O Brasil dos brasileiros e a execução de Ngange Mbaye
Sobre o recente assassinato de um imigrante senegalês pela polícia militar em meio à nova campanha de propaganda do governo federal
Foto: Protesto em São Paulo denunciando o assassinato de Ngange Mbaye pela polícia militar. (Lucas Martins/Migramundo)
A execução do trabalhador ambulante senegalês Ngange Mbaye pela polícia militar de São Paulo, ocorrida recentemente no bairro do Brás, indignou trabalhadores e compradores da famosa região de comércio popular da capital. Ngange foi assassinado ao tentar proteger colegas de trabalho informal que estavam sendo atacados por policiais e foi alvejado com um tiro a queima roupa em plena luz do dia, deixando dois filhos e uma companheira grávida de 7 meses. Em abril do ano passado, outro senegalês (Talla Mbaye) também foi assassinado em uma controversa operação da polícia militar na região central de São Paulo.
Acompanhando as recentes manifestações de denúncia contra esse crime absurdo, nos lembramos do assassinato do congolês Moïse Kabagambe, trabalhador de 24 anos espancado até a morte em 2022 em um quiosque de praia no Rio de Janeiro quando cobrava salários atrasados. Ou do gambiano Bubacarr Dukureh, também assassinado pela PM de São Paulo supostamente por resistir a uma abordagem no bairro nobre dos Jardins em 2022. Todos imigrantes africanos, pretos retintos, que no Brasil se submetiam a trabalhos extremamente precários para garantir sua sobrevivência.
Em meio às notícias sobre a execução de Ngange, as redes sociais traziam também a nova campanha do governo brasileiro: O Brasil é dos brasileiros. Formulada como resposta nacional ao mote do governo Trump – Make America Great Again – a campanha também tem sua própria versão de boné (azul, em contraste com o vermelho trumpista) e é uma das apostas do governo Lula para apresentar projetos sociais e alavancar sua aprovação em meio à pior crise de popularidade de todas as suas gestões.
Ainda que qualquer contraposição de Lula ao imperialismo de Trump seja louvável, o tom ufanista da campanha do governo é um absurdo que a morte de Ngange deixa ainda mais evidente. Por todo o país, especialmente nas grandes cidades, os diversos fluxos migratórios mudam bairros, escolas, serviços de saúde e locais de trabalho. Além das enormes comunidades boliviana e peruana já estabelecidas há mais tempo, eventos como guerras, crises econômicas, catástrofes climáticas e perseguições políticas em seus países trouxeram ao Brasil inúmeras famílias trabalhadoras de venezuelanos, haitianos, congoleses, senegaleses, gambianos, nigerianos, sírios, palestinos, afegãos, entre povos de diversas outras origens. Quem caminha pelas ruas da cidade de São Paulo, não só no centro como também em muitas periferias, escuta vários idiomas e vê diferentes vestimentas de um número cada vez maior de imigrantes de diferentes partes do planeta.

Mesmo que o Brasil tenha leis de acolhimento bem melhores do que os países do Norte Global, esta força de trabalho muitas vezes indocumentada chega ao país ocupando postos mal remunerados, sendo excluída do acesso à serviços públicos básicos por problemas de documentação, pela questão do idioma ou pelas várias outras barreiras que se impõe aos imigrantes e refugiados. E, especialmente nos casos dos imigrantes da África subsaariana, enfrentam os mais altos níveis da violência racista e das políticas genocidas de estado contra a população negra. Nessa situação vulnerável, muitos se tornam alvos fáceis para aliciadores de todo tipo, se submetem a condições degradantes de moradia e trabalho e outras situações ainda piores do que as enfrentadas pelos trabalhadores precarizados brasileiros.
Como não votam, também são deixados de lado pela grande maioria de legisladores e gestores que definem políticas públicas a partir de critérios exclusivamente eleitorais. Ou seja, na maioria das situações, as comunidades imigrantes são grupos de trabalhadores que enfrentam algumas das piores condições de vulnerabilidade social do país, enfrentadas através da própria autoorganização destas comunidades, de iniciativas da sociedade civil e de espaços de acolhimento religioso. Longe de “roubar empregos” ou “ocupar serviços públicos”, como dizem os fascistas, são trabalhadores cuja mão de obra superexplorada contribui diretamente para a produção de riqueza no país.
Neste cenário, a campanha O Brasil é dos brasileiros é sentida como um tapa na cara vindo de um governo que venceu as últimas eleições contra um projeto bolsonarista declaradamente xenófobo. Ao apostar num viés nacionalista em contraposição ao imperialismo, a propaganda cai no seu oposto e reforça ideias cultivadas pela extrema direita que tanto lutamos para combater, numa dissociação que chega até mesmo em setores da esquerda dita internacionalista que não se constrangem em divulgar a mensagem do boné azul.
Provavelmente tal campanha não dará certo enquanto o governo concentrar seu nacionalismo somente na propaganda e não tomar medidas econômicas que poderiam de fato afirmar a soberania do país, especialmente em temas como a política monetária ou na crise dos alimentos que derruba a popularidade de Lula. No contexto de uma gestão social liberal bastante fiel aos interesses do mercado, a campanha carrega uma boa dose de cinismo ao tentar iludir um povo permanentemente sugado pelas imposições do capital internacional com aval do governo.
Ngange Mbaye provavelmente não será a última vítima desta violência estruturada no racismo e xenofobia no Brasil. Mas o paradoxo entre seu assassinato e a campanha ufanista evidencia uma demagogia cuja crítica nos parece obrigatória.