada ideologicamente como sendo de direito.

Esses enfrentamentos ocorrem em todas as regiões do Brasil, pois se está diante de um problema básico da estrutura de produção nacional. O amesquinhamento do direito de propriedade encontra-se em todas as regiões do País, porém sofrendo as especificidades dessas regiões. Embora se tenha essa situação generalizante, o conflito se define no cotidiano local onde as ações se desenvolvem.


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