Um novo dezembro na Argentina
Direto de Buenos Aires, primeiras impressões da resistência popular contra o governo Milei
A história argentina é marcada por síncopes, ciclos de crises econômicas, onde as ruas e as praças são os palcos e todo o povo são os atores deste espetáculo. O mês de dezembro, principalmente, é regente principal de uma orquestra popular que vibra em tons de extrema felicidade, como foi dezembro de 2022, ano em que o país saiu campeão da copa do mundo e as ruas de todo o país estavam pintadas com as cores do povo. Há, também, tonalidades de luta que como uma tinta em spray marca para sempre a parede da história do país. Em dezembro de 2017 o país viveu uma jornada de luta contra a reforma da previdência proposta pelo então presidente Mauricio Macri, manifestações generalizadas e forte repressão marcaram o ultimo mês daquele ano. E pensando na síncope-tanguera popular argentina, é impossível não mencionar dezembro de 2001, o argentinazo. Movimentações em todo o país contra o presidente De La Rua, saques a supermercados, panelaços, organizações de bairros, etc. O resultado de toda essa movimentação foi a queda de 5 presidentes em 11 dias. Cá estamos nós, em outro dezembro, mas na mesma Argentina, onde um novo processo de luta se inicia.
No dia de 20 de dezembro de 2023 os argentinos começaram uma série de manifestações para indicar insatisfação quanto às medidas anunciadas pelo governo ultradireitista que tomou posse no país no último dia 10.
Um primeiro pacote de medidas foi anunciado no dia 12 de dezembro pelo ministro de economia Caputo. Trata-se de um brutal ajuste fiscal, cortes na folha de pagamento estatal, desvalorização forçada do dólar oficial. O discurso de Caputo com o selo Milei se resume na necessidade de que o povo aguente firme essas medidas, sem reclamar, fazendo os ajustes necessários no orçamento doméstico – discurso promovido pela mídia burguesa que ao longo desses primeiros 10 dias de governo chegou a defender a ideia de que os mais pobres se alimentem apenas uma vez ao dia.
O resultado prático – e imediato – dos anúncios foi catastrófico. Supermercados lotados, onde a classe média tentava estocar alguns produtos essenciais e uma disparada no preço de diversos produtos, principalmente gasolina e carne.
O ajuste econômico casou-se com um pacote anti-piquete/anti-manifestação anunciado pela ministra de segurança pública e candidata derrotada da corrida presidencial 2023 Patricia Bullrich, um tradicional quadro político da direita argentina, agente direto de momentos de crise e de repressão como em 2001 ou o desaparecimento de Santiago Maldonado em 2017.
O segundo pacote econômico foi anunciado na noite de ontem 20 de dezembro, data emblemática para a Argentina. Trata-se de um decreto nacional de urgência (DNU), mecanismo constitucional que dá ao presidente o poder de legislar sem o congresso em situações de urgência. Desde então, todas as medidas adotadas pelo então presidente empossado, Javier Milei, traduzem-se em três aspectos principais: privatização, flexibilização e cortes sociais. Em síntese, há uma desregulamentação da economia somado a um forte ajuste fiscal que recai sobre a massa trabalhadora.
Assim, no dia 20 de dezembro, as organizações de esquerda puxaram um ato contra essas medidas que tem afetado (e muito) a população pobre e a classe trabalhadora em geral. E desde então, começaram a acontecer uma série de ameaças por parte da ministra de capital humano Sandra Pettovell, e pela ministra de segurança pública Patrícia Bullrich, aos participantes e organizadores dos atos. Se por um lado o ministério de capital humano (ex ministério de Desenvolvimento Social) ameaçou diretamente cortar os planos sociais dos que participassem do ato e cortassem a rua, Bullrich preparou um mega operativo policial, que contou tanto com a polícia federal quanto com o exercito para não deixar a manifestação ocorrer. O operativo de segurança feriu inclusive a constituição argentina, ao ignorar a regência territorial da polícia da cidade de Buenos Aires.
As ameaças e coibições estavam vinculadas a cortes de benefícios das mães que participassem das manifestações, tinham um discurso apelativo contra a presença de crianças nos atos e insistentemente o tão conhecido aceno de que os manifestantes não podiam impedir o direito de ir e vir dos cidadãos e que, caso isso fosse feito, o protocolo de segurança seria aplicado.
Mesmo diante dessas ameaças um grupo expressivo foi para as ruas e se recusou a fazer um ato pelas calçadas da cidade. Houve tensionamento entre uma grande quantidade de policiais que acompanhavam o ato e a iminente possibilidade de confronto, caso os mesmos ocupassem as ruas.
Ocorre que para impedir os militantes de chegarem às ruas, os próprios policiais precisaram ocupá-las, o que gerou um paradoxo tremendo por parte do governo. Assim, os participantes mesmo tensionados com a força policial, resistiram e tomaram as ruas, em um ato de coragem e defesa da liberdade de manifestação democrática, chegando até o destino final proposto que era a Plaza de Mayo.
Enquanto tudo isso acontecia, os meios de comunicações locais exibiam o presidente, em companhia de Bullrich assistindo toda a manifestação através de uma tela. Após um tempo, Milei saiu desse local para se organizar e preparar o que seria o seu anúncio de um novo pacote de medidas econômicas. Mesmo com essa sensação de controle da situação, é importante mencionar o papel efetivo do movimento trotskista para abrir o caminho da ação popular, distinguindo-se da ação peronista, por exemplo, que ainda se localiza em uma esfera burocratizada e pouco incisiva na realidade no que se diz respeito a mobilização.
Portanto, a concretização desse ato pelos movimentos de corrente trotskista como o Marabunta, o MST, PO, etc, foi uma vitória política-democrática das organizações de esquerda, expandiu as rotas de ruptura do medo e chamada da população para ocupação das ruas. Ao mesmo tempo foi uma derrota para o protocolo de Patricia Bullrich que não funcionou integralmente, se mostrou cheio de contradições e flertava com a inconstitucionalidade. Não nos deixemos enganar, apesar desta primeira vitória é preciso estar atento para qualquer movimentação que venha do lado de lá, o objetivo do novo governo é criminalizar o movimento de massas, e fará tudo o que esteja em seu alcance para isso.
Assim, por volta das 21h, enquanto Milei anunciava o DNU e tudo o que isso implicaria, foi escutado muitas panelas por todos os cantos da cidade, mas mais do que isso, a população levou o panelaço (cacerolazo) para as ruas, indicando novamente o grau de insatisfação popular com as medidas adotas, que envolvia a derrogação da lei de aluguéis, reforma trabalhista, privatizações.
Das esquinas dos bairros, os vizinhos decidiram marchar até o centro da capital e a Plaza del congreso voltou a ser ocupada massivamente pelo povo. Por volta de 22:45 chegaram os primeiros carros, muitas buzinas, muitas panelas. Já as 23:30 a praça estava completamente tomada por cerca de 10 mil pessoas. O ato seguiu a pleno vapor até as 04 da manhã, em mais um 20 de dezembro, em mais uma tomada das ruas pelo povo argentino, que gritava palavras de ordem contra Milei, contra Bullrich, contra Macri, defendendo a pátria e chamando uma greve geral.
É tanta informação, tanto absurdo, convocação, ameaça, inibição, polarização e indignação ocorrendo ao mesmo tempo, que é difícil traduzir em tempo real. Por um lado, existe uma visível articulação entre os vizinhos, por grupos de whatsapp e outras redes sociais para seguirem uma jornada de lutas que teve seu inicio no 20D. As organizações de esquerda que foram vanguarda deste processo também se somam a toda e qualquer convocação, agitam as bases e começam a pressionar a burocracia sindical peronista – que até agora não se pronunciou. A Argentina é um país com mudanças de conjunturas muito bruscas, não descartamos que essa recente jornada de lutas culmine num estalido. Todavia, isso ainda não é certo.
O que é possível, nesse desastre todo das políticas anunciadas nesses poucos dias de governo é que, primeiro as medidas não estão acontecendo com discussão dentro do congresso e com o povo, o que assume uma postura de autocracia presidencialista por parte do executivo e segundo, os argentinos mesmo com ameaças e coibições, já deram sinais de que não aceitarão a velocidade de seus direitos sendo ceifados e a resposta será com muita resistência nas ruas, mesmo que seja, na mesma proporção e eficiência de demonstrar insatisfação, indignação e luta.