Dosimetria da impunidade
Câmara aprova manobra que pode reduzir a dois anos a pena de Jair Bolsonaro, em nova ofensiva do bolsonarismo para livrar seu líder da cadeia
Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
A madrugada desta quarta-feira (10) entrou para a história como mais um capítulo da erosão institucional que setores do Congresso promovem para proteger Jair Bolsonaro e seus cúmplices no ataque ao Estado Democrático de Direito. Por 291 votos a 148, a Câmara aprovou um projeto de lei que institui um esquema de “dosimetria” feito sob medida para reduzir drasticamente a pena do ex-presidente – condenado a 27 anos e 3 meses, em regime fechado, por tentativa de golpe.
O texto, relatado por Paulinho da Força (Solidariedade-SP), foi apresentado como uma resposta “técnica” aos julgamentos do 8 de janeiro. Mas, na prática, atende a uma pauta antiga da extrema direita: garantir a liberdade de Bolsonaro. Segundo o próprio líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), com o novo cálculo, o ex-presidente poderia cumprir apenas dois anos e três ou quatro meses em regime fechado – tempo considerado suficiente para obter progressão de pena.
“Bolsonaro já foi comunicado sobre o acordo”, afirmou o deputado, revelando que a articulação partiu de Flávio Bolsonaro, que levou o texto ao pai e recebeu seu aval.
A chantagem que pautou a votação
A decisão de colocar o tema em votação não veio do nada. Há poucos dias, Flávio Bolsonaro anunciou que seria candidato à Presidência pelo PL e, em seguida, disse que essa candidatura tinha “um preço”. O recado, dirigido ao presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), foi claro: a família Bolsonaro pressionava para que a pauta da dosimetria fosse votada imediatamente como caução para uma desistência de Flávio – o que abriria caminho para candidaturas como a de Tarcísio de Freitas ou Ratinho Jr, com endosso do “capitão”.
A chantagem funcionou. Na mesma semana, Motta ignorou críticas, atropelou debates e anunciou a votação de madrugada, atendendo ao pedido explícito do clã Bolsonaro – que tenta, há meses, um caminho para livrar seu líder do cárcere. A “candidatura-chantagem” de Flávio foi a senha para que o Centrão cedesse, como tem feito repetidamente desde 2019.
Insistentes tentativas de livrar o chefe
A aprovação da dosimetria é apenas o episódio mais recente de uma marcha contínua de parlamentares bolsonaristas para reescrever a história do 8 de janeiro. Depois de fracassarem na tentativa de aprovar uma “anistia ampla, geral e irrestrita”, os deputados agora empurram soluções “intermediárias”, mas igualmente feitas sob encomenda.
O novo texto reduz penas à metade para condenados por liderança de organizações antidemocráticas, além de prever redução de um terço a dois terços para quem atuou “em contexto de multidão”. Ainda acaba com a soma de penas para crimes como golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, contrariando entendimento firme do STF – e atende diretamente à defesa de Bolsonaro, que teve pedido nesse sentido negado pelo ministro Alexandre de Moraes, para quem houve “pluralidade de ações e omissões distintas”.
Não é coincidência que todas essas mudanças incidem precisamente sobre os crimes pelos quais o ex-presidente foi condenado. A tentativa reiterada de alterar a lei para ajustar decisões judiciais já tomadas expõe a disposição do bolsonarismo de desmontar o sistema de freios e contrapesos, desde que isso garanta a salvação de seu chefe.
Moeda de troca: punições e bastidores
A votação, como admitiram parlamentares, foi usada como moeda de troca para avançar também sobre processos no Conselho de Ética. Entre os afetados, estão Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Carla Zambelli (PL-SP) — ambos alvos de pedidos de cassação. A barganha envolveu ainda a punição do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), que protestou ocupando a cadeira da Presidência da Câmara e acabou retirado à força pela Polícia Legislativa Federal.
O “pacotão de fim de ano” mostrou que, para parte expressiva do Congresso, o destino da democracia vale menos do que negociações internas e acordos de autopreservação.
E agora? Quais são os próximos passos
O projeto aprovado ainda precisa passar pelo Senado. Se os senadores confirmarem o texto – o que dependerá de pressão popular e articulação das bancadas democráticas -, seguirá para sanção presidencial. Nada impede, porém, que o Executivo vete parcial ou totalmente o projeto. Eventuais vetos retornam ao Congresso, que pode derrubá-los.
O Supremo Tribunal Federal também poderá ser provocado a avaliar a constitucionalidade da norma, especialmente porque ela interfere diretamente em decisões judiciais já transitadas e pode ser interpretada como tentativa de esvaziar o combate ao golpe de 8 de janeiro.
O que se viu na madrugada foi mais um movimento de um Legislativo capturado por chantagens e pressões da extrema direita – um Legislativo disposto a reescrever a lei para que Jair Bolsonaro, condenado por tentar derrubar a própria democracia, passe no máximo dois anos atrás das grades. Uma derrota institucional que revela o tamanho do abismo político que ainda enfrentamos.