Emergência climática: como enfrentar o negacionismo e o racismo ambientais?
A falta de políticas públicas, de investimentos e de obras voltadas para os bairros e populações periféricas se mostra ainda mais grave quando ocorrem tragédias
Foto: Prefeitura do Recife
O Rio Grande do Sul enfrentou a pior tragédia climática de sua história, que provocou a morte de pelo menos 182 pessoas e deixou centenas de milhares de desalojados. O desastre afetou quase todos os municípios gaúchos e expôs as fragilidades dos sistemas de proteção contra cheias, a falta de investimentos na Defesa Civil e o desmantelamento das políticas climáticas ao longo dos anos.
Ao mesmo tempo, também mostrou para todo o Brasil que as mudanças climáticas, um conceito que parecia distante e abstrato, já estão presentes e afetando diretamente a vida da população. O “caos climático” cada vez mais tem se tornado a regra, e não a exceção. Além das inundações no Rio Grande do Sul, no ano de 2024 o Brasil também enfrentou intensas queimadas na região amazônica, no cerrado e no pantanal, cuja fumaça se alastrou por todo o país, causando danos ao ecossistema e à saúde da população. Essa dinâmica se repete, ignorando fronteiras e afetando inúmeros territórios e países. Foi o que vimos na Argentina e no Uruguai, e recentemente também nos Estados Unidos, onde inúmeros focos de incêndios florestais causaram a morte de 16 pessoas e o deslocamento de outras 180 mil.
Entretanto, quem mais sofre com eventos como esses é justamente a população mais vulnerável e periférica. Estudos comprovaram que a população pobre e negra foi a mais afetada pelas enchentes. É claro que todos os gaúchos e gaúchas sofreram com essa tragédia, mas enquanto 14% da população do estado teve que sair de suas residências pela inundação, essa proporção sobe para 24% entre as pessoas negras. As pessoas com menor nível de escolaridade também foram mais afetadas: daqueles que estudaram até o ensino fundamental, 46% relataram prejuízo com as enchentes, diante de 26% da população com nível superior.
É isto que chamamos de “racismo ambiental”, ou seja, as formas como as minorias étnicas, como pessoas negras, indígenas e quilombolas, e outras populações minorizadas são desproporcionalmente mais afetadas pelas mudanças climáticas e estão mais vulneráveis a sofrerem as consequências delas. A falta de políticas públicas, de investimentos e de obras voltadas para os bairros e populações periféricas se mostra ainda mais grave quando ocorrem tragédias como essa.
O povo sente na pele, diariamente, as consequências das mudanças climáticas. A extrema direita insiste em culpar o governo Lula pelo aumento do preço dos alimentos, mas o Observatório do Clima constatou que a crise climática vem produzindo esse aumento desenfreado. O café, por exemplo, subiu 40% no ano passado, na esteira da pior seca já registrada no país. O aumento do preço do azeite está diretamente ligado às altas temperaturas na região do Mediterrâneo, que produz a maior parte do azeite do mundo. Muitas produções agrícolas foram afetadas no Brasil também, assim como a pecuária, com perda de até 39% da área agricultável de soja, alimento para o gado.
Essas consequências também são sentidas na precarização da vida e do cotidiano: é o calor extremo em um ônibus com ar condicionado estragado, é a rua que alaga com 10 minutos de chuva intensa, as doenças transmitidas por mosquitos que se espalham cada vez mais… . Porque a forma de vida no mundo capitalista não é pensada para reduzir o impacto sobre os ecossistemas, e quem paga o preço sempre é quem está nas camadas mais baixas.
Um relatório da Oxfam lançado já em 2025 constatou que o 1% mais rico emite mais do que o dobro de carbono do que a metade mais pobre da humanidade. Ainda, que os bilionários emitem mais carbono em 90 minutos do que uma pessoa comum emite em toda sua vida. É por isso que defendemos que a luta ambiental precisa ter um viés anticapitalista. Deve ser uma luta por outro modelo econômico, outro modelo de vida, que não seja focado no acúmulo de riqueza, de lucro, os quais estão diretamente ligados à devastação ambiental. Não basta mudar o clima, é preciso mudar o sistema político e econômico.
Sob o jugo da competição, a grande indústria e as finanças fortalecem seu domínio despótico sobre as pessoas e a Terra. E apesar dos gritos de alarme da ciência, a destruição continua. O desejo de lucro, como um autômato, exige cada vez mais mercados e cada vez mais bens, o que significa mais exploração da força de trabalho e pilhagem dos recursos naturais.
A mudança climática é o aspecto mais perigoso da destruição ecológica, representando uma ameaça à vida humana sem precedentes na história. A Terra corre o risco de se tornar um deserto biológico inabitável para bilhões de pessoas pobres que não são responsáveis por esse desastre. Para impedir essa catástrofe, precisamos reduzir pela metade as emissões globais de dióxido de carbono e metano até 2030 e eliminá-las até 2050.
O capitalismo verde neoliberal e o negacionismo climático de extrema direita não são a mesma coisa; Este último é muito pior, mas nenhum desses regimes será capaz de impedir que o aquecimento global continue, com consequências desastrosas. E o primeiro alimenta o segundo. Embora as vítimas sejam mais numerosas nos países pobres, os países ricos também sofrerão perdas dramáticas. O capitalismo global não está progredindo gradualmente em direção à paz e ao desenvolvimento sustentável, mas está recuando e a passos largos em direção à guerra, ao desastre ecológico, ao genocídio e à barbárie neofascista.
Para respeitar esse imperativo ecológico-climático, é necessário mudar a própria orientação da economia de cima para baixo: em vez de satisfazer a corrida pelo lucro dos capitalistas, a ciência e os avanços tecnológicos devem ser usados para atender às necessidades sociais da humanidade e regenerar o ecossistema global. É a única solução que nos permite conciliar a necessidade legítima de bem-estar de todos com a regeneração do ecossistema global.
Mas se ainda não força para mudar estruturalmente o modelo econômico, algumas medidas são básicas para que possamos barrar a devastação do planeta. É preciso rever a matriz energética baseada em combustíveis fósseis como petróleo e carvão, e que os setores de geração de energia sejam públicos e com controle social, a exemplo da própria Petrobras que hoje é controlada, na prática, pelos acionistas privados. Além disso, barrar o avanço da bancada ruralista e a pressão pela expansão da monocultura e do latifúndio, que gera desmatamento, é crucial. É preciso superar a dependência da economia brasileira do agronegócio predatório, que não vira alimento para a população, mas apenas commodities exportadas e é um dos grandes responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa no país. Para isso é preciso avançar em uma profunda reforma agrária, incentivando a agricultura familiar, sem agrotóxicos, ao invés do grande latifúndio.
Aqui, no Rio Grande do Sul, a bancada do PSOL vem se dedicando muito a esse tema ao propor medidas concretas que contribuem para mitigar a crise climática. Logo após as enchentes, protocolamos uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabeleceria um percentual mínimo de investimentos anuais à prevenção de danos causados por desastres ambientais e mudanças climáticas.
Chamamos essa proposta de PEC da Resiliência Climática. O percentual sugerido é de 1% do orçamento estadual anual, o que pode parecer pouco, mas já é bem mais do que o governo vem investindo. Para se ter como exemplo, adotando-se o resultado fiscal de 2023, isso significaria pouco menos de R$ 600 milhões de reais naquele ano.
Este montante de 1% pode parecer pouco, mas é mais do que o governo gaúcho investiu na temática nos anos anteriores à tragédia. O governo do estado afirma que investiu R$ 117 milhões na Defesa Civil em 2024. Levantamento feito pela nossa bancada descobriu que esse número estava inflado, mas que mesmo que esse fosse o total investido, ainda seria insuficiente diante da grande dimensão do desafio a ser enfrentado, devido à repetição e intensificação de eventos climáticos extremos.
Defendemos que ao invés de apenas reagir aos desastres, o Estado precisa se antecipar e atuar na prevenção e na criação de estruturas com capacidade adaptativa. Isso, inclusive, geraria menos gastos do que os valores que estão sendo investidos agora na reconstrução. Estima-se que o custo da reconstrução total do Rio Grande do Sul pode alcançar R$ 200 bilhões de reais. Logo, fica evidente que é significativamente menos custoso direcionar atenção à prevenção do que à recomposição dos danos.
Mas a falta de investimentos não foi o único erro do governo Eduardo Leite em relação ao meio ambiente. Ao longo dos últimos anos, deputados da base aliada aprovaram projetos que flexibilizaram as normas de proteção ambiental. Pensando em revogar medidas prejudiciais para o meio ambiente, a bancada do PSOL apresentou o projeto apelidado de Revogaço. O objetivo do projeto de lei é revogar o conjunto de normas que afrontam os princípios da precaução e da prevenção ambientais.
É urgente impedir a flexibilização das leis de proteção ambiental e buscar a criação de normas mais rigorosas para sua preservação. O fortalecimento do Estado e de seus mecanismos de proteção ambiental e fiscalização da atividade econômica são aspectos cruciais para a garantia do direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem coletivo que deve ser preservado não apenas hoje, mas sobretudo para as futuras gerações, que veem diante de si um futuro que se desenha cada dia mais sombrio e incerto.
Quanto a possíveis avanços na agenda ambiental, é importante lembrarmos que neste ano a reunião dos países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a chamada “Conferência das Partes”, ocorrerá no Brasil, em Belém, no mês de novembro. A COP é um espaço-chave para que discutamos estratégias para lidar com os impactos das Mudanças Climáticas juntamente com representantes de diferentes países e integrantes da sociedade civil. O evento ganha relevância também diante dos últimos desdobramentos envolvendo a saída dos Estados Unidos, país que mais polui o planeta, do Acordo de Paris, que estabelece metas de redução de emissões.
Além disso, será uma nova oportunidade para que o tema do financiamento efetivamente avance, diante da frustração das negociações da última Conferência. É urgente que países desenvolvidos se comprometam com o repasse de valores aos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, para que se adaptem e protejam suas populações e biomas. Esta será uma oportunidade única para que, em território brasileiro, nos apropriemos das diretrizes internacionais, trazendo-as ao nível local, para pensarmos, de forma habilidosa, como a discussão travada entre países e organizações internacionais se reflete aqui, neste cotidiano cada vez mais árido do povo gaúcho.
Toda pequena ação conta, toda resistência pela proteção dos biomas do nosso estado, o Pampa e a Mata Atlântica, se soma; toda luta por estruturas urbanas resilientes e adaptativas constituem, conjuntamente, um relevante movimento de preservação e de redução do impacto dos eventos extremos sobre populações vulnerabilizadas e empobrecidas. A desesperança paralisa, e é necessário buscar por formas alternativas de fazer face a este horizonte dramático , pois ele ainda pode ser transformado.