Crise e impasse na Venezuela
Declaração do Secretariado Nacional do Movimento Esquerda Socialista (MES/PSOL) sobre a crise política no país vizinho
Foto: ET/Reprodução
O impasse gerado pela proclamação dos resultados da eleição presidencial venezuelana, realizada em 28 de julho, agravou a crise institucional que se arrasta há anos no país. Após a proscrição de diversos partidos, incluídos os de esquerda, como o PCV; a proibição de diversas candidaturas opositoras e o impedimento na prática do voto de quase sete milhões de exilados (25% da população), a contagem dos votos obedeceu a mesma lógica de atropelo e falta de transparência. Quase às 2h da manhã de segunda-feira, dia 29 de julho, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) anunciou que, com 80% das urnas supostamente contabilizadas, Maduro havia vencido com mais de 51% dos votos. Outra contagem, com mais de 90% das urnas apuradas, só saiu cinco dias depois, em 2 de agosto. De outro lado, Maria Corina Machado, a ultradireitista catapultada a lider da oposição, e Edmundo González Urrutia, o candidato que enfrentou Maduro, foram à imprensa declarar-se vencedores, afirmando ter mais de 70% dos votos, apelando ao CNE para que mostrasse as atas eleitorais e divulgando um website com sua contabilização paralela apresentada de forma detalhada.
Desde a madrugada da segunda-feira, a insatisfação tomou conta do país. As principais cidades viveram fortes protestos. Os panelaços tomaram conta de Caracas, inclusive em bairros populares e operários como 23 de Janeiro e Petare. A resposta do governo foi de repressão total. Os números chegam a 19 mortos, quase 1500 presos, em sua maioria jovens agora confinados em duas prisões de segurança máxima, além de perseguição e ameaças de todo tipo contra líderes populares e opositores. Nos últimos dias, à medida que crescia o questionamento internacional aos resultados – em particular os inesperados, de Brasil, Chile e Colômbia – Maduro endurecia o discurso, prometendo a construção de mais dois presídios para manifestantes e anunciando a intervenção em redes de Whats App e Telegram – o que de fato começou. Os presos estão sendo indiciados por crime de terrorismo, o que significa penas mínimas de 10 anos.
Uma situação bastante complexa e muito defensiva, como parte das contradições imensas da situação regional e internacional. Bancado por suas Forças Armadas (cujas cúpulas são sócias diretas das negociatas corruptas do governo), pelos apoios da Rússia e, mais discretamente, da China, Maduro consolida seu giro autoritário. Desgraçadamente, a oposição que capitaneia os protestos é liderada pela ala mais extrema da direita “esquálida” venezuelana, representada por Maria Corina Machado. Javier Milei celebrou os protestos, assim como Trump e Bolsonaro, fazendo espalhar a narrativa mentirosa de que Maduro seria de esquerda e comunista.
Neste momento, os Estados Unidos, através do secretário de Estado Antony Blinken, defendem os dados que corroboram a versão da vitória da oposição, baseado-se também em informações do Centro Carter, a única organização internacional supostamente independente permitida a acompanhar as eleições. Contraditoriamente, a política do imperialismo estadunidense é atacar Maduro de um lado – acusando-o de fraude – mas manter um canal de contato com o governo venezuelano de outro, fundamentalmente através de Lula, López Obrador e Gustavo Petro, com os quais a Casa Branca mantém conversações permanentes. Parece ser (é uma hipótese) que, com grandes problemas internos (eleições disputadíssimas nos EUA) e externos (conflito no Oriente Médio em agravamento), a administração democrata procura pelo menos adiar um confronto no que considera seu “quintal”.
Assim, países importantes alinhados com o campo progressista vêm fazendo esforços para mediar o conflito e evitar o “banho de sangue” que chegou a ser propalado por Maduro (na verdade, insinuando que a extrema direita oposicionista provocaria um banho de sangue). Diz a nota conjunta dos três países:
Acompanhamos com muita atenção o processo de escrutínio dos votos e fazemos um chamado às autoridades eleitorais da Venezuela para que avancem de forma expedita e divulguem publicamente os dados desagregados por mesa de votação(…) As controvérsias sobre o processo eleitoral devem ser dirimidas pela via institucional. O princípio fundamental da soberania popular deve ser respeitado mediante a verificação imparcial dos resultados.
Lula, Petro e Lopez Obrador não atuam somente como marionetes dos EUA, como o discurso do campismo stalinista reverbera. Em sociedade complexas como a dos três países, com extremas direitas perigosas e ativas, e com tradição de luta democrática contra ditaduras, regimes e governos antidemocráticos (como o do PRI mexicano ou o de Bolsonaro no Brasil), a aliança automática desses governos com Maduro torna-se um elemento de política interna: desgasta suas imagens frente a suas populações, dá munição às campanhas difamatórias dos pós ou neofascistas e os expõe como “aliados de ditadores”. Este é o dilema em que se encontram também Guilherme Boulos e o bloco majoritário do PSOL, que, felizmente, pressionado por razões eleitorais concretas, buscou se diferenciar do apoio acrítico do PT à Maduro.
É fundamental para a esquerda ampla, e a socialista em particular, defender a transparência, a entrega de todas as atas, o fim da repressão e a liberdade para os presos políticos e para os partidos e movimentos sociais que estão proscritos. Defender as liberdades democráticas não é um crime de lesa pátria contra o processo (ou revolução) bolivariano, como argumenta o Fórum de São Paulo e outros campistas filostalinistas pela América Latina afora. É de uma incoerência atávica que aqueles que tanto insistiram, no Brasil, na necessidade das frentes mais amplas possíveis para enfrentar o bolsonarismo (inclusive com Alckmin e, no dia a dia, com Gilberto Kassab e o Centrão) sejam os mesmos que hoje desprezam como “liberais” ou mesmo “imperialistas” os argumentos democráticos quando se trata do regime de Maduro, ou do casal Ortega, da Nicarágua. Se a democracia formal é desprezível na Venezuela e na Nicarágua, por que tem tanta importância quando se trata do Brasil ou da Argentina?
Se é certo que a democracia burguesa neoliberal é absolutamente insuficiente, intrinsicamente corrupta e antipopular, também é verdade que, sem liberdades básicas, em particular liberdade para lutar e se organizar, seja em associações, ONGs, sindicatos ou partidos, a situação fica ainda pior para os debaixo. É a partir dessas condições que acreditamos que o Brasil, Colômbia e México podem cumprir um papel progressivo, impedindo mais repressão, diante de uma situação complicada e defensiva para as trabalhadoras e a verdadeira esquerda venezuelana.
Compreender o processo e seus retrocessos
Somos parte da esquerda internacional que apoiou, defendeu e participou da Revolução Bolivariana, levando Hugo Chávez à Porto Alegre no Fórum Social Mundial de 2003, nos somando em inúmeras campanhas de solidariedade, intercambiando quadros com Marea Socialista, Luchas e outras organizações sociais e populares do país-irmão. Respaldamos e nos envolvemos com as iniciativas do Centro Miranda, como espaço de pensamento crítico, no auge do processo bolivariano, impulsionado pela verdadeira insurreição popular que derrotou o golpe de Estado de 2002.
O madurismo pode ser visto por muitos na Venezuela e fora dela como mera continuidade dos governos de Chávez e das lutas anticapitalistas das trabalhadoras e do povo da Venezuela no início do século. Mas – grande contradição – isso acontece num sentido aparente, mas não essencialmente. A mídia corporativa e a esquerda filostalinista pró-Maduro têm em comum a insistência em associar o madurismo com o chavismo, manchando de autoritarismo e corrupção o legado da revolução bolivariana. Ao contrário dessa falácia, Maduro e seu regime, que nasceram como sucessores do chavismo original, vêm enterrando de forma termidoriana o processo de poder popular iniciado com a revolta massiva do Caracazo de 1989 e aprofundado com a vitória da resistência ao golpe de 2002 – que levaram e consolidaram Hugo Chávez no poder.
O Caracazo foi uma expressão da revolta social contra os altos preços, as más condições de vida, os ajustes neoliberais e a democracia de fachada de fins dos ano 1980. Inaugurou um novo período histórico na sociedade venezuelana, tendo impacto em todas as camadas, inclusive nas Forças Armadas. A vitória eleitoral de Chávez em 1998 representou uma mudança de regime, fazendo saltar o país do sistema político antidemocrático e neoliberal do chamado pacto do “Punto Fijo” (que impunha uma alternância de poder entre os partidos oligárquicos Copei e a Ação Democrática), amparado no monopólio do petróleo e da renda nacional por aquela oligarquia burguesa, para, a partir de 1998, construir um dos regimes mais democráticos que a Venezuela já havia tido, com eleições de constituintes, representantes, governantes e juízes. O trauma da repressão brutal dos tempos do Punto Fijo teve como efeito o surgimento de uma corrente de massas, democrática e socialmente progressista no seio da baixa e média oficialidade.
Se enganam aqueles que associam a força de Chávez ao autoritarismo ou à centralização. A Venezuela passou por mudanças radicalmente democráticas: uma eleição constituinte (1999) foi considerada exemplar para o conjunto do continente. O país realizou diversas eleições, legalizou milhares de sindicatos, centrais, associações e outros espaços de protagonismo popular. Instituíram-se os poderes comunais, as demandas da sociedade foram territorializadas, foram estabelecidos plebiscitos populares como mecanismos de validação de temas centrais, tendo Chávez reconhecido sua derrota num dos mais importantes deste plebiscitos em 2007. Ao contrário de refluir, o processo somente se aprofundou com a vitória do povo contra o golpe de 2002. Abandonado momentaneamente por todo e qualquer setor burguês, pressionado pela base por mais de mil comitês de fábrica em multiplicação, o governo Chávez lançou então o projeto de uma economia de transição ao socialismo.
Em 2013, com a morte de Hugo Chávez e sua substituição por Nicolás Maduro, teve início uma intensa discussão sobre os rumos do processo venezuelano, sobre a base de um documento “retificador” conhecido como “Golpe de Timão”. Tal documento nada mais era do que uma profunda auto-crítica dos que ficaram no poder para refazer os alicerces do processo, lutando contra as alas burocráticas que se incrustavam no aparelho de Estado, contra os privilégios e os riscos da “boliburguesia” (uma nova burguesia nascida no período chavista, principalmente em torno dos negócios dos serviços à estatal do petróleo PDVSA).
A morte prematura de Chávez aguçou ainda mais as contradições do processo de uma Venezuela entre dois fogos: a crescente burocratização das camadas dirigentes, de um lado, e, de outro, a asfixia gerada pelo bloqueio imperialista estadunidense que, desestabilizando a economia trágica e profundamente dependente da produção e exportações de petróleo e gás, ameaçava gravemente as conquistas da revolução bolivariana – nos âmbitos da educação, da saúde, da moradia e condições salariais. Ciente das limitações nacionais, Chávez buscou se aproximar de posições internacionalistas, chegando a defender a necessidade de uma V Internacional, de líderes da esquerda radical e defendeu uma visão que batizou de “Socialismo do Século XXI”.
Óbvio que Chavez tinha suas limitações programáticas, oriundas de sua origem militar, das condições internacionais desfavoráveis e das tensões próprias do processo, não conseguindo dar passos para uma verdadeira democracia socialista. Ele também jamais rompeu com a ideia de um desenvolvimento baseado na riqueza extrativista.
O agravamento da crise de 2013 (com a queda dos preços internacionais das commodities e o isolamento econômico do país imposto pelos EUA) encontrou em Nicolás Maduro e no seu entorno burocrático um regime mais autoritário, de concentração de poderes, que fizeram retroceder as conquistas e aberturas democráticas do período anterior. A segunda década do século assistiu o aprofundamento brutal da crise econômica e social no país, com o exílio econômico de entre 5 e 7 milhões de venezuelanos, acossados pela receita de mais ajuste, descalabro monetário e econômico (porque Maduro jamais rompeu com os preceitos da banca internacional), falta de alimentos, medicamentos, transporte, etc. Esses venezuelanos, sem perspectivas, se foram principalmente para a Colômbia, Estados Unidos, Peru, Chile e Brasil, onde tiveram que aceitar condições piores de trabalho, mais insegurança e distância de suas famílias e da vida construída no país de origem.
Com as exportações ao Ocidente limitadas, ativos congelados no mercado financeiro internacional e a oposição de direita em ascensão, Maduro reafirmou seu alinhamento com os imperialismos chinês e russo, consolidou seu giro repressivo e conseguiu, nos últimos dois anos, reconstruir parte da infraestrutura destruída pelo bloqueio: transporte, moradia, medicamentos, numa dinâmica mais significativa para as classes médias do que para os mais pobres. No âmbito político, acirrou a repressão à sua esquerda: interveio no Partico Comunista da Venezuela (PCV) e em outros partidos de esquerda, impediu qualquer candidatura crítica, criminalizou por corrupção os que denunciaram corrupção no governo e estatais, entre outros exemplos.
A extrema direita quer usar o descontamento para impor velho regime
A extrema direita venezuelana, neoliberal e violenta, sediada em Miami, manipula o sofrimento do povo em favor de seus interesses particulares: quer fazer da Venezuela um palanque para Trump. Maria Corina e Edmundo González são parte do bloco histórico derrotado por Chávez e pela Revolução Bolivariana. Este bloco quer voltar ao poder para se apoderar da renda petroleira às custas da espoliação dos trabalhadores e do povo venezuelano, como em outro momento fizeram a AD e o Copei. Querem se aproveitar da situação defensiva para retomar o aparelho de estado a serviço de um projeto conservador, antipovo e de destruição do meio-ambiente, numa restauração mal-repaginada do pacto do Punto Fijo.
Os opositores de hoje são alinhados com golpistas contumazes, como Leopoldo López e Juan Guaidó; como não recordar as desastradas tentativas de invasão do espaço venezuelano, na fronteira com a Colômbia e Brasil, seguida de ações contra a embaixada da Venezuela no Brasil, no ano de 2019?
É de uma completa hipocrisia que Trump, Bolsonaro e Milei clamem por democracia na Venezuela. Eles são os herdeiros atuais de duas das mais sanguinárias ditaduras que a América do Sul viveu no século passado. Deputados do partido de Milei visitaram na semana retrasada o genocida Alfredo Astiz em prisão de Buenos Aires; Bolsonaro alimentou e protegeu seu “estado profundo” com milicianos e as alas mais podres do Exército e das policiais. Trump reverencia a Ku Klux Klan nos Estados Unidos, apostando no séquito supremacista branco para voltar a Casa Branca. Retroalimentando-se pela repressão de Maduro, os celerados da extrema direita querem controlar e coordenar os protestos sob falsas alegações de liberdade e democracia.
Em defesa de garantias democráticas
A recusa de Maduro em publicar as atas eleitorais não é um fato isolado, mas parte de sua visão, autocrática, de um governo de aparelho ligado à burocracia e ao exército, que ataca qualquer oposição, de esquerda ou de direita. Maduro, conforme escreveu Sylvia Colombo à Folha de S.Paulo, fez uma série de acordos com as empresas americanas, fraudando até sua prédica de que o petróleo é venezuelano. Isso explicaria a nova localização do lobby do petróleo:
Pode parecer estranho que essa versão [de que a Venezuela é contra os negócios] tenha se imposto entre um setor do alto empresariado internacional, uma vez que a Venezuela é um país em penúria financeira, endividado e que assusta investimentos estrangeiros nas mais variadas áreas. Porém, para esse ramo da economia, pouco parecem importar os abusos de direitos humanos, a pobreza e a saída do país de 25% da população. De fato, tem havido uma redução da inflação, e uma precária dolarização fortalece esse discurso da normalização. Em conversa com a coluna, um líder opositor hoje em Washington diz que os próprios republicanos, que no passado haviam apoiado abertamente a fracassada empreitada de Juan Guaidó, hoje prefeririam não se arriscar em apostar fichas em um outro líder opositor —inclusive teriam temor do retorno de alguns deles hoje exilados.
Nos somamos à exigência de transparência de Petro, Lopez Obrador e Lula para evitar uma tragédia maior e garantir liberdades democráticas e associativas, sem perder a soberania nacional e popular. Estamos numa situação defensiva. Não há uma saída fácil ou avançada para o atual impasse. Queremos seguir estabelecendo pontes com a esquerda venezuelana, contribuindo com ela em suas futuras batalhas. E defendemos os direitos ao voto e ao retorno dos sete milhões de exilados venezuelanos.
Defendemos também os direitos dos venezuelanos que vivem no Brasil, independentemente de suas posições políticas, combatendo a xenofobia e ampliando a solidariedade com todos os imigrantes no país.
Uma esquerda para outro futuro
Nosso esforço está voltado também a dar voz à esquerda venezuelana, que não está associada nem a Maduro nem a Corina Machado. São milhares de ativistas, que combatem em condições adversas, marcadas pelo caos econômico, pela perseguição, mas são parte das grandes batalhas do povo venezuelano nos últimos 40 anos. Assim como fizemos recentemente no caso da Nicarágua, em que apoiamos a luta contra o regime de Ortega através do apoio à companheira Mónica Baltodano em sua visita ao Brasil, para disputar o apoio da opinião pública contra aqueles que, de forma insensata, acusavam aos nicaraguenses em luta de “fazer o jogo da direita”.
A posição expressa no documento “Outra Campanha, que soma intelectuais destacados de esquerda, ativistas sindicais, dirigentes de organizações da esquerda radical, indica que existe espaço para movimentações dos dissidentes à esquerda com os quais estabelecemos vínculos, mesmo diante de uma situação imediatamente muito difícil. Aí reside nossa aposta para a reconstrução de um programa e um projeto democrático-revolucionário, como no auge das grandes expropriações de terra e das fábricas ocupadas de 2002 a 2004, como no vivo processo de discussão de co-gestão operária naqueles tempos; nas grandes assembleias de bairro que moviam o protagonismo popular da época chavista, ou quando os cerros de Caracas vieram à Miraflores impedir o golpe de 2002. Mesmo bloqueada por agora, a energia e a memória dos grandes feitos do povo venezuelano ainda resistem. Apostamos que a força da luta democrática e anticapitalista será o ponto decisivo para superar os adversos cenários que devem se seguir.