Uma mulher negra no STF: Um diálogo marxista
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Uma mulher negra no STF: Um diálogo marxista

Um debate sobre o papel do direito e do STF para os socialistas é essencial para verificar as possibilidades e limites dessa instituição para o avanço da luta antirracista

Diogo Dias e Letícia Chagas 30 set 2023, 14:55

Desde que Lula foi eleito, parte da vanguarda do movimento negro e juristas antirracistas passaram a debater a necessidade de que o presidente indicasse uma mulher negra como ministra do Supremo Tribunal Federal. Isto porque, em seu governo, os ministros Ricardo Lewandowski e Rosa Weber se aposentariam de maneira compulsória – ou seja, obrigatoriamente, dado que atingiram a idade limite para o cargo -, abrindo com isso duas vagas. 

Essas expectativas logo foram frustradas. O primeiro indicado de Lula ao STF foi Cristiano Zanin: um homem branco, que ganhara notoriedade ao defender Lula nos processos da lava-jato. Em pouco tempo como ministro, Zanin demonstrou ter posições conservadoras, como a defesa da criminalização da posse de drogas.

 Em outubro, Rosa Weber se aposentará, e parte importante de juristas e intelectuais negros, bem como do movimento negro organizado, têm buscado pressionar o presidente a indicar uma mulher negra e progressista dessa vez. Com esse intuito, foram criados sites, realizadas intervenções visuais  mundo afora, bem como organizadas manifestações.

A falta de diversidade do judiciário brasileiro é um problema real, que reflete o racismo que permeia nossa sociedade. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça de 2018, 80,3% dos magistrados são brancos, ante 18,1% negros, ainda que negros sejam a maioria da população brasileira. Mas, como militantes comprometidos com a construção de um outro modelo de sociedade, é necessário nos aprofundarmos nesse tema. Debater sobre o papel do direito e do STF para os socialistas é essencial para verificar as possibilidades e limites dessa instituição para o avanço da luta antirracista. 

O que deve ser o STF para os socialistas?

É comum que militantes de esquerda revolucionária apontem que o STF é uma instituição reacionária. Diversos motivos são apontados para comprovar essa tese, desde os relacionados ao conteúdo das decisões – o papel do STF para o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, as decisões pró-empregador em ações trabalhistas – , quanto à composição e organização do tribunal – a vitaliciedade dos cargos e o fato de os ministros não serem eleitos, por exemplo. Todas essas críticas são importantes e dignas de serem debatidas. Contudo, não é necessário ser marxista para fazê-las. A crítica marxista ao STF deve ser mais profunda e constituir-se, sobretudo, como uma crítica ao direito, buscando a essência do fenômeno jurídico, não apenas sua aparência. 

Isso é importante porque, caso contrário, poderíamos supor que a mudança no conteúdo das decisões do STF, bem como mudanças institucionais no órgão, poderia transformá-lo em uma instituição a serviço da classe trabalhadora, o que não é verdade. Do mesmo modo, se Marx não tivesse buscado a essência do modo de produção capitalista, dissecando a forma mercadoria, defenderíamos que uma mera política redistributiva – mais impostos aos ricos, mais políticas de transferência de renda aos pobres – seria o suficiente; contudo, como revolucionários, sabemos que apenas uma mudança na esfera de produção poderá colocar fim à exploração da classe trabalhadora. 

Como marxistas, devemos ir à essência do fenômeno jurídico. É isso o que fez Evgeni Pachukanis em seu texto “Teoria Geral do Direito e Marxismo”. O elemento mais simples da forma jurídica é o sujeito de direito. Somos todos livres e iguais, independente de nossa classe social, porque nos constituímos enquanto sujeitos de direito. Como sujeitos de direito, podemos vender nossa força de trabalho aos detentores dos meios de produção, em troca de um salário. Por isso, como aponta Pachukanis, “a relação de exploração capitalista é mediada pela forma jurídica do contrato” (“Teoria Geral do Direito e Marxismo”, Editora Sundermann, p. 138).

A forma jurídica está intrinsecamente ligada ao modo de produção capitalista, porque é um reflexo da forma mercadoria. Daí que a abolição do sistema capitalista pela classe trabalhadora deverá significar também uma abolição da forma jurídica. O fim do direito levará, por óbvio, ao fim do judiciário.

Contudo, nada indica que estamos em um período revolucionário, portanto não há qualquer possibilidade de extinção da forma jurídica hoje. Nesse cenário, sabemos da importância de juristas comprometidos com a classe trabalhadora, lutando contra a criminalização dos movimentos sociais e contra o avanço da precarização de direitos sociais e trabalhistas. Para além disso, nosso compromisso com a construção de um novo mundo não deve servir de pretexto para fecharmos os olhos para o racismo que permeia nossas instituições hoje, ainda que seja essencial sabermos quais  os limites que elas impõem à nossa estratégia revolucionária. Por isso, defendemos que este governo deve indicar uma ministra negra e comprometida com a defesa da classe trabalhadora para o Supremo, sem com isso depositar todas as nossas esperanças sob essa instituição.

Qual deve ser o centro do debate antirracista no Brasil?

A indicação de uma mulher negra e de esquerda tem sua importância diante de um tribunal majoritariamente branco e masculino, que em mais de 100 anos de história nunca teve uma mulher negra como ministra. Não à toa, essa possibilidade vem incomodando muita gente, inclusive o próprio presidente Lula, que já declarou que não se utilizará de critérios de gênero ou raça para fazer sua indicação. Em um país como o Brasil, a possibilidade de que uma mulher negra ocupe o maior cargo do judiciário é um afronte à branquitude que se mantém na burocracia estatal à base de troca de favores e acordos fechados em jantares. 

Mas é preciso lembrar que muitos  ataques à população negra vem acontecendo sob o governo de Lula. Os governos anteriores do PT já indicavam uma tendência de pouco caso com as pautas antirracistas, mas sobretudo contribuíram para uma política de maior encarceramento da juventude negra a partir da Lei de Drogas de 2006 e o envio de tropas ao massacre do Haiti, que provocou a morte de centenas de vidas negras colonizadas. Para nós, não é novidade que governos reformistas utilizem-se das pautas anti-opressão como uma moeda de troca à direita conservadora.

No atual mandato de Lula, diversos temas também são alvo de preocupação. A PEC da Anistia aos partidos políticos que não cumpriram com a distribuição financeira equânime aos candidatos negros foi, por exemplo, uma defesa da atual presidente nacional do PT, a deputada Gleisi Hoffmann (PR). Além disso, há um processo de privatização de presídios em curso, transformando o problema do encarceramento em massa da população negra em lucro. 

Importante lembrar que um dos elementos que caracterizam o racismo estrutural no Brasil é a superexploração da força de trabalho negra. É essa a realidade em que vivem hoje os entregadores de aplicativo, que são em sua maioria homens negros que trabalham colocando suas vidas em risco diariamente para que consigam ter o mínimo para sobreviver. Infelizmente, a promessa de Lula em garantir a seguridade social a esses trabalhadores ainda não foi cumprida.

O arcabouço fiscal aprovado por este governo também é um retrocesso para a classe trabalhadora brasileira, que é em sua maioria negra. Diversos movimentos sociais se engajaram na campanha de Lula na esperança de que as reformas neoliberais aprovadas nos últimos anos fossem revogadas, à exemplo da reforma trabalhista, a reforma da previdência, o “novo” ensino médio e o teto de gastos. Contudo, não é isso o que vem acontecendo; ao contrário, o ministério da economia, sob a liderança de Haddad, vem levando adiante uma política de ajuste fiscal que diminui o investimento em políticas sociais tão importantes à população negra e periférica do nosso país.

É essencial que o movimento negro se mobilize pela melhoria da vida objetiva de nosso povo, assim como vem se mobilizando por pautas relacionadas a maior representatividade negra em postos de decisão e poder. Não podemos aceitar que o neoliberalismo progressista siga cooptando nossas pautas a serviço da manutenção de um sistema que explora nossa força de trabalho, como vem denunciando a teórica Nancy Fraser. 

Por isso, não somos ingênuos de achar que apenas a representatividade irá causar uma mudança na realidade da negritude. Acreditamos que o movimento negro deve ir além das pautas de representatividade e se voltar à massa negra que se encontra nas periferias das cidades e estão à margem do acesso à água, alimentação, trabalho, saúde e educação de qualidade. 

Por tudo isso, é que temos a certeza de que a indicação de uma mulher negra e progressista ao STF não irá mudar todos os problemas raciais no Brasil, mas pode contribuir para um olhar atento e comprometido com os problemas do nosso povo. Isso será um avanço para o conjunto da sociedade brasileira, mas a transformação não virá através de instituições jurídicas e sim da organização de massas da negritude e de toda a classe trabalhadora. 


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