Os bolcheviques e a literatura
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Os bolcheviques e a literatura

Entre a preferência leninista pelo realismo do século XIX e a “estranha e incompreensível” vanguarda de Maiakóvski, emerge o paradoxo bolchevique: como construir cultura proletária sem cair no “ateísmo religioso” de Bogdánov ou na frivolidade futurista?

Celso Frederico 17 jun 2025, 07:17

Imagem: O Artista. (Kazimir Malevich)

Via A Terra é Redonda

1.

A preferência pelo Realismo era explícita em Vladímir Lênin, bem como seu apego à tradição dos críticos literários democráticos que valorizavam o caráter social da literatura russa do século XIX. E nem poderia ser diferente num autor que tanto se empenhou em defender a teoria do reflexo e o papel social da arte.

Jean Michel Palmier, em sua detalhada análise das incursões literárias de Lênin, observou que na polêmica contra os populistas mostrou como eles foram incapazes de compreender a força social dos personagens romanescos: “Longe de ver nos heróis de Gogol, de Turguêniev e Puskhin “tipos sociais”, não viam neles mais do que a particularidade de “caracteres”. As personagens da literatura russa são para eles figuras de museu, pois são incapazes de compreender a importância da dimensão crítica que eles encarnam” […]. Vladímir Lênin tenta compreender as personagens romanescas, não como simples expressão das ideias particulares do escritor, mas como um tipo que reflete as condições sociais, as forças que agiram ao longo do século XIX e do princípio do século XX”.1

A valorização da tipicidade na literatura, defendida por Friedrich Engels e presente em toda a teoria estética de György Lukács, visa sempre destacar a personalidade social da personagem, apresentada como mediação entre o singular e o universal para, através desse recurso, apontar as relações sociais subjacentes que engendraram a personagem. Jean Michel Palmier reproduz também estudos estatísticos sobre as referências a escritores feitas por Vladímir Lênin no decorrer de sua obra, bem como seu espírito satírico que se divertia comparando os seus adversários políticos a personagens romanescas.

Em suas recordações, Krupskaya, a viúva de Lênin, afirmou que a novaarte praticada pela vanguarda parecia a ele “estranha e incompreensível”. De modo semelhante, Górki lembrou que Vladímir Lênin “desconfiava de Maiakóvski e ficava até bastante irritado com ele. “Ele grita, inventa algum tipo de palavra distorcida e não chega a lugar nenhum, na minha opinião, e além disso é incompreensível. É tudo desconexo, difícil de ler. Ele é talentoso? Muito talentoso, até? Hm, hm, veremos”.2

Clara Zetkin, a propósito, referiu-se à confissão de Vladímir Lênin feita numa conversa: “Não posso considerar manifestações supremas do gênio artístico as obras do expressionismo, do futurismo, do cubismo e demais “ismos”. E não me proporcionam o menor prazer”. Depois, rindo, disse que nós éramos velhos e que se “não podemos acompanhar o passo da nova arte, iremos mancando à retaguarda”.3

As divergências com o Proletkult, contudo, iam muito além da preferência estética, pois envolvia questões políticas e filosóficas.

Foi justamente uma questão política que deu início ao confronto: o grupo em torno de Bogdánov passou a defender a saída dos deputados social-democratas das instituições políticas legais – sejam as parlamentares (a Duma), sejam os sindicatos oficiais. A proposta de não participação nos organismos legais, que ficou conhecida como Otzovismo, recebeu a implacável crítica de Vladímir Lênin que sempre defendeu a ocupação dos espaços legais para a difusão das ideias revolucionárias. Tempos depois, a argumentação foi por ele retomada em Esquerdismo, doença infantil do comunismo.

Para desagrado de Vladímir Lênin, a teoria marxista em Bogdánov recebeu o acréscimo das filosofias empiriocriticista e empiriomonista, base teórica para criar o ateísmo religioso, a religião sem Deus (os seus adeptos passaram, por isso, a serem chamados “Os Construtores de Deus”). O próprio marxismo era apresentado como uma nova religião, o anúncio de uma nova vida.

Essa surpreendente guinada teórica, para Vladímir Lênin, significava um perigo para o movimento revolucionário. O conflito só poderia se acirrar, pois Bogdánov “era mais conhecido pelos operários, naquela época, do que Lênin, a ponto de ser considerado, em 1905, como o chefe dos bolcheviques”.4

2.

A substituição do materialismo pela religião produziu uma acirrada discussão teórica. Em suas cartas a Górki, Lênin, diplomática e pacientemente, procurava manter o escritor que ele tanto prezava distante da influência de Bogdánov e Lunatchárski. Em 25.11.1908, expressou a antiga aversão que sentia por Bogdánov, que sempre o deixava “irritado” e “enfurecido”.

Contou, então, que havia lido a antologia Ensaios de filosofia do marxismo, publicada pelos empiriocriticistas, e cada artigo “me fez enfurecer de indignação. Não, isso não é marxismo! Os nossos empiriocríticos, empiriomonistas e empiriosimbolistas atolam-se na lama. Afirmar ao leitor que a “fé” na realidade do mundo exterior é “misticismo” (Bázarov), confundir da maneira mais escandalosa o materialismo e o kantismo (Bázarov e Bogdánov), predicar uma variedade de agnosticismo (o empiriocriticismo) e de idealismo (o empiriomonismo), ensinar aos operários o “ateísmo religioso” e a adoração das supremas potências humanas (Lunatchárski), qualificar de misticismo a doutrina de Engels sobre a dialética (Berman), beber nas fontes hediondas de certos “positivistas” franceses, agnósticos ou metafísicos, que o diabo os leve, com a teoria simbólica do conhecimento (Yushkévich). Não, isso já é demais”.5

Todo esse imbróglio teórico servia de fundamento para justificar a necessidade de se criar uma cultura operária em oposição à cultura burguesa. Lênin sentiu-se na obrigação de defender o marxismo e o fez num livro controverso, Materialismo e empiriocriticismo, publicado em 1909.6 A derrota do movimento revolucionário havia então gerado um pessimismo difuso que impregnou a atmosfera cultural e afastou intelectuais e artistas da atividade política. Vladímir Lênin, acreditando que “sem teoria revolucionária não há prática revolucionária”, defendeu o marxismo como uma filosofia materialista em tudo diferente das formulações de Bogdánov.

Ele argumentou repetidas vezes que a tese central do materialismo dialético é a existência da matéria como um dado anterior e independente em relação a consciência. Se a matéria é o dado primeiro, dizia, a consciência só pode ser dela derivada: ela é o reflexo da realidade exterior em nossa consciência. Bogdánov, influenciado pelo físico Ernst Mach, afirmava, contrariamente, que os objetos do mundo exterior não existem fora do espírito, que eles são apenas “combinações de sensações”.

Acreditando que diante de nós nada temos além de nossa própria percepção, Bogdánov aproximou-se de Berkeley: “ser significa ser percebido”. Contra essa tese que abstrai o mundo real, Vladímir Lênin ironizou seus adversários dizendo que o mais idealista deles, ao atravessar uma rua, não fechava os olhos para, assim, não “perceber” o carro que vem em sua direção.

O texto de Vladímir Lênin, redigido no calor da luta política, acabou tendo uma apropriação indevida pelo stalinismo que fez de um livro circunstancial o fundamento da filosofia marxista e da teoria do reflexo na criação literária. A aplicação da teoria do reflexo à literatura, não consta na obra. Quanto à teoria marxista, há que assinalar o caráter pouco dialético de Materialismo e empiriocriticismo. Entendida como mero reflexo, a consciência perde toda autonomia, condenando-se à passividade, à condição de espelho.

Vladímir Lênin, para criticar seus adversários, partiu de uma frase infeliz de Engels que interpretava toda a história da filosofia como uma luta entre materialistas e idealistas. Tradicionalmente, os primeiros, por afirmarem sem poder comprovar a existência da matéria, seriam “dogmáticos” segundo seus adversários; já os que negavam a existência prévia da matéria seriam “céticos”, como acusavam os materialistas. Partindo dessa oposição, Lênin postou-se, sem mais, ao lado dos materialistas.

Assim colocadas as coisas, fica difícil entender Hegel e, em especial, a sua dialética idealista-objetiva. E o descarte de Hegel quase sempre teve como consequência a transformação do marxismo num materialismo mecanicista. Por outro lado, a própria concepção de matéria, em Marx, não se confunde com o dado bruto, a natureza (não existe uma “dialética da natureza” em Marx). Desde as Teses sobre Feuerbach, Marx compreendia a matéria como matéria social, uma realidade já modificada pelo trabalho humano. A mediação do trabalho dialetiza, assim, as relações entre sujeito e objeto, consciência humana e mundo exterior.

3.

Alguns anos depois, em seu exílio na Suíça, Vladímir Lênin pôde finalmente ler a Ciência da Lógica de Hegel. Reproduziu com aprovação e entusiasmo frases que discrepavam de suas afirmações anteriores como, por exemplo, “é um equívoco considerar objetivo e subjetivo como uma oposição rígida e abstrata. Ambos são dialéticos”.7

Ou, então, afirmando: “O reflexo da natureza no pensamento humano deve ser compreendido não de modo “morto”, não “abstratamente”, não sem movimento, não sem contradição, mas no processo eterno do movimento, do surgimento das contradições e da sua resolução”.8

O impacto da leitura de Hegel foi tão forte a ponto de Vladímir Lênin afirmar: “não se pode compreender plenamente O capital de Marx, e particularmente o seu primeiro capítulo, sem ter estudado e compreendido toda a Lógica de Hegel. Portanto, meio século depois de Marx, nenhum marxista o compreendeu!!.9 A frase vale também como autocrítica…

Com a vitória da revolução e o crescimento do Proletkult, Vladímir Lênin voltou à carga, centrando-se agora não mais nas relações entre matéria e consciência, mas na questão da cultura proletária. No Primeiro Congresso do Proletkult procurou enquadrar o movimento no interior do aparelho estatal e partidário, contestando as pretensões de completa autonomia.

Em sua intervenção, considerou como “teoricamente falsos e praticamente nocivos, todos os intentos de inventar uma cultura particular”.10 Assim como o marxismo foi “o resultado da soma de conhecimentos adquiridos pela humanidade”, a cultura proletária deveria ser “o desenvolvimento lógico do acervo de conhecimentos conquistados pela humanidade sob o jugo da sociedade capitalista”.11

A Rússia vivia então sob a “incultura semiasiática” e, para sair dela, deveria resgatar a herança cultural da humanidade. Por isso, afirmou que “para começar nos bastaria uma verdadeira cultura burguesa”.12 Num país onde, em 1913, 73% da população era analfabeta, a questão educacional era básica: no discurso ao Congresso Nacional de Instrução Extra-Escolar (maio de 1920) observou que foi mais fácil “afastar os obstáculos exteriores [da revolução], em troca tivemos de sentir com tanto maior agudeza todo o peso do trabalho de reeducação das massas, de organização e de instrução, de difusão dos conhecimentos, da luta contra a herança de ignorância e incultura, de selvageria e embrutecimento que nos deixaram”.13

A “revolução cultural” defendida por Vladímir Lênin deveria seguir os passos do processo revolucionário: primeiro, a tomada do poder; depois, a formação cultural que necessita de um longo tempo de elaboração. Bogdánov, contrariamente, invertia os termos: a revolução é o coroamento do processo cultural. Por isso, ele advogava a criação de uma Universidade Proletária para formar novas lideranças, de uma Enciclopédia Proletária que, à semelhança da enciclopédia francesa de Denis Diderot, preparasse o terreno para a nova sociedade. Cultura proletária, arte, ciência – criadas a partir de uma reavaliação classista do que a humanidade até então produzira.

Essa crença no desenvolvimento da autoconsciência proletária (aquilo que mais tarde ficou conhecido como “basismo”), estava em aberta oposição às ideias expostas por Vladímir Lênin em Que fazer?: a consciência operária, sozinha, não vai além da consciência sindical, da luta por melhores salários. O salto do economicismo para a política exigia o conhecimento da teoria revolucionária cujo portador era o Partido que reunia os intelectuais revolucionários e os setores avançados da classe operária. A consciência operária, assim, vem “de fora”, não é uma criação espontânea, não é autoconsciência.

Vladímir Lênin considerava as especulações sobre cultura proletária perda de tempo e frivolidade, tendo em vista a necessidade de alfabetização e formação de mão de obra qualificada para construir a nova sociedade.

4.

Em suas incursões na crítica literária, Vladímir Lênin foi cauteloso em relação à teoria do reflexo, diferentemente das afirmações peremptórias de Materialismo e empiriocriticismo. Exemplo esclarecedor é a sua atitude ao analisar Liev Tolstói.

Refiro-me à principal contribuição de Vladímir Lênin no campo literário, o conjunto de seis artigos sobre aquele grande escritor. Uma preocupação política explica a necessidade de tomar partido perante a obra daquele autor. Liev Tolstói, completou 80 anos em 1908 e morreu em 1910. Os textos de Vladímir Lênin foram escritos nesses dois momentos quando o país discutia apaixonadamente o legado do escritor.

Lênin, então, travou uma dupla batalha. De um lado, havia os liberais que elogiavam Liev Tolstói em função do “tolstoismo”, as ideias místicas por ele professadas. De outro lado, à esquerda, havia a tendência a criticar Tolstói por ser um conde e, sendo assim, sua obra refletiria necessariamente a visão de mundo daquela classe. Marxistas como Plekhanov e Leon Trótski se inclinavam nessa direção.

Separando Liev Tolstói do “tolstoismo”, Lênin, sem conhecer a famosa carta de Engels a Harkness, defendeu a tese da “vitória do realismo” no escritor russo: ao escrever, o “realismo lúcido” que guiou o artista entrou em contradição com suas convicções pessoais. Quanto à origem social, acrescentou que a visão de mundo do escritor não era a de sua classe de origem, pois Liev Tolstói incorporou a perspectiva dos mujiques: ele foi o “porta-voz das ideias e do estado de espírito de milhões de camponeses russos nas vésperas da revolução burguesa na Rússia”.14

Em 1905, ocorreu uma revolução burguesa-camponesa cujo significado não foi compreendido por Liev Tolstói. O duplo caráter da revolução contém uma contradição, pois a expansão do capitalismo liquidava com as condições de existência desse segmento social, representando, assim, o fim do “tolstoismo”.

Ao dizer que Liev Tolstói foi o espelho da revolução russa, Vladímir Lênin tinha consciência do paradoxo: como alguém que não captou as forças motrizes do processo histórico pôde, em sua obra, refletir esse processo? Segundo Lênin, o escritor teria compreendido “alguns dos aspectos essenciais da revolução”.15 Sua crítica lúcida ao caráter burguês da revolução de 1905, apesar de permanecer prisioneira da visão de mundo camponesa, teria validade para o proletariado. As contradições de Liev Tolstói e do “tolstoismo”, portanto, expressam as reais condições sociais, e não seriam exclusivas do escritor, mas de vastos setores do campesinato.

Podemos notar que a expressão “espelho”, como foi usada por Lênin, nada tem a ver com a concepção mecanicista de reflexo, que sugere uma reprodução exata da realidade. Pierre Macherey, ao estudar os seis textos dedicados a Tolstoi, utilizou uma expressão feliz: espelho partido.16

Uma vez no poder, Vladímir Lênin se viu às voltas com a tarefa de estabelecer uma política para as artes, uma política inspirada no pensamento de Marx e Engels. E aqui, surgiu uma limitação: os textos em que Marx discutiu mais diretamente as relações entre arte e sociedade ainda não haviam sido publicados. É o caso dos Manuscritos econômico-filosóficos, dos Grundrisse, da Teoria sobre a mais-valia, da Introdução à Contribuição à crítica da economia política e do texto integral de A ideologia alemã. O mesmo aconteceu com diversas cartas de Friedrich Engels em que se discutem tópicos importantes sobre arte e realismo.17

Mesmo sem acesso a esses textos básicos que só seriam publicados a partir da década de 1930, a compreensão do legado de Marx encontrava-se bastante limitada.

Sem essas referências teóricas, Vladímir Lênin acompanhava atentamente a vida cultural russa, escrevendo pequenos artigos, cartas e discursos expressando suas opiniões.18

Todas as suas intervenções estão vinculadas a momentos determinados da vida política. Cada incursão, portanto, deve ser interpretada a partir dos debates políticos em que se inscreve. Assim, a leitura das antologias que recolheram seus comentários oferece ao leitor desavisado uma visão fragmentária de suas ideias. E, pior que isso, retirar à força desses textos circunstanciais elementos para uma pretensa “estética leninista”, como fez posteriormente o stalinismo, é uma completa falsificação.

5.

Leon Trótski também se manifestou a respeito do Futurismo e do Proletkult. Em 1922-1923, abriu um intervalo em suas atividades políticas para escrever o livro Literatura e revolução, demonstrando sua notável vocação como escritor e seu interesse pela vida literária.

Preocupado com as relações entre arte e revolução, escreveu uma carta a Antonio Gramsci solicitando explicações sobre o Futurismo na Itália para, em seu livro, observar que diferentemente daquele país, onde o Futurismo aderira ao fascismo, na Rússia ele é a expressão de uma boemia intelectual surpreendida pela revolução, tendo, porém uma de suas vertentes, guiada por Maiakóvski, aderido a ela com entusiasmo.

Defendendo o condicionamento social da arte contra a autonomia da forma pregada pelos futuristas, Leon Trótski observou que essa defesa “não significa, quando traduzida para a linguagem política, o desejo de dominar a arte por meio de decretos e de prescrições. É falso que só consideramos nova e revolucionária a arte que fala do operário”.19

Não deixou também de criticar o “fetichismo da palavra”. Embora reconhecendo as “conquistas do futurismo”, afirmou que seus artistas pecaram e pecam em sua “preferência quase monstruosa pelo som contra o sentido”20 e, por isso, os futuristas seriam os discípulos de São João: “para eles, “no começo era o Verbo”. Mas, para nós, o começo era a ação. A palavra acompanhou-a como sua sombra fonética”.21

O eixo da crítica, portanto, estava na autonomização da palavra vista somente em sua “função estética”, tal como a entendia o Círculo Linguístico de Moscou. Tal procedimento, segundo Trótski, deu resultados controversos. Maiakóvski, por exemplo, permaneceu numa zona fronteiriça afirmando “o caráter supérfluo do verso e da rima, e prometendo escrever fórmulas matemáticas, embora haja matemáticos para essa tarefa”; nos melhores momentos, porém, mostrou “com versos e rimas muito complexas, que a rima supérflua é necessária. Um enfoque puramente lógico destrói a questão da forma artística”.22

Outros poetas, contudo, preferiram o som ao sentido: “Quando Kruchenikh diz que sílabas desprovidas de sentido – dir, bul, tschil – contém mais poesia do que todo Pushkin (ou qualquer coisa parecida), isso se encontra a meio caminho entre a poética filológica e, se me perdoem, a insolência do mau gosto”.23 As críticas feitas pelos futuristas às interpretações extraliterárias (sociológicas, psicológicas etc.) das obras literárias atingiam frontalmente a tese marxista sobre a determinação social das ideias, o que explica a posição crítica daquele dirigente.

Leon Trótski acompanhava de perto as atividades do Proletkult e o projeto de criação de uma cultura proletária. Sua visão, como a de Lênin, estava ligada à política – no seu caso, à teoria da “revolução permanente”. Por isso, ao falar sobre a pretensão de se criar uma cultura proletária, lembrou que a cultura burguesa para se afirmar necessitou de diversos séculos e que a classe operária, ao contrário, já estava no poder com o projeto de pôr fim a todas as classes sociais, inclusive o proletariado, que “se dissolverá na comunidade socialista, libertar-se-á de suas características de classe, isto é, deixará de ser proletariado”. Não haverá, disse, concluindo o raciocínio, cultura proletária e “não existe motivo para lamentar isso”, pois a revolução abrirá caminho a uma “cultura da humanidade”.24

Esse modo de ver as coisas apresenta uma diferença em relação à Vladímir Lênin pois: “punha o acento não tanto na possibilidade de assimilar a “herança” do passado, mas a inevitabilidade de um período de luta política revolucionária internacional que absorveria energias do proletariado, sem deixar-lhes tempo disponível para uma atividade criadora especificamente cultural”.25

Portanto, na Rússia o período de transição para o socialismo – a ditadura do proletariado – seria breve demais para gerar uma cultura proletária e, no plano internacional, a luta para destruir a velha ordem não deixaria tempo para o operariado dedicar-se à criação de uma nova cultura.

No exílio, Leon Trótski manteve suas posições, defendendo a liberdade de expressão, o surrealismo e a psicanálise.26

6.

Após a revolução, Vladímir Lênin nomeou Anatóli Lunatchárski para o cargo de Narkompros (Comissário do Povo para a Educação), com a missão de encaminhar a política cultural do governo e a recomendação expressa de não conceder o monopólio a nenhum dos vários grupos rivais que disputavam a hegemonia no campo cultural.

“Um intelectual entre os bolcheviques, um bolchevique entre os intelectuais” – essa autodefinição retrata bem a figura de Anatóli Lunatchárski, intelectual refinado, grande orador e o mais culto entre os bolcheviques. Leon Trótski escreveu sobre a variedade de seu talento e a precocidade intelectual: “Era, aos vinte anos, capaz de fazer conferências sobre Nietzsche, discutir sobre o imperativo categórico, defender a teoria do valor de Marx, discutir os méritos comparados de Sófocles e de Shakespeare”.27

O talentoso intelectual revolucionário escreveu uma ampla obra sobre os mais diversos assuntos: teatro, literatura, pintura, escultura, cinema, música etc.28 Além disso, traduziu diversos livros e escreveu peças teatrais.

A produção cultural de Anatóli Lunatchárski conheceu fases distintas, como assinalaram Umberto Silva e Gabriele Mazzotta, organizadores da extensa antologia La rivoluzione proletária e la cultura borghese, que reproduz diversos ensaios e intervenções de Lunatchárski. O esquematismo sociológico, segundo eles, foi a marca dos textos iniciais, esquematismo só superado parcialmente quando Anatóli Lunatchárski tornou-se o Comissário do Povo para a Educação. O salto de qualidade de sua produção, a partir daí, é atribuído por aqueles autores à experiência adquirida na direção da política cultural, feita sob a influência direta de Lênin e, também, pelo contato pessoal diário com os artistas (Maiakóvski, Tatlin, Meyerhold, Malevic etc.).

O esquematismo presente nos textos de Anatóli Lunatchárski e de vários dirigentes bolcheviques explica-se pelas limitações então existentes no marxismo russo, que tinha em Plekhanov a principal referência. Em suas obras, A arte e a vida social Cartas sem endereço, Plekhánov havia se deparado com a espinhosa questão da determinação da base material sobre a superestrutura.

Para fugir do mecanicismo que tradicionalmente acompanhara a interpretação de Marx, ele introduziu como mediação um elemento estranho ao pensamento marxista: a ideia segundo a qual cada classe possui uma psicologia social específica atuando como mediação entre a base e a superestrutura. Nesse contexto, a literatura é entendida como sendo um produto ideológico que expressa a psicologia social de uma ou outra classe.

Anatóli Lunatchárski encampou totalmente essa imprecisa mediação: “Uma obra literária reflete sempre, consciente ou inconscientemente, a psicologia da classe que o autor representa”.29

As deficiências teóricas, entretanto, conviveram com a fina sensibilidade para a interpretação das obras literárias específicas, em que o talento do crítico vai além das deficiências teóricas.

Em 1929, ano em que foi afastado do cargo, Anatóli Lunatchárski produziu seus textos mais relevantes de crítica literária. Destacaria o ensaio “A “pluralidade de vozes” em Dostoiévski, em que analisa o livro recém-lançado de Bakhtin sobre o escritor, e compara a polifonia de Dostoiévski com o teatro de Shakespeare e com os romances de Balzac.30

Texto ousado para uma época de terror stalinista, pois dedicado a um autor perseguido pelo regime (encarcerado e depois desterrado), e sobre Dostoiévski, o grande escritor cujo conservadorismo e religiosidade tanto incomodavam a intelligentsia revolucionária (basta lembrar que Górki o considerava um “gênio cruel”, “maligno”, que exercia uma influência deletéria sobre os jovens escritores).

Surpreendente é o ensaio publicado postumamente sobre Marcel Proust, no fatídico ano de 1934, quando se realizou o Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos consagrando o realismo socialista como a estética oficial do regime. Ao contrário de quase todos os seus companheiros bolcheviques, Anatóli Lunatchárski não apontou Marcel Proust como representante da literatura decadente. Diante da desconcertante novidade da narrativa proustiana, ele perguntou perplexo e admirado: “trata-se por acaso de um novo gênero literário?”. “Obra colossal”, de um “grandioso artista”. A rememoração em Marcel Proust é interpretada como resultante de um “subjetivismo muito acentuado, realista, muito racionalista e sensual”. Para concluir: “ele é um realista”.31

7.

O intelectual entre os bolcheviques tornou-se, a partir de 1918, um bolchevique entre os intelectuais, quando se tornou Comissário.

A gestão de Anatóli Lunatchárski foi bastante tumultuada e encontrou resistência em todos os setores. Além dos adversários da revolução, que se dedicavam ao boicote, os partidários o atacavam implacavelmente. Os militantes do Proletkult se sentiam traídos, vendo um dos seus antigos ideólogos prestar tanta deferência à antiga cultura aristocrática e burguesa, procurando preservá-la dos ataques virulentos dos defensores da cultura operária.

Anatóli Lunatchárski chegou a renunciar ao cargo quando recebeu a informação de que os museus que preservavam a antiga cultura haviam sido vandalizados. Quando soube que a notícia era falsa, retornou ao cargo, mas permaneceu o tempo todo em alerta com as investidas iconoclastas contra a velha cultura que ele, homem culto e refinado, considerava patrimônio da humanidade a ser preservado.

Além do mais, percebia o desinteresse do público proletário, ávido por ter acesso à grande cultura do passado, e já enfastiado de uma arte restrita à denúncia, ao sobejamente conhecido, uma arte “maçante” que não ampliava os horizontes do público.

Objeto de tensão foi também o procedimento adotado em relação aos futuristas. Embora discordasse do movimento, ele reconhecia o fato dos futuristas terem sido os primeiros a apoiarem com entusiasmo a Revolução. Por isso, permitiu que organizassem a decoração das ruas e praças por ocasião das festas revolucionárias e projetassem monumentos cubo-futuristas, o que muitas vezes deixou Lenin irritado.

“O próprio Lunachárski considerava que a maior parte dos monumentos revolucionários eram um fracasso, mas não parece haver se indignado contra eles. Em 1924 recordava divertido que o escultor Merkurov havia previsto o desenho de uma estátua de “Karl Marx, de pé, sobre elefantes”; e que outro monumento, realmente construído em Moscou, representava Marx e Engels, juntos, “numa espécie de piscina”, sendo apelidado pelos moscovitas “Os banhistas barbudos”. Anatóli Lunatchárski entendia o futurismo como um rebento da decadência do capitalismo”.32

No interior do bolchevismo também havia forte reação aos rumos da política cultural. Bukhárin, diretor do Pravda, defendia o Proletkult e criticava Anatóli Lunatchárski por apoiar o teatro tradicional em detrimento das peças proletárias. As antigas peças de Lunatchárski, em que transparecia o seu apego ao misticismo, eram evocadas e utilizadas como pretexto para pedir o seu afastamento. Anatoli Lunatchárski passou a ser chamado, desdenhosamente, de Santo Anatólio…

Diante de tantos adversários, o Comissário se manteve no poder graças ao apoio de Lênin que, entretanto, não deixou de o criticar por complacência com o Proletkult e com o Futurismo. Anatóli Lunatchárski permaneceu no cargo até 1929, sendo finalmente designado embaixador na Espanha, cargo que não chegou a exercer, pois morreu em dezembro de 1933.

Em homenagem póstuma, Leon Trótski lembrou a razão de seu afastamento do centro do poder: “Anatóli Lunatchárski publicou, em 1923, um pequeno volume, Silhuetas, consagrado aos dirigentes mais expressivos da Revolução. O livro saiu na hora errada: basta dizer que o nome de Stalin nele não se encontra. No ano seguinte, retiraram Silhuetas de circulação, e Anatóli Lunatchárski caiu em desgraça”.33

Notas

  1. PALMIER, Jean Michel. Lénine. A arte e a revolução, VoI.1 (Lisboa: Moraes Editores, 1976), pp. 71-2. ↩︎
  2. GORKI, Máximo. Meus dias com Lênin (São Paulo: Lavrapalavra Editorial,2021), p. 86. ↩︎
  3. As referências encontram-se em LÊNIN, V. I. Cultura e revolução cultural, (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968), p. 172 e pp. 176-7. ↩︎
  4. SCHERRER, Jutta. “Bogdánov e Lênin: o bolchevismo na encruzilhada”, in HOBSBAWN, Eric. (org.), História do marxismo, Vol. 3 (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986), p. 192. Além da política, o prestígio estendia-se ao campo teórico: “Ao lado de G. V. Plekhánov, Bogdánov foi de longe o escritor mais produtivo e mais popular da social-democracia, como demonstram as altas tiragens e as diversas edições de suas obras”, pp. 189-190. ↩︎
  5. LÊNIN, V. I. La literatura y el arte (Moscou: Editorial Progresso, 1979), p. 145. Para um acompanhamento bem informado da conturbada relação entre Lênin e Gorki ver PALMIER, Jean Michel. Lénine. A arte e a revolução. Ensaios sobre a estética marxista, primeiro volume (Lisboa: Moraes, 1976), pp. 161-210 e KRUSPSKAYA, Nadejda. Memórias de Lenin(Recife: Ruptura, 2021). ↩︎
  6. LÊNIN, V. I. Materialismo e empiriocriticismo (Lisboa: Editorial Estampa, 1975). ↩︎
  7. LÊNIN, V. I., Cadernos sobre a dialética de Hegel (Rio de Janeiro: UFRJ, 2011), p. 160. ↩︎
  8. Idem, pp. 166-7. ↩︎
  9. Idem, p. 157. ↩︎
  10. LÊNIN, “Teses sobre la cultura proletária”, in VÁSQUEZ, A. S., Estética y marxismo Vol. II (México: Ediciones Era, 1978), p.222. ↩︎
  11. Idem p. 221. ↩︎
  12. Idem, p. 224. ↩︎
  13. LÊNIN, Cultura e revolução cultural, cit., p. 58. ↩︎
  14. LÊNIN, La literatura y el arte, cit., p. 105. ↩︎
  15. Idem, p. 103. ↩︎
  16. MACHEREY, Pierre. Para uma teoria da produção literária (Lisboa: Estampa, 1971), p. 118. O autor acrescenta: “não se trata, portanto, de uma superfície refletora qualquer, onde qualquer coisa viria reproduzir-se diretamente no gesto de um reflexo (…) a relação entre o espelho e o objeto que reflete (a realidade histórica) é parcial: o espelho faz uma seleção, escolhe, não reflete a totalidade da realidade que lhe é oferecida”. ↩︎
  17. Os textos de Marx e Engels sobre arte foram reunidos por NETTO, José Paulo e YOSHIDA, Miguel na antologia Cultura, arte e literatura (São Paulo: Expressão Popular, 2010). ↩︎
  18. Ver as antologias La literatura y el arte (Moscou: Progresso, 1979 e Cultura e revolução cultural (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968). Um amplo estudo encontra-se na trilogia de PALMIER, Jean Michel, Lênin. A arte e a revoluçãocit.. ↩︎
  19. TRÓTSKI, L. Literatura e revolução (Rio de Janeiro: Zahar, 1969), p. 149. ↩︎
  20. Idem, p. 125. ↩︎
  21. Idem, p 160. ↩︎
  22. Idem, 124. ↩︎
  23. Idem, p. 116. ↩︎
  24. Idem, p. 162. ↩︎
  25. STRADA, Vitornio. “Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”, in HOBSBAWN, Eric. História do marxismo, Vol. 9 (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987), p. 143. ↩︎
  26. Cf. FACIOLI, Valentin, Breton/Trótski. Por uma arte revolucionária independente (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985). ↩︎
  27. TRÓTSKI, L. Literatura e revolução, cit., pp. 226-7. ↩︎
  28. Parte dessa enorme produção encontra-se na antologia La rivoluzione proletária e la cultura borghese (Milano: Gabriele Mazzota Editore, 1972). Em português, consulte-se a antologia organizada por Douglas Estevam e Iná Camargo Costa, Revolução, arte e cultura (São Paulo: Expressão Popular, 2018), enriquecida com uma competente apresentação de Douglas Estevam. ↩︎
  29. LUNATCHÁRSKI, A. “Teses sobre as tarefas da crítica marxista”, in Revolução, arte e cultura, cit., p. 143. ↩︎
  30. LUNATCHÁRSKI, A. “A “pluralidade de vozes” em Dostoiévski”, in Revolução, arte e cultura, cit. ↩︎
  31. LUNATCHÁRSKI, A. “Marcel Proust”, in La rivoluzione proletária e la cultura Borghese, cit., p. 262. ↩︎
  32. Cf. FITZPATRICK, Sheila. Lunacharski y la organización soviética de la educacion y de las artes “1917-1921). (Espanha: Siglo XXI, 1977), p. 154. ↩︎
  33. TRÓTSKI, L. Literatura e revolução, cit., p. 230. ↩︎

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Camila Souza