A cova aberta do Brasil: a pilhagem dos minerais estratégicos no PL 2780/2024
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A cova aberta do Brasil: a pilhagem dos minerais estratégicos no PL 2780/2024

O Brasil pode transformar a posição de detentor de grandes reservas minerais em trincheira contra a chantagem colonial

David Deccache 10 set 2025, 17:52

A disputa internacional pelos minerais críticos e estratégicos — que englobam recursos essenciais à transição energética (como lítio, níquel e cobalto), às tecnologias avançadas (como terras raras, gálio e germânio) e às ligas de alta resistência (como nióbio e titânio) — tornou-se um dos eixos centrais do imperialismo contemporâneo.

Esses minerais estruturam cadeias globais de altíssimo valor agregado, que vão desde baterias e semicondutores até turbinas e superligas metálicas, passando pela indústria militar e aeroespacial. Em cada elo dessas cadeias, a diferença entre fornecer a matéria-prima e dominar a tecnologia de transformação representa saltos de dezenas ou centenas de vezes no valor final. Quem detém o controle da extração, do refino e da aplicação desses insumos define não apenas fluxos de riqueza, mas também padrões tecnológicos, regimes de propriedade intelectual e, em última instância, hierarquias de poder na economia mundial. É assim que a geologia se transforma em geopolítica: o domínio sobre esses minerais garante capacidade de chantagem econômica e imposição política sobre as nações empurradas à condição de dependência.

O Brasil, detentor de grandes reservas desses minerais, poderia transformar essa posição em trincheira contra a chantagem colonial. Mas, historicamente, foi empurrado para a condição de fornecedor de matérias-primas baratas, exportando concentrados minerais a preço vil e importando, a preços múltiplos, os produtos industriais e tecnológicos que deles derivam. O resultado é a clássica inserção subordinada nas cadeias globais: ficamos com a extração predatória, os passivos socioambientais e a renda mineral drenada, enquanto os centros que dominam o refino e a inovação tecnológica se apropriam do valor agregado. A pressão internacional é para que continuemos nesse papel, agora legitimado pelo discurso da “competitividade” e da “transição verde”, em que o Brasil seria reduzido a corredor primário-exportador de insumos para turbinas e baterias fabricadas no exterior.

É nesse contexto que a soberania nacional se torna incontornável. Não se confunde com trocar multinacionais por estatais mantendo a mesma lógica de saque. Soberania real é ter o poder de decidir se explorar, quanto e como explorar, levando em conta os impactos sociais e ambientais. Mas nem isso conseguimos discutir: ainda estamos na etapa elementar de impedir que corporações estrangeiras extraiam nossas riquezas com privilégios fiscais e aval do Estado. Sem soberania, a decisão não é nossa — são as potências centrais que ditam o ritmo, o volume e a forma da exploração, transformando territórios em crateras e comunidades em zonas de sacrifício.

O PL 2780/2024, que entrou na pauta desta semana na Câmara dos Deputados, aprofunda esse movimento. Em vez de usar nossas reservas estratégicas como instrumento de soberania, o projeto institucionaliza a lógica colonial. Não se limita a abrir espaço para a exploração por capitais estrangeiros: vai além e cria um regime fiscal e jurídico que premia a pilhagem. Onde se esperaria tributação robusta, estabelece isenção; onde caberia exigir contrapartidas sociais, ambientais e tecnológicas, oferece subsídios; onde deveria afirmar controle nacional, desmonta as bases da soberania. É a forma mais acabada de um Estado que atua não como guardião do interesse público, mas como gestor da dependência e financiador da espoliação.

Isso se revela de forma cristalina em seus quatro artigos centrais, que constituem a base jurídica da pilhagem. Do 16 ao 19, o projeto monta uma engrenagem fiscal e aduaneira desenhada para garantir a transferência de valor ao exterior, corroer a arrecadação interna e perpetuar a dependência tecnológica. Não são dispositivos marginais: são o núcleo da lei, o ponto em que a retórica de “estratégia nacional” cai por terra e emerge, em linguagem tributária e regulatória, o verdadeiro objetivo — transformar o Brasil em mero provedor de insumos estratégicos de baixo custo e o Estado em financiador oficial do saque imperialista.

Artigo 16 – Isenção sobre royalties e a premiação da drenagem tecnológica

O artigo 16 estabelece que não incidirá imposto de renda na fonte sobre os pagamentos de royalties, patentes, marcas e licenças de tecnologia enviados ao exterior relacionados à transformação de minerais críticos. Do ponto de vista tributário, significa uma renúncia direta sobre uma das formas mais conhecidas de transferência de lucros: contratos de propriedade intelectual e de know-how. Em setores com alta assimetria tecnológica, como o mineral, tais contratos são instrumentos clássicos de planejamento fiscal agressivo, usados por multinacionais para deslocar excedentes de suas subsidiárias na periferia para as matrizes nos países centrais.

Ao isentar essas remessas, o Estado brasileiro abre mão de arrecadação e estimula a drenagem. A base fiscal, que já é fragilizada por regimes especiais, perde a chance de reter ao menos parte do valor que sai em forma de royalties. Em termos práticos, significa que o país paga caro para acessar tecnologia estrangeira e ainda desiste da compensação mínima que poderia financiar a construção de uma base científica nacional.

Esse mecanismo aprofunda a dependência tecnológica. O Brasil não domina as tecnologias de ponta necessárias para o refino de terras raras ou a produção de compostos de alto valor agregado. Já estamos de joelhos, obrigados a comprar pacotes prontos de fora. O artigo 16 nos coloca mais abaixo: além de pagar pelo conhecimento controlado no exterior, aceitamos que esses pagamentos sejam imunes à tributação. É a consagração da posição subordinada na cadeia global de valor.

O resultado é devastador. A arrecadação se esvai, a ciência nacional continua subfinanciada e o Estado abre um flanco fiscal para multinacionais ampliarem suas margens às custas do patrimônio mineral do país. É como se a lei dissesse: “explorem, cobrem caro por suas patentes e ainda levem tudo limpo, sem imposto”. Trata-se da institucionalização da pilhagem por via legal.

Artigo 17 – Lei do Bem transformada em subsídio à dependência mineral

O artigo 17 estende os benefícios da Lei do Bem (Lei nº 11.196/2005) às mineradoras de minerais críticos. Essa lei concede deduções fiscais no IRPJ e na CSLL para empresas que investem em pesquisa, desenvolvimento e inovação. No discurso, seria uma forma de estimular a inovação privada no país. Na prática, porém, a Lei do Bem já demonstrou ser uma máquina de renúncia fiscal sem resultados estruturais: quase duas décadas depois de sua criação, a dependência tecnológica permanece intacta e a inovação autônoma brasileira é frágil.

Ao incluir as mineradoras nesse regime, o PL converte o que já era um instrumento questionável em um subsídio ainda mais nocivo. Mineradoras que lucram bilhões com a exportação de matérias-primas passam a receber incentivos fiscais para financiar projetos de P&D que, em sua maioria, não significam produção de conhecimento novo, mas simples adaptação local de tecnologias importadas. É o Estado brasileiro bancando a submissão: pagamos duas vezes, primeiro com a renúncia fiscal, depois com a drenagem via royalties para fora.

O problema central é que não há qualquer exigência de transferência tecnológica, de abertura de patentes, de formação de capacidades nacionais ou de obrigatoriedade de destinar recursos a universidades públicas. A chamada inovação acontece dentro das fronteiras das próprias empresas e reforça a concentração de conhecimento sob controle privado e estrangeiro. Em vez de construir soberania científica, o país subsidia a dependência.

Artigo 18 – Reidi a serviço da mineração: isenção para a espoliação

O artigo 18 inclui a mineração de minerais críticos no Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (Reidi), que suspende a cobrança de PIS e Cofins em investimentos. Esse regime, criado originalmente para estimular obras de infraestrutura essenciais — como energia, saneamento e transporte —, já era controverso. Mas ao ser estendido para o setor mineral, a distorção se torna gritante.

A mineração, diferentemente de saneamento ou transporte, não é um serviço público universal, mas um setor bilionário, altamente lucrativo e com enormes impactos socioambientais. Em vez de ser tributada com severidade para financiar reparação ambiental e políticas públicas, passa a receber benefícios fiscais. A lógica se inverte: os setores que mais concentram renda e geram passivos recebem incentivos, enquanto a população arca com os custos da destruição.

A consequência fiscal é clara: o Estado abre mão de bilhões em arrecadação de PIS e Cofins. Mas a consequência social é ainda mais grave: ao não atrelar os benefícios a contrapartidas, o artigo não exige geração de empregos qualificados, nem agregação de valor local, nem planos de recuperação de áreas degradadas. O subsídio é puro, sem condicionamento. É dinheiro público convertendo-se em prêmio para a destruição..

Artigo 19 – Regime aduaneiro especial e a consolidação da reprimarização

O artigo 19 cria um regime aduaneiro especial para importação de bens ligados à mineração de minerais críticos e para exportação dos produtos resultantes. Isso significa facilitar a entrada de maquinário estrangeiro e simplificar a saída de minerais brutos, reduzindo a carga tributária dessas operações.

Na prática, o dispositivo aprofunda a condição dependente do Brasil. Ao baratear a importação de equipamentos, o PL desestimula qualquer esforço de desenvolver uma indústria nacional de máquinas e insumos para mineração. A dependência externa em tecnologia de ponta é consolidada por lei, transformando o país em consumidor cativo das cadeias industriais estrangeiras.

Do lado da exportação, o efeito é ainda mais perverso: facilita-se a saída de minérios em estado bruto, sem agregação de valor. O Brasil é legalmente enquadrado no papel de corredor primário-exportador, reforçando a reprimarização da economia. Em vez de induzir investimentos na cadeia industrial — produção de ligas, ímãs, semicondutores —, o regime cria atalhos para que os minerais saiam quase in natura.

O resultado é a perpetuação da lógica colonial: importar caro o que poderíamos produzir aqui e exportar barato o que temos de mais estratégico. O Estado abdica do uso de instrumentos aduaneiros e tributários que poderiam induzir industrialização, preferindo abrir mão dessa possibilidade em nome de reduzir custos para o capital estrangeiro.

A escolha diante de nós

O que está em jogo no PL 2780/2024 não é apenas mais uma renúncia fiscal imoral. É a transformação deliberada do Estado em indutor e financiador da pilhagem. Cada isenção, cada subsídio, cada privilégio reforça a transferência estrutural de valor: riqueza natural convertida em superlucros no exterior, devastação ambiental transformada em negócio, soberania reduzida a uma ficção conveniente.

Se por um lado a verdadeira soberania não se mede pelo volume de minério retirado sob a bandeira nacional, mas pela capacidade de decidir se explorar, quanto explorar e em que condições, por outro nem esse debate conseguimos travar. Seguimos presos à etapa elementar: resistir à sanha das multinacionais que saqueiam nossas riquezas com o aval da lei. Enquanto não conquistarmos sequer esse mínimo de proteção, soberania continuará sendo apenas palavra vazia.

Estamos, portanto, diante de um projeto que não apenas entrega, mas aprofunda a dependência. O PL 2780/2024 não só legaliza a pilhagem: a financia, a incentiva e a institucionaliza. É um crime de lesa-pátria, de lesa-natureza e de lesa-humanidade, um marco legal da barbárie que ameaça enterrar, junto com nossas riquezas, a própria possibilidade de um futuro soberano e vivível.


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