Raízes do neofascismo: uma breve reflexão da história do racismo como política de Estado no Brasil
Se na Palestina observamos o laboratório global da gestão colonial, no Brasil encontramos seu laboratório histórico com a naturalização do sacrifício e a administração policial dos territórios racializados
Em ensaio anterior, procurei demonstrar como a Palestina se tornou o epicentro de uma racionalidade neofascista que combina ocupação, vigilância e gestão dos indesejáveis. Ali, o capitalismo securitário opera sem disfarces: testa tecnologias de guerra, produz populações excedentes e administra a vida sob regimes permanentes de exceção. A ocupação não aparece como desvio, mas como modelo. Nos últimos meses, porém, a barbárie no Rio de Janeiro me obrigou a voltar o olhar para dentro. O massacre, a celebração do extermínio como método e o silêncio cúmplice diante da morte negra revelam que a lógica da eliminação não depende apenas da importação de tecnologias globais: ela possui raízes profundas, sedimentadas desde o pós-abolição. Foi essa inquietação — perceber que aquilo que o Ocidente testa na Palestina ecoa com tanta nitidez em nosso território — que instigou este novo texto.
Se na Palestina observamos o laboratório global da gestão colonial, no Brasil encontramos seu laboratório histórico. A naturalização do sacrifício e a administração policial dos territórios racializados não são produtos recentes. A Primeira República, amparada pelo racismo científico, redefiniu o negro liberto não como cidadão, mas como problema biológico e urbano. A ideologia da democracia racial, no pós-guerra, apenas tornou esse enquadramento mais eficiente ao silenciar conflitos. O neoliberalismo, por sua vez, trouxe a gramática da guerra às drogas: substituiu o eugenismo explícito pela figura do inimigo interno e tratou as favelas como zonas de exceção. O ciclo contemporâneo do neofascismo apenas radicalizou essa tendência, incorporando tecnologias de vigilância e políticas de eliminação que encontram na Palestina seus modelos mais avançados.
Ao historicizar esses movimentos, pretendo mostrar que a política de morte no Rio não é ruptura, mas continuidade. O Brasil não precisou importar o neofascismo para administrar seus indesejáveis; apenas atualizou, com novos instrumentos, uma lógica já conhecida. Entender o neofascismo brasileiro exige reconhecer como ele se ancora nessa longa história de administração desigual da humanidade. A barbárie do Rio não é apenas sintoma do presente: é recordação incômoda do caminho que nunca deixamos de percorrer. Ao reconstruir esse percurso, busco evidenciar que a luta contra o neofascismo passa, necessariamente, pelo enfrentamento das estruturas do pós-abolição que ainda organizam nossa vida social.
Segregação e racismo científico no Brasil do início do século XX
Em 1911, Londres recebeu um dos eventos mais emblemáticos das hierarquias que estruturavam o mundo moderno: o I Congresso Universal das Raças. Ali, no coração do império britânico, reuniram-se cientistas, diplomatas e eugenistas para discutir, sob a autoridade da “ciência”, o destino das populações humanas. O encontro não era mero debate acadêmico: funcionava como palco para validar políticas raciais globais e afirmar a supremacia europeia como princípio natural da história. O que estava em jogo era a tentativa de desenhar uma cartografia mundial que definisse quem era pleno, quem era tutelável e quem estava condenado ao desaparecimento.
É nesse cenário profundamente hierárquico que o Brasil se apresenta com entusiasmo. A delegação brasileira não foi a Londres contestar o racismo científico, mas provar que sabia aplicá-lo. Coube a João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional, expor uma tese que impressionou a audiência: segundo suas projeções, baseadas em medições antropométricas, o Brasil se tornaria um país branco em cem anos. A miscigenação, afirmou ele, era um mecanismo eficaz de purificação racial; a imigração europeia, um acelerador necessário; e a população negra — tratada como entrave ao progresso — praticamente desapareceria até 2012. Era o branqueamento apresentado como política demográfica e racionalidade administrativa.
O discurso de Lacerda não foi uma excentricidade, mas o reflexo de como as elites da Primeira República estavam imbricadas nas teorias raciais globais. A abolição, ao invés de abrir espaço para reparação, coincidiu com uma modernização conservadora que buscava legitimar-se num liberalismo seletivo. Intelectuais como Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Oliveira Vianna desempenharam papel decisivo nessa operação ideológica. Romero via o mestiço como tipo degenerado; Nina Rodrigues defendia graus diferenciados de cidadania para negros; Vianna insistia que somente a imigração europeia salvaria o país da “inferioridade étnica”. Esses discursos circulavam nas faculdades de Direito, na imprensa e na literatura, consolidando o imaginário de que o imigrante era vetor de civilização e o negro, símbolo de atraso.
Essa adesão teórica traduziu-se em práticas concretas. No mercado de trabalho, a preferência pela mão de obra europeia tornou-se regra não escrita, organizando um regime de desigualdade mascarado como escolha econômica. Mas a política de branqueamento operou também pelo controle cultural. O Estado republicano via com hostilidade as manifestações negras: o samba era perseguido como vadiagem; a capoeira foi criminalizada pelo Código Penal de 1890, tratada como desordem pública; e as religiões de matriz africana sofriam invasões policiais constantes, com a queima de objetos sagrados e prisão de lideranças. Era necessário silenciar e desmontar tudo que remetesse à presença negra como forma de existência política.
Esse aparato repressivo articulava-se à Lei da Vadiagem, que transformou a liberdade recém-conquistada em motivo de criminalização. O antigo código escravista foi substituído por um código penal racializado, punindo quem não estivesse no mercado formal — justamente o espaço do qual os negros eram excluídos. Ser negro e estar na rua tornou-se suspeito. A polícia republicana reprimia pequenos ajuntamentos e festas de bairro com o mesmo zelo com que perseguia “vadios”. A prisão cresceu como resposta estatal à autonomia dos libertos, tornando-se o espaço para gerir essa população que, aos olhos do Estado, precisava ser invisibilizada.
A ação estatal completou o quadro com o apagamento da memória. O decreto de Rui Barbosa, em 1890, que mandou destruir a documentação da escravidão, não foi gesto humanista, mas parte do projeto de sustentar a narrativa de uma nação harmoniosa. A ausência de políticas públicas, a urbanização excludente e a medicalização da pobreza compunham um conjunto de práticas que, embora não declaradas como raciais, reproduziam a lógica global de administração dos indesejáveis. Assim, a Primeira República consolidou a transição da escravidão para o encarceramento, substituindo o tronco pela cela e o capitão-do-mato pelo delegado, garantindo que a ordem racial permanecesse intacta sob novas roupagens.
O mito da democracia racial como tecnologia de invisibilização
A partir de 1945, o mundo entrou em uma nova ordem discursiva. O horror dos campos nazistas, os julgamentos de Nuremberg e a ascensão do debate internacional dos direitos humanos tornaram o racismo biológico moralmente insustentável. A eugenia, antes celebrada como ciência, passou a ser identificada ao nazismo. Nesse novo contexto, as grandes potências precisavam lidar com a questão racial sem recorrer à linguagem brutal que as sustentara por décadas. É justamente nesse momento que o Brasil se torna uma peça útil na cena internacional. Se na virada do século XIX para o XX o país fora apresentado como laboratório de branqueamento, agora surgia como vitrine de uma suposta convivência harmoniosa entre brancos, negros e mestiços, uma alternativa “civilizada” aos modelos segregacionistas dos Estados Unidos e da África do Sul.
O pós-guerra transformou a mestiçagem brasileira em argumento político global. Para uma ONU recém-criada e ansiosa em promover exemplos que demonstrassem a possibilidade de convivência multirracial, o Brasil parecia ser o caso ideal. Não havia leis de segregação formal; não havia placas dizendo “white” e “colored”; não havia apartheid institucionalizado. Ao contrário: havia um discurso insistente de que o país nascera miscigenado, que a escravidão fora mais “suave” e que a herança portuguesa teria produzido relações raciais mais flexíveis que o rígido modelo anglo-saxão. Esse repertório cultural encontrou no pensamento de Gilberto Freyre seu grande organizador. Ao afirmar que a formação do Brasil se dera sob intensa mistura biológica e cultural entre europeus, indígenas e africanos, Freyre ofereceu ao mundo uma narrativa que, lida superficialmente, soava como elogio da diversidade. Bastou pouco para que se convertesse, internacionalmente, em símbolo de uma “democracia racial”.
É importante frisar: Freyre não inventou o mito, mas ele o consolidou e o deu forma literária, sociológica e afetiva. Seus livros circulavam amplamente no exterior justamente quando o mundo buscava exemplos de integração racial que não evocassem o passado genocida da Europa. De repente, o Brasil passou a ser descrito como uma espécie de antípoda moral do nazismo: um país sem ódios raciais, sem segregação formal, sem guerras civis, sem movimentos separatistas, sem “dois povos”. Essa imagem agradava tanto às elites brasileiras, interessadas em ocultar as profundas desigualdades raciais do país, quanto aos organismos internacionais, que encontravam ali um argumento de que a miscigenação poderia funcionar como antídoto para conflitos raciais em escala planetária.
No entanto, justamente enquanto o país passava a ser celebrado como exemplo mundial, o fosso racial no Brasil não parava de crescer. Sem legislação segregacionista visível, toda a violência estrutural que organizava o cotidiano da população negra tornou-se ainda mais difícil de denunciar. A ausência de um apartheid formal serviu como cortina de fumaça para a existência de um apartheid real, cotidiano, urbano, econômico, policial. O mito da democracia racial transformou-se, assim, na mais eficaz das tecnologias ideológicas: enquanto afirmava a igualdade, produzia e naturalizava a desigualdade.
A construção desse mito é inseparável das disputas da Guerra Fria. Os Estados Unidos, fragilizados internacionalmente pelas imagens de linchamentos, escolas segregadas e supremacia branca legalizada , precisavam demonstrar que o Ocidente era capaz de conviver com a diversidade racial sem romper com a democracia liberal. O Brasil, que não possuía legislação segregadora, foi rapidamente apresentado como troféu: um país miscigenado, católico, “sem conflitos raciais”, em que negros e brancos supostamente viviam lado a lado em relativa harmonia. As elites brasileiras, por sua vez, abraçaram esse protagonismo internacional. A partir dos anos 1950, o Estado passou a promover explicitamente a imagem de uma nação sem racismo, incorporando o mito como parte de seu aparato diplomático e cultural.
Internamente, essa narrativa teve efeitos profundos. Ela se tornou doutrina oficial, especialmente durante a ditadura militar, quando o regime passou a utilizar amplamente a imagem de um país mestiço e “racialmente democrático” para se distinguir da violência aberta das ditaduras do Cone Sul e da segregação norte-americana. Qualquer denúncia de racismo era vista como tentativa de “importar problemas estrangeiros” ou de “dividir a nação”. Ao mesmo tempo, a repressão policial aos bairros negros, o encarceramento em massa, a desigualdade salarial e a exclusão sistemática da população negra do ensino superior se aprofundavam. Quanto mais forte o mito, mais invisível se tornava a realidade.
E invisível não apenas no sentido simbólico: o mito produzia efeitos materiais. Um país que se convencera de que não era racista não precisava – e, portanto, não produzia – políticas de enfrentamento às desigualdades raciais. Universidades não reconheciam a racialização da exclusão; o Estado não coletava dados raciais de forma sistemática; a violência policial era tratada como mero problema de segurança; a pobreza negra era compreendida como questão de “desorganização social”. A crença na harmonia racial funcionava como blindagem retórica, impedindo que desigualdades profundas fossem percebidas como produto de um sistema racial de longa duração. Assim, enquanto o mundo celebrava o Brasil como laboratório de convivência pacífica, o país se tornava, na prática, um dos mais desiguais do planeta.
Essa contradição foi sistematicamente denunciada pelo Movimento Negro, especialmente a partir das décadas de 1960 e 1970. Grupos culturais, terreiros, associações de bairro, intelectuais, estudantes e organizações políticas protagonizaram uma luta árdua contra a camisa de força ideológica do mito. A criação do Movimento Negro Unificado, em 1978, marca esse momento em que a população negra passa a confrontar diretamente a ficção nacional. O MNU escancara o que o mito tentava esconder: a violência policial que exterminava jovens negros, o racismo no mercado de trabalho, a discriminação cotidiana, a presença esmagadora de brancos nos espaços de prestígio e a profunda ausência de negros no Estado, na mídia e na universidade.
A ditadura reagiu a essas denúncias com vigilância e repressão. Para o regime, questionar a democracia racial era atacar uma das bases simbólicas da unidade nacional. Se o Brasil era um país sem ódio racial, então todo movimento que falava em racismo era, por definição, subversivo. A ideologia oficial insistia: se “somos todos miscigenados”, então não existem negros nem brancos como grupos políticos, apenas brasileiros. E se não existem grupos raciais, não pode existir racismo. Essa operação lógica permitiu ao Estado esconder, atrás de uma retórica de harmonia, práticas sistemáticas de desigualdade, repressão e segregação territorial.
O resultado foi a consolidação de um paradoxo cruel: quanto mais o Brasil era aplaudido internacionalmente como exemplo antirracista, mais se aprofundava internamente a divisão racial. A distância entre brancos e negros aumentou em renda, educação, moradia, expectativa de vida, mortalidade policial, encarceramento e acesso aos espaços de poder. Enquanto o mito crescia, o abismo se expandia. Num país que declarava não ter racismo, a desigualdade racial tornou-se parte naturalizada da paisagem social.
Esse mito perdurou até o início dos anos 2000. Foi apenas quando a crítica negra ganhou corpo, quando a produção intelectual afro-brasileira começou a romper as barreiras da universidade, quando a Conferência de Durban recolocou o racismo estrutural no centro da agenda global e quando as políticas de ação afirmativa passaram a disputar o imaginário nacional que a aura internacional da democracia racial começou a ruir. Mas ela não caiu sozinha. Caiu porque, por décadas, o Movimento Negro insistiu em denunciar aquilo que o país tentava esconder: o fosso entre negros e brancos nunca foi resolvido pela mestiçagem – ao contrário, foi mascarado por ela.
Assim, o que o mundo chamou de “democracia racial” foi, na verdade, a mais sofisticada das formas de invisibilizar a desigualdade. Um mito funcional tanto para o Estado brasileiro quanto para as potências internacionais. E um mito que, ao negar o racismo, produziu as condições para que ele se aprofundasse silenciosamente, preparando o terreno para as formas de violência e controle que emergiriam com toda força nos anos posteriores.
Guerra às drogas e o controle em processo de urbanização
Quando o mundo entrou na década de 1970, a promessa dos direitos humanos que havia marcado o pós-guerra já dava sinais de exaustão. A utopia do “nunca mais” começou a ser substituída por uma nova gramática global que reinterpretava conflitos sociais como problemas de segurança. Onde antes se falava em inclusão, passou-se a falar em risco; onde se falava em direitos, surgiu a categoria que marcaria a virada do período: o inimigo. É nessa fresta histórica que se opera a grande mutação: a guerra contra a pobreza é convertida em guerra às drogas. O que deveria ser enfrentado como questão social passa a ser redesenhado como questão militar.
A criminologia crítica nos mostra que essa mudança é global. Os Estados Unidos, diante da crise do Estado de bem-estar, inauguraram o encarceramento em massa para administrar sua “subclasse” racializada. A Europa recorreu ao policiamento ostensivo e leis de exceção. O neoliberalismo nasceu cercado por muros: seu projeto econômico exigia desmontar direitos e cortar políticas sociais, o que demandava, em contrapartida, uma máquina penal capaz de controlar os corpos tornados excedentes. Não é acaso que a prisão tenha crescido justamente quando o social encolheu.
O Brasil entra nesse cenário com uma particularidade brutal: aqui, o excedente já era racial. A população negra, historicamente empurrada para a informalidade e precarização, tornou-se o alvo preferencial dessa nova política. As favelas, estigmatizadas desde a República, foram reinterpretadas como “territórios dominados”, espaços a serem pacificados ou eliminados. A promessa da “democracia racial” esgotou sua utilidade ideológica; a função do Estado deixou de ser a construção de uma imagem de harmonia para ser a administração de populações supérfluas que o mercado não absorve e a democracia não integra.
Nesse contexto, consolidam-se duas faces do autoritarismo sobre o mesmo território. O tráfico ocupa as brechas da ausência social, não como alternativa libertadora, mas como uma tirania armada que espelha a violência do Estado. Ao absorver o “exército de reserva” de jovens descartados pelo mercado formal, o crime organizado oferece renda e uma promessa perversa de pertencimento, apenas para triturar essa força de trabalho em uma engrenagem de extorsão, medo e morte prematura. Essa dinâmica, contudo, oferece o álibi perfeito para a intervenção estatal bélica. A presença do tráfico justifica que o Estado entre na favela não com escolas ou hospitais, mas com o “caveirão”, transformando bairros residenciais em zonas de guerra. É fundamental compreender: isso não significa ausência do Estado, mas outra presença — uma presença policial, punitiva e letal. A disputa é permanente, mas o acordo estrutural é silencioso: ambos os poderes dependem da existência da favela enquanto espaço segregado e da gestão violenta dessa população excedente.
Enquanto isso, o encarceramento se transforma na principal política pública voltada à juventude negra. Prisões superlotadas e tortura sistemática deixam de ser exceção para virar regra de governo. Importante frisar: isso se aprofunda justamente na redemocratização. Nos anos 1980, enquanto o discurso dos direitos humanos ganhava força retórica, o Estado brasileiro aprofundava silenciosamente sua máquina penal. Na prática, a Constituição de 1988 promoveu direitos civis; na contraprática, manteve intacta a Doutrina de Segurança Nacional em sua aplicação sobre territórios negros.
Se a ditadura construiu a ideia do “inimigo interno” político, a democracia o reconfigurou como “traficante”. Essa categoria cumpre o papel de atualizar a figura histórica do negro perigoso sob uma suposta neutralidade moral. O que antes era controle político, hoje se apresenta como defesa social. A militarização da política urbana normalizou a presença de forças de guerra, transformando as periferias em laboratórios de contenção semelhantes ao que descrevemos sobre a Palestina.
Ao mesmo tempo, o neoliberalismo produz uma narrativa moral que responsabiliza o indivíduo pela sua pobreza (“não se qualificou”, “não soube competir”), permitindo ao Estado reduzir direitos e ampliar a repressão sem enfrentar resistência. É o triunfo do punitivismo como pedagogia social. A guerra às drogas, portanto, não é apenas política criminal: é a forma de governar o pós-abolição na era neoliberal. Ela substitui a fantasia da democracia racial por uma racionalidade securitária que desumaniza e neutraliza.
O resultado é que a morte e o encarceramento se tornaram políticas de Estado não declaradas, mas normalizadas. A segurança pública justifica drenar o orçamento social; a presença policial substitui a política urbana; a vida negra substitui o território como local onde o Estado inscreve sua autoridade. A guerra às drogas fornece a linguagem, o neoliberalismo a racionalidade, e o racismo estrutural o alvo. Longe de ser um fracasso, essa guerra é um sucesso pleno: ela cumpre sua função real de manter a ordem racial, classista e territorial do Brasil, fornecendo a legitimidade necessária para o extermínio.
Neoliberalismo aprofundado, neofascismo e a nova economia política da morte
Chegamos ao presente com a sensação incômoda de que as promessas democráticas das últimas décadas se dissolveram no ar. O que se vive hoje não é apenas a continuidade da guerra às drogas, nem apenas a radicalização de uma política penal herdada dos anos 1980: é o surgimento de uma nova razão de governo, onde neoliberalismo e neofascismo se alimentam mutuamente. Se o neoliberalismo clássico dos anos 1990 apostava na redução do Estado e na expansão do mercado, o neoliberalismo tardio que vivemos agora é um sistema que exige Estado forte – mas forte apenas para punir, vigiar e eliminar. A repressão deixa de ser uma ferramenta auxiliar e se torna modo de governar. E é exatamente aí que o neofascismo encontra seu terreno fértil: ele oferece legitimidade moral ao que o neoliberalismo exige operacionalmente.
Essa convergência produz uma mutação histórica. As teorias raciais que estruturaram o Brasil pós-abolição não desapareceram; foram reescritas. No início do século XX, Lombroso e suas medições de crânios ofereciam ao Estado a legitimidade científica para identificar os “elementos perigosos”. A antropologia criminal classificava corpos, comportamentos e feições para decidir quem era suspeito. Hoje, a tecnologia digital cumpre função semelhante. O reconhecimento facial, os bancos de dados policiais, os algoritmos de risco e a vigilância em tempo real transformam territórios inteiros em mapas de ameaça. O corpo negro continua sendo o alvo, mas agora mediado por softwares, câmeras e plataformas privadas que operam como extensões do Estado. A lógica lombrosiana não desapareceu: ela apenas mudou de dispositivo, operando agora sobre probabilidades e georreferenciamentos com aparência de neutralidade tecnológica.
É justamente essa fusão entre racismo histórico, vigilância digital e neoliberalismo punitivo que abre espaço para o neofascismo. No texto sobre a Palestina, que demonstro como a ocupação israelense produz uma racionalidade de controle total – vigilância contínua, cercamento militar, administração da vida e da morte como técnicas de governo. Essa lógica se globalizou. No Brasil, ela encontra uma sociedade que nunca completou a abolição e sempre aceitou que determinados corpos fossem administrados por uma gramática de exceção. O neofascismo brasileiro surge exatamente nessa interseção: um neoliberalismo que precisa matar para governar e um racismo estrutural que autoriza quem deve morrer.
Daí a legitimidade crescente do lema “bandido bom é bandido morto”. Ele não é um desvio moral, mas um sintoma histórico; é o equivalente contemporâneo das teorias eugenistas. A frase produz consenso sobre a desigualdade, sobre o encarceramento em massa e sobre a normalização da tortura. Não se trata apenas de opinião pública; trata-se de uma pedagogia social que ensina a população a aceitar a eliminação seletiva como condição para a vida “normal”.
A comparação entre o tratamento do massacre do Carandiru (1992) e o massacre recente no Rio de Janeiro é reveladora. Nos anos 1990, o Carandiru foi visto como exceção, gerando indignação e processos judiciais. Trinta anos depois, a reação ao massacre do Rio mostra um país brutalizado. A morte de dezenas de pessoas gerou aplausos nas redes e discursos de apoio de governadores. O que era exceção virou rotina; o que era horror virou método. A diferença não está apenas na intensidade da violência, mas no lugar social que ela ocupa. O que antes era visto como ruptura da ordem, hoje é visto como sua garantia.
Essa mudança revela que o neoliberalismo brasileiro se converteu num sistema de gestão racial pela morte. À medida que o trabalho se precarizou e as cidades se tornaram máquinas de expulsão, o Estado assumiu como função central administrar os indesejáveis. E é crucial entender que o tráfico de drogas não é o oposto desse sistema, mas sua face complementar e funcional. As facções criminosas operam como empresas neoliberais armadas: absorvem o exército de reserva de jovens descartados pelo mercado formal, impõem micro-despotismos tirânicos sobre as comunidades e exploram a miséria com a mesma lógica de lucro a qualquer custo. O tráfico não liberta; ele aprisiona a favela em uma dupla tenaz. Ele fornece a violência privada que oprime o morador e, ao mesmo tempo, oferece o álibi perfeito para a violência pública do Estado. Nessa simbiose perversa, o tráfico e a polícia funcionam como sócios na administração do extermínio: um justifica a existência do outro, enquanto ambos trituram a mesma carne negra e pobre.
O neofascismo surge como linguagem para justificar essa engrenagem, operando através de uma perversa “lógica dos escolhidos”. Ele divide o corpo social entre uma casta de “cidadãos de bem” — supostamente ungidos por uma moralidade superior ou divina — e uma massa de inimigos descartáveis. Essa distinção é fundamental, pois retira o peso ético da barbárie: para proteger a pureza dos “escolhidos”, tudo é permitido contra a contaminação dos “condenados”. Assim, o neofascismo fornece retóricas de ódio e promessas de limpeza moral, transformando políticas de morte em atos de redenção. O agente que mata e o Estado que deixa morrer não são vistos como criminosos, mas como saneadores necessários. O mais grave é que essa racionalidade se apresenta como natural. O aparato de vigilância, a militarização e o extermínio são vendidos como soluções técnicas e inevitáveis para garantir a segurança dos eleitos. É assim que o neofascismo opera: não como ruptura da ordem democrática, mas como sua radicalização interna, usando as instituições até o limite para tornar o racismo uma política de governo.
Ao chegar a este ponto, torna-se claro que o Brasil de hoje vive uma atualização extrema do pós-abolição. Cada etapa histórica – o branqueamento, o mito da democracia racial, a guerra às drogas – forneceu os instrumentos para que o neofascismo pudesse emergir. A abolição inconclusa e o apartheid territorial são o terreno fértil onde se plantam as novas tecnologias de controle. O neoliberalismo radicaliza esse terreno; o neofascismo o fertiliza; o tráfico o explora; e a máquina penal o colhe.
O que está em jogo, portanto, não é apenas a crítica à violência policial. É a disputa pelo sentido da própria vida no Brasil. Se normalizarmos a administração da pobreza pela morte e aceitarmos a falsa dicotomia entre a tirania do tráfico e a tirania do Estado, estaremos apenas renovando os velhos pactos raciais. O desafio é romper o elo histórico que transforma corpos negros em alvos e territórios negros em campos de experimentação bélica. Esse é o ponto onde a análise da Palestina se encontra com o Brasil: ambos revelam que não há controle total sem racismo, não há vigilância absoluta sem laboratório e não há neofascismo sem a fabricação sistemática de populações descartáveis.
A intensificação do processo de acumulação e espoliação encontrou, assim, a forma precisa de gerenciar os descartáveis. Diante disso, mais do que nunca, é fundamental criar uma alternativa para esse sistema de morte. A tarefa histórica é desnaturalizar o extermínio: tornar visível o que o neoliberalismo tenta ocultar e intolerável o que o neofascismo tenta legitimar. Porque, enquanto a sociedade continuar aceitando triunfalmente o lema “bandido bom é bandido morto” — ou acreditando que a brutalidade do tráfico justifica a brutalidade da polícia —, não haverá democracia possível. Haverá apenas a continuação, atualizada e tecnologicamente sofisticada, da mesma guerra do Estado brasileiro contra a população negra.
Referência Bibliográfica:
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