Comunicação pública não pode ser governista nem policialesca: o erro da EBC com Datena
Ao levar o mundo-cão para a TV pública, o governo ameaça direitos, fere a lei e enfraquece a democracia: a EBC precisa de autonomia, não de espetáculo
Foto: Ricardo Stuckert/PR
Nesta terça-feira (2), a coluna de Mônica Bergamo na Folha de S.Paulo revelou que o apresentador José Luiz Datena fora convidado pelo presidente Lula e aceitou comandar um programa semanal na TV Brasil e outro diário na Rádio Nacional, principais veículos da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). A notícia surgiu após um encontro entre Lula e Datena no Palácio do Planalto, no dia anterior. Em 03/12, a direção da EBC confirmou oficialmente a contratação.
A entrada de Datena na programação pública, mantendo simultaneamente seu programa na RedeTV!, ultrapassa a categoria de erro editorial. Representa uma afronta à missão da EBC enquanto operador do serviço público de comunicação, um desrespeito ao marco legal que a orienta e uma rendição explícita à lógica comercial e governamental que a comunicação pública foi criada para superar.
A forma como o anúncio foi conduzido, inicialmente vazado à imprensa e logo depois reforçado por uma fotografia de Datena ao lado do presidente no Planalto, revela um problema estrutural persistente. A EBC ainda é tratada como um braço da comunicação governamental, e não como uma instituição de Estado dotada de autonomia e independência, conforme determina a legislação.
A reação das entidades históricas da luta pela democratização da comunicação foi imediata. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e os Sindicatos dos Jornalistas de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal divulgaram nota conjunta repudiando a contratação. Também se manifestaram a Frente em Defesa da EBC, o Intervozes, pesquisadores da Intercom e o Centro de Estudos da Mídia Barão de Itararé. Não se tratou de disputas pessoais ou sindicais, mas da constatação de que há uma incompatibilidade profunda, legal e ética entre o histórico de Datena e a natureza da comunicação pública.
A nota da Fenaj e sindicatos sintetiza o essencial ao definir Datena como um dos maiores símbolos do jornalismo policialesco e do proselitismo político. Esse formato, frequentemente apresentado como “jornalismo popular”, consolidou no país um tipo de jornalismo mundo-cão que transforma sofrimento em espetáculo, reforça o racismo e mobiliza audiência por meio da humilhação e da violência. Trata-se de um modelo baseado no desrespeito sistemático aos direitos humanos e no uso político da retórica da segurança, exatamente o oposto do que a comunicação pública deve promover.
A carreira de Datena na TV aberta, especialmente nos últimos 25 anos, ilustra isso de forma contundente. Programas como Brasil Urgente da Band e Cidade Alerta da Record consolidaram práticas que incluem exposição ilegal de pessoas, identificação de adolescentes em conflito com a lei, humilhação pública, tortura psicológica transmitida ao vivo, incitação à violência policial, desrespeito à presunção de inocência e a naturalização de preconceitos sociais e raciais. A fusão entre violência e espetáculo é a essência do policialesco, e Datena é seu principal porta-voz no Brasil.
Monitoramentos realizados em diferentes capitais registraram milhares de violações de direitos humanos em um único mês, várias delas em programas apresentados por Datena. A reincidência foi tão grave que a TV Band foi punida judicialmente por falas do apresentador, sendo obrigada em 2015 a exibir vídeos educativos sobre laicidade do Estado após episódios de discriminação religiosa.
Esse tipo de conteúdo não tem lugar na comunicação pública. A Lei 11.652/2008, que criou a EBC e define a missão da TV Brasil e da Rádio Nacional, estabelece que o sistema deve se guiar por valores éticos e sociais, pelo respeito à dignidade humana, pela diversidade, pela pluralidade de vozes e pela autonomia editorial diante do governo federal. A comunicação pública existe para oferecer o que a mídia comercial não entrega, incluindo produção regional, conteúdo educativo e cultural e tratamento digno ao cidadão. O policialesco opera em sentido oposto ao papel da comunicação pública.
A presença de Datena na EBC, portanto, não amplia a audiência nem democratiza a programação. Dilui o caráter público da empresa, enfraquece a identidade institucional da TV Brasil e da Rádio Nacional e importa para dentro do sistema público justamente a lógica que ele deveria combater. É um retrocesso editorial e institucional e representa um risco sério ao futuro da comunicação pública no país.
A Frente em Defesa da EBC classificou o episódio como um escárnio, e a descrição não exagera. A decisão foi articulada diretamente dentro do Planalto, desconsiderando o Comitê Editorial e de Programação e o Comitê de Participação Social, estruturas criadas para garantir controle social e transparência. Essa forma de condução viola o espírito da Lei 11.652/2008, que define a independência da programação frente ao governo.
Programas policialescos deformam o debate público ao transformar sofrimento em entretenimento, criminalizar populações vulneráveis e reforçar discriminações. Ao fazer isso, fragilizam a democracia e violam frontalmente o direito humano à comunicação. Permitir que essa lógica entre na TV Brasil e na Rádio Nacional é abrir mão da própria razão de ser da comunicação pública, fundada na promoção da cidadania, da educação, da cultura e da dignidade humana.
A reação dos trabalhadores da EBC e de organizações da sociedade civil indica mais do que discordância. Revela que a atual gestão conduziu o processo de maneira autoritária, sem diálogo com os mecanismos de participação social, e reforça a percepção de que, em vez de reconstruir a comunicação pública, aprofunda sua vulnerabilidade ao governismo e ao improviso.
A crise não surge de forma isolada. É resultado direto do processo de fragilização institucional iniciado com o governo Temer em 2016, quando o Conselho Curador foi extinto, a subordinação à Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) se intensificou e a autonomia editorial começou a se deteriorar. O governo Bolsonaro aprofundou o desmonte ao perseguir jornalistas, censurar conteúdos, desmontar estruturas regionais e transformar a TV Brasil em instrumento de propaganda, além de manter a empresa sob constante ameaça de privatização. Com o quadro de pessoal reduzido em cerca de 30% desde 2016 e sem concursos há mais de uma década, a EBC encontra-se asfixiada.
O governo Lula recebeu esse cenário, mas não o enfrentou. A subordinação à Secom foi mantida, o Conselho Curador não foi restaurado e o quadro de pessoal permanece insuficiente. A contratação de Datena diretamente do Planalto expressa essa ausência de reconstrução institucional e confirma a vulnerabilidade da EBC à vontade do governo da vez.
Boulos e a diluição programática que reforça o governismo
A defesa da contratação de Datena apresentada pelo ministro Guilherme Boulos, filiado ao PSOL, na Folha de S.Paulo, torna o episódio ainda mais grave. Em vez de ouvir os trabalhadores da EBC, os movimentos sociais e as organizações que há muitos anos constroem a defesa da comunicação pública, o ministro preferiu justificar a contratação de Datena com argumentos que revelam vínculos muito mais pessoais e eleitorais do que institucionais.
Boulos afirmou que Datena já defendeu pautas progressistas e mencionou seus dois Prêmios Vladimir Herzog, conquistados em 1983 e 1987, há mais de 40 anos atrás e muito antes de sua virada para o jornalismo policialesco. O uso desses prêmios como justificativa desrespeita a própria história do Prêmio, que reconhece jornalistas que enfrentaram violência de Estado e defendem direitos humanos, e de Vladimir Herzog, assassinado pela Ditadura Militar.
Utilizar essa memória democrática como escudo para legitimar décadas de jornalismo mundo-cão de Datena banaliza o prêmio e ofende todos os profissionais que o conquistaram, muitas vezes arriscando a própria vida em defesa dos direitos humanos.
A situação se agrava quando o ministro insiste em lembrar que Datena o apoiou nas eleições de 2024, mas silencia diante das declarações repetidas do apresentador, inclusive no Roda Viva da TV Cultura, de que fora convidado pelo próprio Boulos para ser seu vice na disputa pela Prefeitura de São Paulo. Datena repetiu isso ao vivo e em diferentes entrevistas, e o ministro jamais negou, limitando-se a reclamar que conversas privadas teriam sido expostas.
Há aqui uma contradição estrutural para um dirigente do PSOL. O partido nasceu em oposição ao governismo, ao personalismo e ao uso instrumental do Estado para fins eleitorais. Defendeu, por duas décadas, uma atuação pública baseada em princípios, transparência, controle social e projetos coletivos. No entanto, ao adotar a defesa de Datena sem consulta à sociedade civil e a partir de critérios de lealdade eleitoral, Boulos opera segundo a lógica que seu próprio partido historicamente combateu.
A consequência dessa postura é devastadora para a comunicação pública. Ao justificar a entrada de Datena na TV Brasil e na Rádio Nacional com base em vínculos pessoais e acordos de campanha, o ministro reproduz exatamente o padrão de aparelhamento político que destruiu a EBC nos governos Temer e Bolsonaro. Mais do que isso: enfraquece o argumento de que a EBC deve ser protegida da interferência dos governantes de turno, pois demonstra que até mesmo setores da esquerda podem utilizar a empresa segundo conveniências próprias.
Boulos não defende Datena por critério técnico ou editorial. Não o defende com base na Lei 11.652/2008. Não o defende com base na ética jornalística nem na missão pública da EBC, até porque isso seria impossível. Sua defesa é política. E essa é precisamente a razão pela qual ela é tão incompatível com a ideia de comunicação pública que o Brasil precisa reconstruir.
A comunicação pública não existe para retribuir apoios, acomodar aliados ou projetar preferências individuais de ministros. Existe para servir à sociedade. Existe para representar a diversidade do país. Existe para garantir um direito humano fundamental: o direito de todos à informação plural, democrática e digna.
Ao naturalizar o uso político da EBC, Boulos não apenas se descola do programa histórico do PSOL, mas compromete o próprio futuro da comunicação pública brasileira.
18 anos de EBC e a necessidade de reconstrução institucional
O fortalecimento da EBC exige enfrentar fragilidades acumuladas ao longo de todos os governos. A empresa só cumprirá sua missão se tiver autonomia editorial real, mandatos estáveis para sua direção e mecanismos de proteção contra interferências políticas. A separação entre EBC e Secom é uma condição essencial para que a comunicação pública funcione como instituição de Estado.
Esse fortalecimento depende também de financiamento estável. As grandes emissoras públicas do mundo contam com modelos legais de sustentação que garantem previsibilidade orçamentária e liberdade editorial. A EBC jamais cumprirá sua função se continuar submetida à instabilidade financeira e às decisões discricionárias do Executivo.
A participação social precisa ser reconstruída. A extinção do Conselho Curador feriu profundamente o caráter público da empresa. A restauração desse instrumento e o fortalecimento dos comitês internos são fundamentais para que a sociedade e não o Planalto oriente os rumos da comunicação pública.
Nada disso será possível sem a recomposição do quadro de pessoal. A EBC perdeu um terço de seus trabalhadores desde 2016, não realiza concursos há mais de uma década e opera com equipes insuficientes para cumprir sua função constitucional. A retomada dos concursos públicos é condição básica para que jornalistas, produtores, técnicos e demais profissionais possam trabalhar de forma estável, qualificada e comprometida com o serviço público.
A controvérsia envolvendo Datena não é sobre a presença de um apresentador. É uma disputa pelo destino da comunicação pública no Brasil. Trata-se de decidir se a TV Brasil e a Rádio Nacional continuarão submetidas aos interesses do governo ou se serão finalmente entregues à sociedade como instrumentos democráticos de pluralidade, cidadania, diversidade e informação qualificada.
No centro dessa disputa está o direito humano à comunicação. A forma como a EBC será reconstruída ou capturada definirá a qualidade da democracia brasileira nos próximos anos.
A comunicação pública é inegociável
A contratação de José Luiz Datena representa um erro político, ético e institucional. Enfraquece a EBC, viola seu marco legal, desqualifica sua missão e normaliza um padrão de governismo que não pode ser aceito. Se a comunicação pública se curvar à lógica do espetáculo e às interferências do governo de turno, a democracia brasileira perderá um de seus pilares centrais.
Reconstruir a EBC exige muito mais do que corrigir equívocos pontuais. Exige autonomia editorial, orçamento estável, participação popular real na gestão e recomposição imediata de seu quadro profissional por meio de concursos públicos. Sem isso, a comunicação pública seguirá fragilizada, vulnerável e distante de sua missão constitucional.
A TV Brasil e a Rádio Nacional só poderão cumprir seu papel se forem fortalecidas como instituições de Estado, públicas, independentes e plurais. Comunicação pública não pode ser moeda política nem palco para sensacionalismo. Ela deve ser tratada como um patrimônio do povo brasileiro, e sua defesa é inseparável da defesa da democracia.