A terceira morte de Primo Levi
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A terceira morte de Primo Levi

O colapso moral diante do genocídio em Gaza revela os limites da humanidade – e mata, mais uma vez, a memória do Holocausto, seus sobreviventes e os valores que deveriam nos guiar desde Auschwitz

Israel Dutra 8 ago 2025, 10:47

Foto: Reprodução

I. O historiador Ilan Pappe teve uma conturbada e exitosa passagem pelo Brasil, nos últimos dias. Sua fala libertadora levantou plateias na USP, na Flip, em Paraty e na Flipei, em São Paulo. Demonstrou a resiliência dos que lutam, a consciência dos que falam para além do que se vê e incomodou muito o lobby sionista. Tentaram coibir suas falas em Paraty. Nunes, o prefeito bolsonarista de São Paulo, articulou o desmonte da Flipei – sem sucesso – como represália à presença de Pappe. Sua participação foi exitosa, ao lado de figuras como Thiago Avila, que encabeçou a Flotilha da Liberdade. Um dia depois da sua presença em SP, Netanyahu reafirmou o plano de tomar totalmente o controle de Gaza. 

II. [Li “Isso é um homem” no segundo ano da faculdade. Durante os 50 minutos que separavam o trajeto do centro da cidade ao campus do Bairro Agronomia, onde ficavam quase todas as ciências humanas da Federal do Rio Grande do Sul, eu descobri esse livro. Duríssimo, realista, marcante. Seus efeitos sobre minha forma de ver e pensar o mundo foram imediatos e duradouros. Não fui o mesmo desde então] 

III. A força das ideias de Pappe representa, de forma dramática, desesperada, uma mudança importante na mentalidade de milhões. Milhões que acompanham a diáspora judaica. Essa mudança tem duas camadas: um setor crescente de judeus se organiza para repudiar o projeto completo do sionismo. O Congresso recente de Viena foi a máxima expressão disso, um movimento que cresce no mundo, com coletivos e agrupamentos espalhados por diversos países, com epicentro nos Estados Unidos, entre eleitores que conduziram Mandami à vitória eleitoral nas prévias democratas, nos bairros de Buenos Aires, no Coletivo Vozes Judaicas, a bela novidade da esquerda brasileira. A segunda camada é a percepção, mesmo entre os núcleos sionistas mais críticos, de que estamos diante de um genocídio. “É isso um genocídio”. 

IV.  [Eu tinha quatro anos quando Primo Levi morreu, às vésperas de completar 68 anos. Nada sabia dele, estava aprendendo a andar de bicicleta com rodinhas, entendendo melhor a diferença entre desenhos e letras e me preparando para entrar na pré-escola. Primo Levi tinha menos de quatro anos quando Mussolini marchou sobre Roma. Quando entrou no seu liceu, Primo teve contato com muitos intelectuais antifascistas como Bobbio e Cesar Pavese, em 1934, um ano depois de Hitler ascender ao poder. Soube quem é Primo Levi em 2002, nos embalos do ônibus que me levava às aulas noturnas. O conheci pelo livro que escreveu exatos 40 anos antes de morrer. O escritor Elie Wiesel, que recebeu um Nobel, discorda. Primo Levi morreu antes disso. Foi em Auschwitz] 

V. Não saberia aferir qual a cena mais chocante. As provocações dos neofascistas que estão no governo Netanyahu, a transmissão ao vivo e nas redes sociais, em tempo real, da destruição da vida e de Gaza. Ou as crianças raquíticas e famintas expostas ou o bloqueio por parte do governo e de colonos israelenses para que os caminhões não levem comida para Gaza e Cisjordânia. O plano de Netanyahu não esconde sua crueldade. Materializa o ideário já presente em Menachem Begin, que Michael Lowy em recente artigo recorda que foi duramente criticado por Einstein e Hannah Arendt. O Herut, depois Likud, seria herdeiro de parte das ideias do grupo paramilitar Irgun Zvai Leumi.  Netanyahu já assassinou quase um décimo da população de Gaza. Ele não esconde que quer levar adiante, agora e já, a “solução final”. 

VI. [Primo Levi já não estava mais aqui quando, em 1995, aquele que tinha sido antecessor de Menachem Begin, Yitzhak Rabin, foi assassinado. Um dos grandes amigos do assassino, Yigal Amir, hoje é o ministro de Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben Gvir] 

VII. O que está em questão já não é a posição apenas geopolítica, política ou humanitária. É a testagem dos limites éticos e morais da humanidade.  Dos seus seres conscientes, que pensam, discutem, jantam com suas famílias, vivem com seus amigos, dormem e acordam. Escreveu Paulo Sérgio Pinheiro, com sua autoridade e força moral: “Hoje, 87,7% da Faixa de Gaza está sob controle das Forças de Defesa de Israel (IDF). Cerca de 2,1 milhões de pessoas estão encurraladas em áreas devastadas, sem acesso a alimento, água, medicamentos ou qualquer perspectiva de vida. Esse isolamento não é efeito colateral – é um plano estratégico deliberado de aniquilação de um povo.”

VIII. [Sempre me deparei com uma peculiaridade, devido a ser chamado Israel. Minha família assim batizou, a mim e as minhas irmãs, com nomes bíblicos de origem judaica, mesmo que nem meu pai nem minha mãe fossem judeus. Conheci umas 30 pessoas com meu nome, sendo que fui mais próximo a dois camaradas também chamados Israel, na militância política de juventude. De um deles, já falecido, guardo belas memórias e lembranças. Sempre foi algo curioso, desde elementos anedóticos, como quando me apresentava pelo sobrenome nas manifestações organizadas por palestinos e ainda não era conhecido, até elementos mais existenciais, por óbvio. Nunca soube bem como Primo Levi morreu] 

IX. Adorno escreveu em “Critica cultural e sociedade” (1949, editada no Brasil pela Atica, com título de “Prismas”) algo como “não haverá poesia depois de Auschwitz”. Estamos diante de algo dessas proporções. Um limite ético que nos toca a todos e a cada um de nós. Não haverá mais poesia e Primo Levi estará novamente morto depois de Gaza. 


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