Um mês do massacre contra o povo palestino
Notas sobre a escalada de violência promovida pelo apartheid sionista
Foto: Wikimedia Commons
1. A definição do secretário-geral da ONU, António Guterres acerca do que se passa em Gaza é inequívoca: um verdadeiro cemitério de crianças, a céu aberto. Passados um mês de combates sangrentos, uma parte da mídia ocidental teima em batizar de guerra Israel-Hamas, quando é, na verdade, uma agressão colonial para fortificar o apartheid. São quase 12 mil mortos (mais de 5 mil, crianças), destruição de hospitais, escolas, universidades, acabando com a infraestrutura de Gaza, assediando, via milicianos e colonos, a Cisjordânia; pautando a política mundial.
2. Estamos diante de acontecimentos de grandes proporções. A “nova Nakba” é a política levada adiante por Netanyahu e pela ala neofascista de seu governo, expressão mais extrema da cara racista do ascenso da ultradireita no mundo Os efeitos catastróficos podem ser superiores aos de 1948, desterrando de forma violenta e forçosa mais de 2,3 milhões de palestinos. Um dos planos que vazaram, do Ministério da Inteligência, foi o de um deslocamento forçado, com a entrada de mais de um milhão de pessoas no Egito.
3. Não é exagero utilizar a comparação com o 11 de setembro de 2001. Há uma mudança enorme no âmbito da geopolítica, acelerando a crise internacional, reagrupando e quebrando polos, alianças e relações. As votações na ONU são uma ilustração inicial. A já instável ordem mundial, determinada pela chamada “policrise”, se reordena de forma caótica, acirrando e polarizando disputas.
4. Temos que analisar, portanto, as dinâmicas do confronto militar, da geopolítica e da resistência de massas.
5. A ação militar do Estado de Israel se baseia numa violenta resposta à ação do Hamas. Netanyahu afirma como seu objetivo militar principal destroçar as forças do Hamas, possivelmente com a ocupação militar de Gaza e uma nova fronteira colonial na Cisjordânia, além de acirrar o apartheid dentro de Israel. Trocando em miúdos, Netanyahu quer impor o modelo de “Grande Israel”, soterrando os acordos de Oslo.
6. Netanyahu dobra a aposta, buscando superar a crise do período anterior, coesionando as alas mais à direita, que apoiam a linha de “guerra total”. A coalizão liderada por ele envolve os setores mais à direita do Likud; seu núcleo mais duro, forjado na aliança anterior com Ariel Sharon, figura conhecida pelos massacres de Sabra e Chatila, na guerra do Líbano em 1982, superou pela direita o antigo aliado. A partir de 2005, Netanyahu encabeça o giro à direita no Likud, encontrando-se com grupos terroristas que responderam pelo assassinato de Yitzhak Rabin. A maior expressão é Bem Gvhr, ministro atual do governo, líder dos supremacistas judeus, que se envolveu em grandes polêmicas, como a campanha da libertação de Yigal Amir (o homem que atirou em Rabin) e a as ações violentas no bairro Sheik Jarra, em 2021, em JerusalémOriental.
7. Para tanto, na arena internacional, conta com apoio direto de Biden, dos Republicanos, do eixo anglo-francês na UE, seja através do reacionário Sunak, seja com o centrista Macron e o provável futuro premiê inglês, o trabalhista, Starmer.
8. Antes do 7 de outubro, na Assembleia da ONU, em NY, dia 22 de setembro, Netanyahu anunciou um acordo histórico com a Arabia Saudita, bradando para as câmeras de TV um mapa do Oriente Médio, onde Gaza e Cisjordânia estariam anexadas à “Grande Israel”.
9. A vitória de Israel abriria uma nova fase, concretizando e justificando o estado supremacista e racista, avalizando a metodologia da extrema direita de limpeza étnica. Seria uma linha protofascista que teria um centro irradiador, com alta capacidade de inteligência e ação para a extrema direita, coordenado com importantes setores da burguesia mundial. Trump é a máxima expressão dos neofascistas. Sua eventual vitória eleitoral fortaleceria muito a essa direita. Uma corrente à direita do governo israelense já defende uma solução nuclear, o ministro Amichai Eliyahu, encarregado dos assuntos de Jerusalém, disse que jogar uma bomba atômica na Faixa de Gaza é “uma opção”.
10. O problema da escalada regional do conflito é o outro fantasma que assola a estratégia militar de Bibi. As hostilidades na fronteira com o Líbano e as contradições com o Irã colocam o problema e risco de um novo passo. Além disso, aliados regionais importantes têm problemas maiores: a ruptura de relações da Jordânia e a dificuldade do Egito em gerir o caos de refugiados e migrantes. O Hezbollah está cauteloso, diferentemente de 2006, quando se consolidou parando o exército sionista. Também cauteloso está o Irã. A reunião de países árabes em Riad adotou uma postura tímida, com as autocracias árabes evitando um confronto direto, condenando Israel, apenas por declarações.
11. Se aprofundam as tensões no âmbito da geopolítica; isso coloca noutro patamar as tensões interimperialistas, marcadas pela guerra na Ucrânia; pelos conflitos nos países africanos; pela tensão sobre Taiwan, além das disputas entre China e EUA. A ação de Rússia e Irã, com apoio da Turquia e de outros pesos pesados do mundo árabe (especialmente a Síria de Assad, principal parceira militar da Rússia), vem dando bases para uma contradição mais aguda. Se somamos que há um amplo consenso dentro da ONU em favor do cessar-fogo e considerando a ação de Israel como “punição coletiva”, temos uma nova variação da polarização anterior, expressa na guerra da Ucrânia, onde a agressão do imperialismo russo encontrava uma crítica – na verdade, mais retórica que real – das ditas potências do ocidente.
12. A China segue com uma postura prudente. Vamos ver o que sairá da reunião entre Biden e Xi. A questão central é que há um deslocamento do epicentro da guerra da Ucrânia para a Palestina. Isso representa um revés para a resistência ucraniana, fortalecendo as tropas russas, com um maior cansaço na opinião pública, e levando a hipocrisia ocidental a “conter” os já reduzidos apoios logísticos e militares à resistência civil-militar ucraniana.
13. O papel do imperialismo estadunidense está na berlinda. Biden e Blinken atuam com duas políticas: por um lado sustentam o apoio a Netanyahu, de forma pública. Além de apoio militar, com aporte de navios e de um submarino de última geração, além de colaboração no plano da inteligência cibernética, a força do apoio político dos Estados Unidos é a base da coalizão de morte do sionismo. Biden quer evitar que Trump capitalize a representação das poderosas forças sionistas, sendo ele, Biden, o fiador da política militar de Israel. Por outro lado, quer evitar um conflito em escala maiores, que coloque o Oriente Médio numa guerra sem previsibilidade, por isso se reuniu com Abbas para discutir uma saída “mediada” para Gaza, uma suposta “ocupação” da ANP, mais subordinada e dócil. Seria muito difícil para Abbas aceitar “controlar” Gaza após uma operação de terra arrasada de Israel. Com a mudança na opinião pública, a linha de Biden/Blinken vai matizando mais com Netanyahu.
14. Uma lista crescente de países rompe relações com Israel e condena suas atitudes. Na vanguarda estiveram Bolívia e Colômbia, além da Turquia de Erdogan; a esses se somaram a Jordânia, África do Sul, entre vários, além de universidades de diversos países que romperam contratos e acordos com Israel – vale usar o exemplo da universidade australiana que cessou sua cooperação acadêmica com a Elbit, fabricante de armas israelense.
15. A mudança na mentalidade mundial ocorre ao passo em que as manifestações crescem.
Na medida que o massacre se evidencia, ao longo do mês, a opinião pública que aceitava a condenação do Hamas como centro, e implicitamente o apoio à Israel foi mudando. Inclusive, com Macron, adotando outro tom, chegando a falar na BBC em “apoio ao cessar-fogo imediato”, duas semanas depois de atuar para criminalizar publicamente manifestações de apoio à Palestina na França. Existem fortes posições de massas, em unidade objetiva com Estados, como os setores islâmicos, caso da Turquia. A Síria é outro vetor que cumpre um papel regional, com grupos armados no Iraque. Temos que considerar que existe uma campanha da mídia ocidental muito intensa para sustentar e legitimar a agressão à Gaza. Ainda assim, com os bombardeios aos hospitais, a ação na ONU e o crescimento dos atos, a situação se inclina para outro lado. Os países vizinhos à Palestina não se colocaram em movimento, um dos pontos fracos na resistência mundial: no Egito prima a crise geral e estado de guerra; no Líbano, dois terços da população estão contra o envolvimento do país num conflito. Países como Marrocos e Argélia, de outra parte, tiveram concentrações expressivas em apoio à Gaza, com os argelinos saindo às ruas pela primeira vez após a pandemia, depois do processo massivo de lutas conhecido como Hirak.
15. Há uma mudança no ânimo do estado de massas no mundo, com a opinião pública dos países virando a favor da Palestina. Sobretudo, entre os jovens. Há uma retomada da identidade, que teve eco nas intifadas passadas, dos povos oprimidos, das “periferias do mundo”. O temor do governo francês às manifestações evoca o recente levante dos subúrbios, por isso tentou impedir, sem êxito, as concentrações. A polarização na França levou a atos pro-sionistas, a ações de grupos antiárabes e bandas fascistas.
16. Há desigualdade nas manifestações, contudo. O ponto mais alto foi na Inglaterra, onde tivemos uma manifestação de 500 mil pessoas, a maior a favor da Palestina na história e a mais numerosa passeata em 20 anos, retomando a luta contra a guerra do Iraque. A marcha causou crise e divisão nos dois partidos centrais – tories e trabalhistas -, levando à queda da ministra do interior, Braverman, que tentou proibir a passeata. A crise política do governo Torie se agudiza no bojo da forte resistência árabe-migrante. As manifestações pelo mundo tiveram eco em muitos países periféricos, combinando passeatas da esquerda com comunidades árabes e muçulmanas. A Indonésia, por exemplo, tem tido manifestações semanais com centenas de milhares de pessoas. Além de destacar o processo dos Estados Unidos, com milhares de pessoas tomando as ruas com o chamado dos Judeus antissionistas eparcelas amplas da juventude – o mais importante está nas universidades, onde o ME mobiliza-se em solidariedade à Palestina, num fenômeno muito progressivo.
17. Também vale registrar as ações dos sindicatos para bloquear o envio de armamentos, como a que foi feita na Bélgica, na Grã-Bretanha e pelos estivadores de Barcelona. Embora minoritárias, são passos concretos de solidariedade, atuando no coração da classe trabalhadora.
18. Como tendência contrastante, diante das crises orgânicas recorrentes, da degradação das condições civilizatórias e da ausência de uma consciência socialista, devemos ter o fortalecimento de correntes islâmicas; a adaptação do Fatah e da OLP abriu caminho para o Hamas capitalizar a energia das duas intifadas – 1987 e, especialmente, a de 2000. Entender como isso vai se dar no processo geral do mundo árabe é uma chave inquietante da nova situação. A fragilidade da resistência ucraniana corrobora o cenário, que tende a reforçar a situação de caos geopolítico, sem uma saída positiva com capacidade de gestar uma alternativa de massas.
19. Há espaço para uma reorganização à esquerda na juventude, com a defesa da causa dos palestinos. Por exemplo, o papel que Greta Thumberg, recente ícone dos movimentos ambientais, defendendo a Palestina sem meias palavras, é uma ponte entre setores e pautas. Como em todos os momentos históricos nos quais a juventude toma parte na luta anticolonial – como foi, a seu tempo, a juventude que se solidarizou ao Vietnã e a que se associou à heróica luta de Mandela contra o apartheid.
19. Essa mudança também divide águas na esquerda. O papel radicalizado de Mélenchon na França, da ala esquerda do DSA (Rashida Talib) aponta para uma unidade concreta com a esquerda radical. As hesitações de figuras como AOC, os trabalhistas ingleses e uma parte do PSOL foram nítidas.
20. O MES tomou posição imediata, quando da agressão covarde à Gaza. Tivemos uma posição corajosa, vocalizada por Luciana Genro e, depois, pelo conjunto da corrente, em defesa da causa palestina. Monica e Bruna, em SP, foram ameaçadas por parlamentares sionistas, recebendo solidariedade da comunidade árabe.
21. A ação encabeçada por Fernanda Melchionna e Glauber na Câmara, recolhendo a assinatura de quase 70 deputados federais a favor do cessar-fogo e em defesa dos palestinos foi importante. Um gesto exemplar que teve repercussões políticas importantes.
22. Lula teve uma postura híbrida. Por um lado, reconheceu o genocídio e Mauro Vieira foi protagonista da resolução que pedia cessar-fogo e corredores humanitários; por outro, não fez jus ao seu lugar privilegiado no conselho de segurança, onde poderia, após a resolução desmoralizada da ONU, ter seguido o exemplo de países menores e menos potentes como Jordania, Bolívia, África do Sul, e com destaque, a Colômbia. O Chile também adotou um discurso mais duro. O pior foi que a postura atrasada do governo brasileiro atuou como elemento “disciplinador” da esquerda, com a omissão de partidos como o PT e o PSOL (que não quis dar publicidade à sua própria nota).
23. A chegada de brasileiros, após um mês, reforça a luta e a moral do povo palestino. Foram imagens fortes, com o governo brasileiro endurecendo mais o discurso. Lula chegou a falar da ação terrorista do Estado de Israel. Consumado esse fato, não há mais justificativas para o governo não convocar seu embaixador e abrir caminho para a formalização da ruptura de relações com Israel. A provocação do embaixador sionista, em conluio público com Bolsonaro na Câmara só pode ser respondida de forma contundente.
24. As manifestações no Brasil também têm sido importantes, com peso de vanguarda em várias cidades: as mais fortes foram em POA e em SP -onde reuniram-se 12 mil pessoas em apoio à Palestina, no dia 4 de novembro, na Avenida Paulista, principal via pública do país. São marchas semanais que marcam uma posição pública e disputam contra a mídia hegemônica, mostrando a resiliência e disposição de luta da comunidade árabe palestina do Brasil.
25. Apesar de estar pendente da troca de reféns e dos apelos para uma trégua parcial de três dias, o exército israelense segue sua incursão terrestre em Gaza, combinando com os bombardeios e ação civil-militar sobre Cisjordânia, numa situação altamente instável, por que não dizer, imprevisível.
26. Temos que seguir a nossa localização, debatendo iniciativas, como a do ato da USP com intelectuais e referentes da comunidade acadêmica, defendendo também a declaração da IV internacional, que apoia a resistência e a causa palestina, sem cair no campismo e segue denunciando Putin e a ocupação russa na Ucrânia.
27. Devemos fazer um apelo à juventude e ao povo em geral, além de atividades de propaganda:
a. Defesa do cessar-fogo imediato, ajuda humanitária imediata;
b. Abaixo o genocídio do povo palestino, fim do apartheid colonial. Não à evacuação forçada;
c. Como escreveu o responsável pelo alto comissariado da ONU, Craig Mokhiber: “Devemos trabalhar pelo cessar-fogo imediato e o fim do assédio à Gaza, nos opor a limpeza étnica de Gaza, Jerusalém, Cisjordânia (outros lugares), documentar o ataque genocida contra Gaza, ajudar a proporcionar ajuda humanitária massiva e reconstrução, cuidar dos nossos colegas traumatizados e suas famílias (…)”;
d. Defender a ruptura de relações diplomáticas, de contratos militares e comerciais entre o Brasil e o Estado de Israel, até que cessem as ações em Gaza, a exemplo de outros estados no mundo;
e. Pela liberdade para Ahed Tamimi e outros 7 mil presos políticos da causa palestina;
28. Devemos explorar nossa última Revista Movimento, onde estão os artigos mais importantes publicados sobre o tema, além de textos históricos sobre a Palestina e a luta anticolonial. A Comissão Internacional do MES tem realizado atividades constantes, participando das frentes e fóruns unitários que organizam e convocam as manifestações. Nossa orientação segue sendo dialogar com a vanguarda ativista, com total solidariedade às comunidades árabes no país, como já estamos fazendo; reforçar o polo da comunicação, com o Podcast em Movimento, as aulas que Fred Henriques têm feito; compartilhar e divulgar as atividades em andament;o.
29. Devemos seguir na dianteira da solidariedade, da luta que está pautando mundo, confiando na resistência do povo palestino, das massas em movimento, para abrir caminho para uma nova onda de luta anticolonial: como a que marcou a geração do Vietnã, antes da Argélia, e agora pode indicar um polo a favor da libertação dos povos, libertando do jugo colonial e do racismo que oprimem a Palestina e as periferias do mundo.