Zizek: o que ver em Lênin, 101 anos depois
Pensador esloveno relembra um sonho célebre de Trotsky e lhe atribui dois sentidos opostos. Aposta no segundo: Lênin vive porque o comunismo, embora frágil como nunca no Ocidente, é mais necessário do que sempre, no mundo todo
Imagem: Lênin, pintado em mural em meio a uma plantação de bananas (Diego Rivera)
Lênin morreu há 101 anos, em 21 de janeiro de 2024. Levando em conta o destino de seu legado nas últimas décadas, parece apropriado lembrar este aniversário com um ano de atraso. Onde estamos hoje, não apenas em relação a Lênin, mas também em relação ao projeto revolucionário radical associado ao seu nome?
Em 1922, quando os bolcheviques tiveram que recuar para a “Nova Política Econômica”, permitindo uma presença muito mais ampla da economia de mercado e da propriedade privada, Lênin escreveu um curto texto intitulado Sobre a Escalada de uma Alta Montanha. Ele usa a metáfora de um alpinista que precisa recuar até o ponto zero, até o chão, após sua primeira tentativa de alcançar um novo pico, para descrever como alguém pode recuar sem trair oportunisticamente sua fidelidade à causa. Os comunistas “que não se entregam ao desânimo e que preservam sua força e flexibilidade para ‘começar do começo’ várias vezes, ao enfrentar uma tarefa extremamente difícil, não estão condenados.” Esse é Lênin em sua melhor forma beckettiana, ecoando a frase de Worstward Ho: “Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor.”
Uma abordagem leninista como essa é mais necessária do que nunca hoje, quando o comunismo, a única maneira de enfrentar os desafios que enfrentamos (ecologia, guerra, inteligência artificial…), torna-se cada vez mais inoperante politicamente – o que resta da esquerda é cada vez menos capaz de mobilizar as pessoas em torno de uma alternativa viável à ordem global existente. Mas “Lênin” não representa justamente a dimensão que deveria ser apagada, se a esquerda quiser ter alguma chance de se tornar novamente uma força mobilizadora?
Talvez a maneira de romper esse impasse de refletir interminavelmente sobre a fraqueza da esquerda, lamentando como é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, seja mudar de plano e focar no capitalismo. O próprio sistema não apenas imaginou com sucesso o pós-capitalismo, mas está, na realidade, transformando-se em uma nova ordem pós-capitalista. As apostas aqui são extremamente altas – ninguém estava mais ciente disso do que o próprio Trotsky, como fica claro em seu sonho sobre Lênin morto, na noite de 25 de junho de 1935:
Na noite passada, ou melhor, no início desta manhã, sonhei que tinha uma conversa com Lênin. Julgando pelo ambiente, estávamos em um navio, no convés da terceira classe. Lênin estava deitado em um beliche; eu estava em pé ou sentado perto dele, não tenho certeza. Ele me perguntava ansiosamente sobre minha doença. ‘Parece que você desenvolveu fadiga nervosa, precisa descansar…’ Respondi que sempre me recuperei rapidamente da fadiga, graças à minha Schwungkraft [“ânimo”, ou “impulso”, em alemão]inata, mas que desta vez o problema parecia residir em processos mais profundos… ‘Então você deve seriamente (ele enfatizou a palavra) consultar os médicos (citando vários nomes)…’ Respondi que já havia feito muitas consultas e comecei a contar a ele sobre minha viagem a Berlim; mas ao olhar para Lênin, lembrei-me de que ele estava morto. Imediatamente tentei afastar esse pensamento, para poder terminar a conversa. Quando acabei de contar sobre minha viagem terapêutica a Berlim em 1926, quis acrescentar: ‘Isso foi depois da sua morte’; mas me contive e disse: ‘Depois que você adoeceu…’
Em sua interpretação desse sonho, Lacan se concentra no vínculo óbvio com o sonho de Freud, no qual seu pai aparece para ele, um pai que não sabe que está morto. Mas o que significa que Lênin não sabe que está morto?
Há duas maneiras radicalmente opostas de interpretar o sonho de Trotsky. Segundo a primeira leitura, a figura aterrorizantemente ridícula do Lênin morto-vivo “não sabe que o imenso experimento social que ele trouxe à existência (e que chamamos de comunismo soviético) chegou ao fim. Ele permanece cheio de energia, embora morto, e as invectivas lançadas contra ele pelos vivos – de que ele foi o originador do terror stalinista, de que era uma personalidade agressiva cheia de ódio, um autoritário apaixonado pelo poder e pelo totalitarismo, até mesmo (o pior de tudo) o redescobridor do mercado na sua NEP – nenhuma dessas acusações consegue conferir-lhe a morte, nem mesmo uma segunda morte. Como é possível, como pode ser que ele ainda pense que está vivo? E qual é a nossa própria posição aqui – que seria, sem dúvida, a de Trotsky no sonho –; qual é o nosso próprio desconhecimento, qual é a morte da qual Lênin nos protege?”
O Lênin morto que não sabe estar morto representa, assim, nossa própria recusa obstinada em renunciar aos grandiosos projetos utópicos e aceitar as limitações da nossa situação: não há um Grande Outro, Lênin era mortal e cometeu erros como todos os outros, então é hora de deixá-lo morrer, de pôr para descansar esse fantasma obsceno que assombra nosso imaginário político e de abordar nossos problemas de uma maneira pragmática e não ideológica…
Mas há outro sentido em que Lênin ainda esteja vivo: ele está vivo na medida em que encarna o que Badiou chama de “Ideia eterna” da emancipação universal, a busca imortal pela justiça que nenhum insulto e nenhuma catástrofe conseguem matar.
Deve-se lembrar aqui as palavras sublimes de Hegel sobre a Revolução Francesa, extraídas de suas Lições sobre a Filosofia da História Universal:
Diz-se que a Revolução Francesa resultou da filosofia, e não é sem razão que a filosofia foi chamada de Weltweisheit (sabedoria do mundo); pois ela não é apenas a verdade em si e para si, como a essência pura das coisas, mas também a verdade em sua forma viva, tal como se manifesta nos assuntos do mundo. Não devemos, portanto, contradizer a afirmação de que a Revolução recebeu seu primeiro impulso da filosofia. […] Jamais, desde que o sol esteve no firmamento e os planetas giraram ao seu redor, se percebeu que a existência do homem se centra em sua cabeça, ou seja, no pensamento, inspirado pelo qual ele constrói o mundo da realidade. […] Somente agora o homem avançou até o reconhecimento do princípio de que o pensamento deve governar a realidade espiritual. Isso foi, portanto, uma gloriosa aurora mental. Todos os seres pensantes compartilharam da exultação dessa época. Emoções elevadas agitaram as mentes dos homens naquela época; um entusiasmo espiritual percorreu o mundo, como se a reconciliação entre o divino e o secular tivesse sido finalmente realizada.
Isso, é claro, não impediu Hegel de analisar friamente a necessidade interna dessa explosão de liberdade abstrata se transformar em seu oposto: o terror revolucionário autodestrutivo.
No entanto, nunca se deve esquecer que a crítica de Hegel é imanente, aceitando o princípio básico da Revolução Francesa (e seu complemento essencial, a Revolução Haitiana).
E é exatamente essa abordagem que se deve adotar em relação à Revolução de Outubro (e, posteriormente, à Revolução Chinesa). Como Badiou apontou, foi o primeiro caso em toda a história da humanidade de uma revolta bem-sucedida dos pobres explorados.
Eles eram o ponto zero da nova sociedade; eles estabeleceram os padrões. Contra todas as ordens hierárquicas, a universalidade igualitária chegou diretamente ao poder.
A revolução se estabilizou em uma nova ordem social: um novo mundo foi criado e milagrosamente sobreviveu em meio a pressões econômicas e militares impensáveis e ao isolamento.
Foi, de fato, “uma gloriosa aurora mental. E todos os seres pensantes compartilharam da exultação dessa época.”
Tradução: Antonio Martins