O marxismo descolonial de Florestan Fernandes e a esquerda socialista do século XXI
Neste artigo cuidadoso, Maycon Bezerra trata sobre a vida e a obra intelectual e política de Florestan Fernandes, grande intelectual da Revolução Brasileira.
1 – Florestan e aspectos biográficos.
Retomar Florestan Fernandes, um dos nossos mais importantes intelectuais, reivindicando sua sociologia crítica e militante, articulando-a de modo vivo na teoria e prática revolucionária socialista no Brasil deste início de século XXI, não é algo como prestar uma simples homenagem, é se apropriar de um referencial intelectual e político que não temos o direito de permitir que se perca. A retomada do marxismo descolonial de Florestan não apenas possibilita que se fortaleçam nossos laços concretos com a experiência histórica passada da esquerda e do movimento dos trabalhadores brasileiros, mas também disponibiliza um amplo patrimônio de reflexões e elaborações sobre problemas e questões com as quais estamos novamente – e estivemos sempre – confrontados e que nos dispensa de nisso ter de começar do zero. Florestan é um gigante em cujos ombros podemos e devemos nos erguer para visualizar melhor a situação e nossas tarefas como marxistas revolucionários.
Florestan nasceu muito pobre. Filho de mãe solteira, portuguesa e empregada doméstica em São Paulo, começou a trabalhar ainda na infância como engraxate. Viveu a vida dos meninos de sua classe, frequente nas ruas, distante da escola. Experimentou, como elo fraco da cadeia, toda a rotineira crueldade dos setores mais privilegiados da nossa sociedade nas suas relações com o povo pobre. Como exemplo, a patroa de sua mãe negava-lhe o direito ao nome Florestan em sua casa, por ser um nome pomposo demais para um garoto qualquer, filho de empregada doméstica: chamava-o Vicente. Florestan dizia que teve que conquistar o direito de tornar-se Florestan. Até isso negam aos nossos quando podem.
Escolarizou-se já adulto e ingressou em um novo universo de oportunidades ao ser aprovado no curso de ciências sociais da USP. Ao mesmo tempo, através do jornalista e dirigente socialista Herminio Sachetta, entrava em contato com o Partido Socialista Revolucionário (PSR), uma organização trotskista que lutava na clandestinidade contra a ditadura do Estado Novo de Vargas. Foi militante e depois ainda se manteve em contato com o partido por cerca de 10 anos, até o início dos anos 50. Ainda que tenha desengajado da militância clandestina para seguir a trajetória universitária, a experiência no PSR – tal como relatada por ele mesmo – foi decisiva para a definição dos rumos que tomaria sua rota biográfica, intelectual e política.
Depois de formado, seguiu na USP como professor e ajudou a constituir e institucionalizar a sociologia no Brasil. Lecionou para nomes como Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, dentre toda uma geração renomada. Com ousadia se lançou a construir uma matriz sociológica que não reproduzisse mecanicamente as formulações importadas da Europa ou dos Estados Unidos. A sociologia florestaniana não deve nada em complexidade, riqueza e criticidade ao que se considera vanguarda nessa área em nível internacional. Nossa sociologia acadêmica contemporânea, no entanto, marginaliza seu pensamento e contribuição inestimáveis. Soa demasiadamente como luta de classes, o que é inequívoco, para a elegância estéril dos corredores acadêmicos. Tendo sua carreira na USP interrompida pelo AI-5 e pela consequente aposentadoria compulsória que lhe impuseram em 1969, Florestan se desvencilha das limitações impostas pelo “cânone” e pela ritualística do pensamento universitário e aprofunda o caráter crítico, marxista e descolonial de sua produção intelectual, em alguma medida reconectando-se com o jovem Florestan militante do PSR, enriquecido por toda a trajetória posterior como professor e cientista social.
Ao longo dos anos 70, Florestan seguiu produzindo e intervindo como “intelectual público”, inclusive com presença na grande imprensa. Acompanhou a retomada do movimento de massa e no início dos anos 80 se incorporou ao PT. Além de intelectual militante e propagandista ligado à ala esquerda do partido, Florestan foi eleito duas vezes deputado federal, tendo sido deputado constituinte. Foi central na articulação dos setores sociais que se organizaram para defender o princípio da educação pública na Constituinte. Também foi autor de uma proposta de emenda à Constituição dedicada ao tema da problemática racial, que terminou suprimida pela maioria parlamentar, chamada “Dos Negros”. Foi ativo política e intelectualmente até que em 1995 nos deixou, vítima de um erro médico durante um procedimento hospitalar.
2 – O Marxismo descolonial de Florestan
É possível dizer que Florestan construiu sua obra intelectual e sua trajetória prática sobre a rocha do materialismo dialético. Ainda quando esteve à frente do projeto de construção de uma sociologia original, na USP, uma sociologia teórica, interpretativa e aplicada, mas “canônica” e academicamente “enquadrada”, os fundamentos teóricos do materialismo e da dialética se encontravam presentes, mesmo que nos “bastidores” da elaboração. O marxismo está no ponto de partida mesmo do processo de formação intelectual de Florestan, através da militância trotskista no PSR. A perspectiva e a tradição crítica incorporadas no trotskismo impulsionaram Florestan a ir bem além dos limites do dogmatismo stalinista dirigido de Moscou ao PCB de seu tempo. Teoricamente, nunca aceitou o marxismo deformado pela ótica positivista da burocracia stalinista, nunca dissociou materialismo de dialética em sua compreensão do marxismo. Politicamente, nunca teve acordo com a estratégia de colocar os trabalhadores passivamente a reboque do desenvolvimentismo da “burguesia nacional”. Ainda quando julgou que a modernização burguesa da sociedade brasileira tivesse o potencial de levar o processo histórico além dos interesses restritos dos capitalistas, Florestan foi muito mais avançado e crítico em suas formulações que a direção do PCB em sua aliança subordinada e desarmada com a “burguesia nacional”.
A luta de sua vida inteira foi em nome da superação do subdesenvolvimento, da construção de uma sociedade nacional soberana e democrática por aqui, nos marcos da qual a classe trabalhadora tivesse os meios para lutar politicamente pela construção do socialismo. O golpe empresarial militar de 1964 fez com que Florestan revisse sua expectativa de que a modernização capitalista no Brasil pudesse abrir espaço, “por dentro da ordem”, para uma dinâmica de radicalização nacional e democrática, impulsionada pelos setores populares organizados, que levasse o processo de desenvolvimento além dos interesses estritos da burguesia. A “resistência sociopática à mudança” da classe dominante, expressa com toda sua violência e rigidez na instauração do regime ditatorial voltado a silenciar exatamente as demandas nacionais e democráticas das maiorias populares, se revela como muito mais do que um simples fenômeno de “demora cultural”, trata-se de uma característica essencial do modelo de desenvolvimento capitalista reservado aos países da periferia dependente global. A nação e a democracia não poderiam ser construídas aqui, no Brasil e na América Latina, a partir do impulso fornecido pela “revolução burguesa”, pela transformação capitalista de nossas sociedades, mas apenas contra ela, através de uma revolução do povo trabalhador contra a dominação burguesa.
As inconsistências das burguesias latino-americanas procedem do fato de que elas resistem à plebeização e instigam a proletarização sem querer aceitar a democratização correspondente da ordem social competitiva. Proscrevendo o destituído da ordem civil e limitando (ou anulando) a participação econômica, cultural e política das classes trabalhadoras, aquelas burguesias enfraqueceram a si próprias, reduzindo suas alternativas, empobrecendo sua visão de mundo e liquidando-se como agente histórico revolucionário. Restringindo a competição e o conflito a privilégios quase estamentais, elas despojaram o capitalismo de suas potencialidades criadoras (Fernandes, 1973. p.58).
Inserida em uma relação de associação dependente com o grande capital transnacional imperialista, que dirige de fora o sentido e o ritmo da dinâmica econômica a ser absorvida internamente, a burguesia da periferia global, sobretudo latino-americana, calibra os tempos do processo de incorporação das sociedades que governam o capitalismo mundial de modo a maximizar seu privilegiamento econômico, social e político interno, transferindo o ônus da dependência estrutural às massas trabalhadoras, na forma da superexploração do trabalho e precarização geral de suas condições de vida. O desenvolvimento capitalista dependente avança na forma de uma “modernização máxima com descolonização mínima”. Ou seja, as estruturas de poder, de ideias e de valores herdadas do período colonial são reproduzidas e reatualizadas pela burguesia naquilo em que possibilitam preservar a extrema concentração da riqueza, do poder político e do prestígio social no topo, acelerando as transformações exigidas pela acumulação capitalista.
A articulação subordinada da burguesia interna com o capital transnacional estabelece aquele que é o núcleo essencial do capitalismo dependente enquanto padrão específico de desenvolvimento capitalista na periferia: “a sobreapropriação repartida do excedente econômico”. Em linhas gerais, o conceito faz referência à sistemática e permanente transferência de massas imensas de valor produzidas internamente que seguem em direção aos centros hegemônicos da acumulação capitalista global. Nessas circunstâncias, a burguesia local organiza a economia e o sistema de poder de modo a intensificar os níveis de exploração do trabalho, como forma de participar da espoliação capitalista, dirigida pelo capital transnacional, contra a classe trabalhadora. Dessa maneira, a burguesia local perde todo ímpeto que poderia movê-la, em outras circunstâncias históricas, no sentido da afirmação de um projeto nacional autônomo de desenvolvimento e de uma ordem democrática capaz de incorporar a massa da população ao plano das garantias e direitos efetivos da cidadania. No capitalismo dependente, a burguesia – fundamentalmente a grande burguesia – torna-se uma classe essencialmente antinacional, antidemocrática e antipopular.
Como forma de garantir a superexploração dos trabalhadores no capitalismo dependente periférico, a classe dominante desacelera e, em determinados aspectos, congela o processo histórico de superação da ordem colonial a partir da qual se desenvolvem as relações sociais capitalistas propriamente ditas. No plano econômico, social, político e cultural, o capitalismo dependente se apresenta muito mais como uma etapa superior de desenvolvimento do processo histórico colonial, aqui estabelecido desde o século XVI, do que como uma ruptura em relação a ele. Uma burguesia que atrela seu destino econômico e político à associação com o capital transnacional imperialista e com os privilégios arcaicos das velhas oligarquias do latifúndio monocultor de exportação, precisa evitar de todo modo a emergência do povo na história, com suas demandas nacionais (anti-imperialistas) e democráticas elementares.
Essa forma de dominação burguesa não pode se dar mediante o consentimento organizado das maiorias – em um ordenamento democrático burguês “clássico” – porque não é capaz de incorporar suas mínimas exigências. Sendo assim, a paisagem do capitalismo dependente é composta pela articulação de relações propriamente capitalistas de produção com formas de trabalho subcapitalistas ou semicapitalistas, que se reatualizam constantemente pela sobrevivência e reprodução de padrões de dominação social gerados no interior do regime colonial de castas (racialmente determinadas) que se combinam com a estrutura classista moderna, o que se expressa na exclusão de amplos setores da população trabalhadora da ordem dos direitos e garantias cidadãs. Ou seja, setores majoritários das classes populares são excluídos – integral ou parcialmente – do acesso à esfera do trabalho moderno, social e legalmente regulado, ficando sob o arbítrio econômico dos de cima, assim como também do acesso à esfera das garantias legais da cidadania, ficando sob o arbítrio político e social da classe dominante e seus aparatos legais e ilegais de violência. Florestan se refere a esse regime de dominação burguesa, constitutivo e requisito do capitalismo dependente, como “autocracia burguesa” em oposição à democracia burguesa vigente na maioria dos países do capitalismo central de então.
Seguindo pela mesma trilha que Ruy Mauro Marini, fazendo o capitalismo dependente – enquanto fenômeno concreto – emergir na análise e na consciência a partir da correta aplicação da teoria do desenvolvimento desigual e combinado, Florestan constrói uma interpretação da trajetória histórica da sociedade brasileira, e das tarefas exigidas para a afirmação do Brasil como uma nação soberana e democrática, que colide com a narrativa estabelecida então pelo PCB, a maior força política do movimento popular e da intelectualidade crítica. Enquanto o PCB e seu entorno político, que incluía várias tonalidades do nacionalismo burguês, afirmavam que o imperialismo e o latifúndio bloqueavam a necessária transformação capitalista no Brasil, cujo sentido seria progressista e democrático, Florestan apresenta a reprodução de nosso subdesenvolvimento como obra de uma autêntica transformação capitalista, mas dependente, inevitavelmente articulada, nessas condições, ao imperialismo e ao latifúndio, em um desenvolvimento que se origina no final do século XIX. Uma “revolução burguesa” que funciona como contrarrevolução para as demais classes da sociedade.
De modo análogo, enquanto o PCB afirmava que a superação de nosso subdesenvolvimento passava por uma revolução democrática, dirigida pela “burguesia nacional” e apoiada pela classe operária, contra o latifúndio, o imperialismo e os “elementos feudais” em nossa sociedade e economia, Florestan entende então que a necessidade da revolução democrática, vinculada transicionalmente ao objetivo socialista, dirigida pela classe trabalhadora com todos os setores populares contra a burguesia, o latifúndio e o imperialismo, sempre articulados entre si, deveria levar até o fim o processo de descolonização de nossa economia, sociedade, poder e cultura; processo este congelado historicamente pela classe dominante no limite de seus interesses. Não é o feudalismo que aparece como pressuposto histórico do desenvolvimento capitalista brasileiro, na análise de Florestan, mas o colonialismo. Esse que precisa ser desmantelado e superado por completo.
Levar a descolonização às últimas consequências é uma bandeira de luta análoga à revolução nacional e à revolução democrática – e essa reivindicação teria que ser feita em termos socialistas, ainda que com vistas à “aceleração da revolução burguesa”. Parece patente que a descolonização não pode ser contida nesses limites e que, na ação prática, em vez de acelerar a revolução burguesa ela fomenta a “desestabilização” e a evolução de situações revolucionárias até pontos críticos. Contudo, na periferia o socialismo possui essa função de calibrar os dinamismos revolucionários da ordem existente pelos problemas e dilemas sociais que as burguesias não tentaram enfrentar e resolver, por não ser do seu interesse de classe, nas formas de desenvolvimento capitalista inerentes ao semicolonialismo e à dependência (Fernandes, 1981, p. 81).
3 – Revolução e Descolonização
A reflexão marxista e leninista de Florestan sempre o levou a buscar a “análise concreta da situação concreta”. Isso se manifesta mesmo em sua produção intelectual acadêmica. Por esse caminho, Florestan sempre recusou e criticou todo dogmatismo esquemático esgrimido em nome do marxismo. A sua trajetória de desenvolvimento intelectual e político é uma expressão cristalina desse apego à realidade e sua dialética inerente. Combateu em si mesmo a tendência à cristalização de conceitos e teses superadas pelo movimento do real. É na maturidade mais revolucionário e radical que em qualquer outro momento da vida, tendo testemunhado ou vivido, em seus 50 anos de atividade produtiva, a maior parte das ondas revolucionárias e retaliações contrarrevolucionárias que rasgaram nosso continente e o mundo no século XX.
Nas suas formulações sobre a Revolução Brasileira, não se alinha com nenhuma das concepções das maiores correntes do marxismo brasileiro. Não está com o PCB, e sua concepção etapista de uma revolução democrática dirigida pela “burguesia nacional”, com um programa nacional desenvolvimentista burguês. Mas também não está com aqueles, como a POLOP de então, que concebem a Revolução Brasileira como uma revolução imediatamente socialista, voltada à expropriação imediata da burguesia e ao estabelecimento do Estado proletário. A formulação de Florestan possui mais mediações. Mantém uma referência muito firme em Lênin, especialmente no que escreve em 1905, o Lênin autor de “As duas táticas da social democracia na revolução democrática”. Entende que essas reflexões leninistas são de extrema relevância para pensar a tarefa dos revolucionários socialistas na América Latina capitalista dependente.
O complexo de contradições e impasses estruturantes da velha Rússia czarista é problematizado crítica e revolucionariamente por Lênin em sua teoria da revolução democrática dirigida pela aliança operário camponesa, uma revolução permanente que avança de modo ininterrupto até a realização das tarefas socialistas, em um processo mais ou menos largo e tortuoso: a tarefa imediata da revolução é criar as condições democráticas para que a classe trabalhadora possa lutar pelo poder e pelo socialismo.
Florestan julga que o capitalismo dependente brasileiro e latino-americano do século XX guarda profundas afinidades estruturais com a Rússia do início do século, com seu desenvolvimento capitalista fortemente atrelado ao capital imperialista estrangeiro e sua burguesia incapaz de romper com a grande propriedade fundiária. Nesse sentido, a partir de Lênin, Florestan compreende que o caminho do Brasil e da América Latina para o socialismo passa pela revolução democrática. Uma revolução democrática dirigida pela classe trabalhadora contra a aliança entre burguesia, latifúndio e imperialismo. Capaz de realizar as tarefas democráticas históricas que a burguesia local, nas condições do capitalismo dependente, não tem interesse em levar adiante: reforma agrária; construção de um mercado interno de massas; universalização dos direitos civis, políticos e sociais; e etc. Uma revolução democrática transicional ao socialismo, ininterrupta, e não a parteira de uma longa “etapa” de desenvolvimento capitalista: como queriam, tanto o PCB dos anos 50, 60 e 70, quanto os mencheviques de 1905. Uma revolução democrática que, ao afirmar a soberania popular no país, possa afirmar a soberania nacional contra as manipulações e interesses do imperialismo. Portanto, uma revolução que por ser democrática seja também revolução nacional anti-imperialista que supere a dependência estrutural: a incorporação subordinada ao capitalismo internacional.
Apesar das instituições e dos valores sociais vigentes, a ordem legal criada pela República não abrange, equitativamente, todas as camadas sociais de todas as regiões do país. Tudo se passa como se os direitos e as garantias sociais, assegurados por essa ordem legal, fossem privilégios inconfundíveis das minorias que possuem condições econômicas, sociais e políticas para desfrutá-los e como se fosse indiferente, para a existência e o futuro de uma sociedade nacional, que três quartos de sua população estivessem parcial ou totalmente banidos de suas estruturas de poder. Ora, nenhuma sociedade nacional pode existir, sobreviver e ao mesmo tempo construir um destino nacional, em tais bases. A destruição de estamentos e de grupos sociais privilegiados constitui o primeiro requisito estrutural e dinâmico da constituição de uma sociedade nacional. (…) a democratização da renda, do prestígio social e do poder aparece como uma necessidade nacional. É que ela – e somente ela – pode dar origem e lastro a um “querer coletivo” fundado em um consenso democrático, isto é, capaz de alimentar imagens do “destino nacional” que possam ser aceitas e defendidas por todos, por possuírem o mesmo significado e a mesma importância para todos (Fernandes, 1975, p. 163).
Opostamente à teoria e à política do nacional desenvolvimentismo burguês, que pensa a afirmação nacional a partir do ângulo estreito do economicismo inscrito no binômio indústria-infraestrutura, ou seja, a partir da acumulação acelerada do poder pela “burguesia nacional”, Florestan identifica o centro da questão nacional brasileira (e latinoamericana) na democracia. A construção de uma sociedade nacional a partir do que foi um empreendimento colonial, de natureza escravocrata, que originou uma sociedade capitalista de mercado construída a partir da precedente ordem social de castas raciais (que a ela se combinou para se reproduzir e reatualizar), exige um processo social intenso, profundo e complexo: revolucionário. A modernização e crescimento da economia capitalista dependente, por si só, aprofunda a própria dependência, não conduz à emancipação e a uma efetiva soberania nacional. Aprofunda a integração do tecido econômico do país aos dinamismos transnacionais do capitalismo, dirigidos de fora e para fora. As relações sociais e instituições mais modernas e liberais se combinam e articulam com as mais arcaicas e despóticas, não as superam, as absorvem. O Estado, elemento central de sustentação de todo o arranjo, valioso demais para ser público, incorpora o que há de mais avançado na técnica e na administração capitalista, permanecendo essencialmente oligárquico, no entanto, e com uma cidadania oficial mantida zelosa e violentamente fora do alcance da maioria do povo trabalhador.
O processo de construção, integração e afirmação de uma sociedade nacional moderna, três aspectos de uma mesma totalidade, é um processo fundamentalmente político, baseado na incorporação do povo à condição cidadã efetiva. A sociedade nacional não é apenas uma “comunidade imaginada”: ou é uma teia integrada de deveres e direitos mútuos compartilhados e minimamente assegurados de modo equânime, ou não é. Não há nação sem que o povo caiba nela de modo efetivo. O avanço da industrialização e da urbanização, assim como uma maior interação econômica das regiões do país entre si, são elementos do programa desenvolvimentista que, sob as condições da extrema concentração da riqueza, do poder e do prestígio social, típicas do capitalismo dependente, não são capazes de garantir lastro a uma aceleração da integração da sociedade nacional enquanto tal. Tendo por base a superexploração do trabalho, a relação assimétrica e subordinada com o capital transnacional, a articulação precária e contraditória da indústria com o latifúndio e os latifundiários, e a rígida concentração do poder político na cúpula estatal, o desenvolvimento capitalista dependente e tecnocrático dos desenvolvimentistas reproduz, de modo ampliado, os impasses e obstáculos herdados da condição colonial à afirmação nacional no Brasil e na América Latina.
Nessas circunstâncias, Florestan põe que o caminho da afirmação e emancipação nacional é o caminho da revolução democrática. A incorporação da massa do povo à nação terá de ser resultado de uma construção nacional de baixo para cima, revolucionária, contra o monopólio oligárquico do poder e seus privilégios. Porque a classe dominante transnacional e associada não pode prescindir da exclusão da massa trabalhadora do processo de tomada de decisões e do acesso aos direitos e garantias individuais e coletivas essenciais, terá que ser por ela derrotada e subjugada. Apenas as necessidades e interesses do povo trabalhador podem garantir impulso e sustentação à descolonização profunda e radical da economia, da sociedade e da cultura, congelada pela burguesia nos limites de seus interesses de classe ao longo da história de nosso país e de nosso continente. Essa descolonização, como processo necessariamente revolucionário, sintetiza e expressa o significado e o alcance histórico e político da revolução democrática e da revolução nacional no Brasil e na América Latina. Trata-se de superar as estruturas econômicas internas atreladas aos dinamismos induzidos e ditados de fora e para fora, a imensa desigualdade social que incorpora, reproduz e atualiza a divisão racial do trabalho e da cidadania, bem como o regime oligárquico de dominação burguesa estabelecido no Estado. No âmbito cultural, a descolonização pressupõe a superação crítica e revolucionária do eurocentrismo racista, que deforma e amesquinha as formas dominantes de pensar, julgar e sentir nas sociedades capitalistas dependentes e periféricas da América Latina, sobretudo no Brasil.
Muito atento às reflexões originais do marxista peruano José Carlos Mariátegui, Florestan se distancia das formulações hegemônicas do marxismo brasileiro de então e reafirma a questão racial como uma questão chave, tanto para a caracterização correta da história e do presente das sociedades do continente, como para o desenvolvimento da estratégia revolucionária do povo trabalhador no Brasil e América Latina. Desde o início do século XX, Mariátegui apontava como a dominação racial branca e o padrão rigidamente antidemocrático e antipopular de dominação burguesa estão entrelaçados no capitalismo dependente da região, no qual as classes sociais têm cores distintas e a distância entre elas é muito mais profunda e radical por causa dessa distinção. Florestan, nessa mesma linha, considera que a descolonização revolucionária da sociedade implica uma subversão da ordem racial estabelecida por baixo e por dentro da divisão de classes propriamente dita. No Brasil, isso coloca o povo negro no eixo que articula a Nação, a Democracia e a Classe Trabalhadora na dinâmica revolucionária. O proletariado negro, unido ao conjunto das massas trabalhadoras, é o sujeito social que precisa hegemonizar a Revolução Brasileira para que ela leve a descolonização até o fim.
É, portanto, entre os de baixo, onde a luta de classes crepita com oscilações, mas com vigor crescente, que a raça se converte em forte fator de atrito social. Há problemas que poderiam ser resolvidos “dentro da ordem”, que alcançam a classe mas estão fora do âmbito da raça. A raça se configura como pólvora do paiol, o fator que em um contexto de confrontação poderá levar muito mais longe o radicalismo inerente à classe. Como escrevi antes, é a raça que definirá o padrão de democracia, em extensão e profundidade, que corresponderá às exigências da situação brasileira (Fernandes, 1989, p. 41).
Na verdade, o chamado problema do negro vem a ser o problema da viabilidade do Brasil como Nação. Não haverá Nação enquanto as seqüelas do escravismo, que afetaram os antigos agentes do trabalho escravo e seus descendentes ou os ditos “brancos pobres livres”, não forem definitivamente superadas e absorvidas. Esse é o patamar brasileiro do que deve ser uma democracia social e racial e, por isso, somente o negro compreende a natureza do problema e tem condições psicológicas para enfrentá-lo sem mistificações e de lutar por sua solução integral (Fernandes, 1989, p.43).
A supremacia branca, exercida e imposta a partir do Estado brasileiro e a partir do poder social dominante, priva a classe trabalhadora majoritariamente negra dos pudores e escrúpulos de uma dominação de classe regulada pela lei e pelo direito. O arbítrio econômico e político da burguesia é a regra, tão mais rígida quanto mais se vai aos estratos mais explorados da classe trabalhadora, e mais majoritariamente negros. A privação permanente de direitos imposta contra os territórios sociais onde está esse setor mais oprimido da classe (os territórios sociais predominantemente negros, como a favela, a periferia urbana, o trabalho informal, o trabalho doméstico, o cárcere); assim como a intransigência repressiva diante da mobilização popular e do protesto social; a perseguição política implacável e sistemática contra lideranças e movimentos populares de natureza contestatória e combativa; a superexploração do trabalho e o padrão espoliativo de acumulação; todos esses elementos necessários ao desenvolvimento capitalista dependente não são compreensíveis sem que se leve em conta o racismo estrutural e institucional que desumaniza a negritude e, por consequência, a classe trabalhadora na qual é predominante. O que Florestan identifica como sendo a “resistência sociopática à mudança social” da burguesia e dos setores médios mais privilegiados, diante das demandas populares pela superação do subdesenvolvimento e pelo avanço da descolonização, expressa profundamente essa repulsa racista em relação às massas. É o ethos colonial e escravocrata racista que segue vivo por trás da fachada do empresariado capitalista moderno. Sem a destruição revolucionária da supremacia branca, através da derrota de seu Estado e do desmantelamento do poder social que lhe dá sustentação, não é possível a nação nem a democracia no Brasil.
4 – O legado de Florestan para esquerda socialista brasileira do século XXI
Vivemos no país aquela que pode ser considerada uma das mais graves crises de nossa história. Uma recessão profunda que se arrasta por três anos seguidos, promovida por uma política econômica sabotadora da atividade produtiva e voltada exclusivamente aos ganhos do parasitismo rentista; uma crise social catastrófica que combina desemprego em massa e desmonte dos serviços públicos e garantias sociais e trabalhistas do povo; um apodrecimento a céu aberto do regime político e suas instituições, mergulhadas na mais explícita e indecente corrupção e arbitrariedade, cuja perda de legitimidade é compensada pelo endurecimento repressivo galopante. A aliança pragmática entre uma casta política mafiosa, em busca de escapar dos braços do Ministério Público e da Polícia Federal, e a alta burguesia nacional e transnacional, interessada em reorganizar o país em função de seus interesses restritos e exclusivos, levam a sociedade brasileira a viver um processo desconstituinte imposto por um governo e um parlamento destituídos de qualquer apoio popular. O resultado é a aceleração da degeneração rentista do capitalismo brasileiro, o aprofundamento da degeneração oligárquica do regime político e o avanço da regressão neocolonial do país em relação ao capitalismo transnacional. Não há futuro com dignidade para o povo brasileiro sob a tutela dessa classe e desse projeto.
A crise vivida no país está imbricada com a crise global do capitalismo. Nos últimos 10 anos, a economia mundial vive sob o espectro da estagnação, resultado do obstáculo que o rentismo financeiro impõe ao desenvolvimento da atividade produtiva. A tirania dos interesses rentistas submeteu os regimes políticos burgueses ao enrijecimento e à esclerose, tornando-os impermeáveis às mais elementares demandas democráticas do povo trabalhador. O revezamento no poder entre os partidos não significa mais alternância de projetos, mas apenas a troca entre administradores do mesmo projeto, conduzidos pelos mesmos interesses elitistas. Dessa forma, os interesses e necessidades populares apenas podem se expressar por fora e contra a lógica do regime. No Brasil, essa crise de legitimidade do regime político burguês eclode com as Jornadas de Junho de 2013 e segue se aprofundando desde então.
Esse regime da “Nova República” expressa uma transição incompleta que tirou o país da ditadura militar, mas não o levou à democracia. Pleno de inconsistências desde sua origem – com a supressão da exigência popular por eleições diretas esmagada sob o Colégio Eleitoral imposto de cima, em 1985; com a Constituição de 1988 elaborada pelo Congresso Nacional e não por uma Assembleia Constituinte exclusiva; com a continuidade da tutela militar sobre o poder civil; ou seja, com a revolução democrática sufocada pela “transição transada” com os agentes e beneficiários da ditadura – o novo regime que foi entusiasticamente saudado por amplos setores da esquerda e do PT como a emergência da democracia entre nós, é recebido por Florestan com firmeza crítica, ressaltando – com uma análise classista – muito mais as continuidades que as rupturas nessa transição. “Decomposta a ditadura, trata-se de conseguir os mesmos fins por outros meios. A burguesia não trava uma luta pela democracia e pouco se importa com a democratização do país” (Fernandes, 1986, p. 37). A “democracia de cooptação” surgida como forma reciclada do regime “autocrático burguês” de dominação de classe, não deveria estabelecer os limites no interior dos quais ficaria restrita a luta política do povo e, sobretudo, do PT como partido proletário e popular. A revolução democrática não seria possível nesses marcos restritos e o partido assim tenderia a ser absorvido pela lógica e pelos mecanismos da dominação burguesa.
Essa posição de Florestan, coincidente com a do conjunto do campo da esquerda socialista e revolucionária do PT de então (no interior do qual atuava), revela-se ainda mais acertada a partir do distanciamento histórico no qual nos encontramos hoje. No entanto enfrentou duras resistências de personalidades e setores majoritários no partido que consideravam a “Nova República” como o arcabouço institucional democrático que abria passo a uma estratégia socialista centrada na disputa eleitoral e nos limites da legalidade estabelecida na “Constituição Cidadã”, apesar de suas ambiguidades. Abaixo, uma consideração feita a respeito dessa questão por Carlos Nelson Coutinho já no ano 2000, quando o entusiasmo da esquerda do PT com o novo regime já havia esfriado significativamente.
Florestan também supõe, como vimos, que o período iniciado em 1985 é apenas o “último refúgio da ditadura”. Ao fazer essas observações críticas, não pretendo de modo algum negar o fato indiscutível de que, com seu salutar radicalismo, Florestan desmistificou muitas das ilusões que dominavam setores importantes da esquerda em sua avaliação da situação aberta com a chamada “Nova República”, uma expressão que, lucidamente, ele sempre fazia acompanhar ou de aspas ou de um ponto de interrogação. Quando hoje — à luz do que agora sabemos sobre os Governos Sarney, Collor e Cardoso — reexaminamos a denúncia florestaniana das tendências regressivas e conservadoras contidas na nova fase histórica que então se iniciava, somos forçados a constatar que muito daquilo que a alguns de nós parecia na época manifestação do “sectarismo” do velho Florestan era, ao contrário, uma confirmação da sua lucidez analítica e da sua capacidade de previsão (Coutinho, 2000).
O legado político e teórico de Florestan não interessa à esquerda socialista de nossos dias apenas em função de seu necessário e lúcido balanço crítico da “Nova República” e dos riscos envolvidos na absorção do PT pela “democracia de cooptação”, funcional à reprodução do capitalismo dependente. Florestan segue importantíssimo no que diz respeito à correta caracterização da natureza democrática, nacional e descolonial da Revolução Brasileira (e latino-americana) como antessala da construção socialista, ou seja, como criação das condições políticas e sociais necessárias para a luta da classe trabalhadora pelo socialismo, em uma perspectiva necessariamente transicional e ininterrupta. O processo político bolivariano na Venezuela, sob a liderança de Hugo Chávez, se deu como um processo revolucionário democrático e nacional, sustentado na mobilização das massas do povo trabalhador contra o capitalismo dependente e o mando antidemocrático da burguesia. Assim como Florestan indica, a referência ideológica dessa mobilização precisou ir além do democratismo burguês e apontou diretamente para uma transição de natureza socialista. No entanto, ao não ter ido além do arcabouço econômico herdado do capitalismo rentista petroleiro, o processo revolucionário estancou e degenerou, como se pode ver agora com a burocracia corrupta de Maduro no poder e sua recomposição com a espoliação imperialista dos recursos naturais e financeiros do país.
De modo similar, é preciso que saibamos nos apropriar do legado de Florestan no que diz respeito ao seu modo ousado de recusar o dogmatismo das correntes marxistas dominantes do seu tempo e de apontar no sentido de continuar a obra dos mestres do socialismo e não se contentar em repetir suas fórmulas e esquemas. O marxismo descolonial de Florestan, leninista e latino americano, representa não apenas uma adaptação do materialismo dialético às condições da luta de classes na periferia dependente do capitalismo global como, por essa via, também enriquece o patrimônio da teoria e política marxista como um todo. O lugar que confere à questão racial e ao protagonismo da negritude na sua formulação relativa à Revolução Brasileira mostra-se, mesmo hoje, como um posicionamento de vanguarda, muito à frente do que a maior parte da esquerda socialista tem sido capaz de sistematizar como prática política e elaboração teórica. A compreensão da Revolução Brasileira como sendo também uma revolução racial, capaz de levar o processo histórico de descolonização até o fim, no atual contexto de acirramento da política burguesa e racista de extermínio da população negra – sobretudo da juventude – dota a luta socialista da classe trabalhadora de um componente explosivo de radicalidade que não pode deixar pedra sobre pedra da velha ordem sempre reatualizada no país.
Referências bibliográficas
COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e “imagem do Brasil” em Florestan Fernandes. Disponível em: <http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=90>.
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro. Zahar. 1973
_________________. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro. Zahar. 1975.
_________________. Poder e contrapoder na América Latina. Rio de Janeiro. Zahar. 1981.
________________. O significado do protesto negro. São Paulo. Autores Associados. 1989.