Uma reflexão sobre estratégia e análise de conjuntura
Muitos de nós estão cansados, sem perspectiva imediata e militando quase de forma automatizada. Não precisa ser assim.
Se, a princípio a ideia não é absurda, então não há esperança para ela (Albert Einstein)
Somos socialistas e revolucionários. Lutamos pelo fim da exploração e da opressão humana. Temos certeza de que o capitalismo faliu como modo de produção e de que o socialismo é a única solução possível. E para derrubar o capitalismo a classe trabalhadora e o povo precisam de uma ruptura revolucionária internacionalista e consciente. Essas são algumas de nossas “ideias absurdas”. Muitas delas são tidas como fora de moda ou dogmáticas. A questão é saber quantos de nós, de fato, ainda acreditamos nessas premissas e, mais importante: elas ainda orientam nossa vida cotidiana ou estão guardadas para as grandes manifestações e os dias de festa?
Sei que começar um texto sobre conjuntura reafirmando a estratégia socialista e revolucionária parece “démodé”, anacrônico e obsoleto. Talvez de fato seja, considerando que vivemos tão preocupados em estar conectados à volatilidade dos acontecimentos que nossos princípios parecem se esfumaçar num ativismo político frenético e, não raro, desgastante e aparentemente infrutífero. Muitos de nós estão cansados, sem perspectiva imediata e militando quase de forma automatizada. Não precisa ser assim.
Fazemos análise de conjuntura para orientar nossa política. Há um certo consenso entre nós de que sem uma boa análise não teremos uma política adequada. O problema é que ler a realidade nem sempre parece ser uma tarefa simples. Temos um ferramental teórico invejável; temos anos de vivência política; estamos inseridos nos principais movimentos sociais e fazemos exaustivos debates acerca da conjuntura e suas dinâmicas. Esse parece ser um remédio infalível para não errar. Nada mais longe da realidade. Quantos de nós, no início de 2018, previram a vitória de Bolsonaro? Os elementos de sua vitória já estavam presentes de forma subterrânea ou não, mas poucos de nós tiramos as lições necessárias. A grande maioria só se deu conta de sua vitória quando ela já era inevitável e iminente. Esse é um balanço que ainda estamos nos devendo.
A grande questão a ser respondida é por que não conseguimos ler de forma adequada a realidade que se descortinava diante de nossos olhos. Penso que essa não é uma resposta simples, mas deve começar com uma autocrítica ampla e sincera acerca de nossas importantes fragilidades teóricas, aliado ao fato de que muitas vezes vemos aquilo que queremos ver e não o que de fato está acontecendo no mundo real. Humildade também parece nos faltar em muitas oportunidades. Mas, voltaremos a esse tema mais adiante.
Passados seis meses do governo Bolsonaro, uma pergunta se impõe: ele está mais forte ou mais fraco do que quando começou? Alguns companheiros haverão de responder que diante do avanço de suas tendências bonapartistas, da fragmentação da luta sindical e da representação política do congresso nacional e dos partidos, da desmoralização do STF e do judiciário como um todo, Bolsonaro e seu núcleo ultraconservador e neofascista se fortalecem, portanto, nossa tática deve ser defensiva, exclusivamente de “frentes únicas” e mediada, prioritariamente, pela subordinação ao calendário eleitoral. Outros, ao principalizarem ou verem apenas as grandes mobilizações de rua, a Greve Geral e a queda de popularidade do governo, dirão que ele nunca foi um governo forte, que a classe sempre esteve na ofensiva e que o problema dos problemas é a vacilação ou a traição das direções burocráticas. Já conhecemos esse debate, mas o que precisamos reconhecer é que tanto uma quanto outra análise não estão inventando elementos da realidade, pois eles de fato existem. O governo perde popularidade, as manifestações são multitudinárias e o governo perde força. Ao mesmo tempo, é verdade que avançam sobre o congresso as medidas bonapartistas e se cristaliza o núcleo reacionário do governo. Bolsonaro já assinou, até junho, 180 Decretos Presidenciais, numa clara tentativa de driblar os cada vez maiores percalços nas casas legislativas. Mas, se todos esses argumentos são verdadeiros e simultâneos, qual é a nossa caracterização sobre a questão? O problema é o peso que se dá a cada um desses fatos e, principalmente, a falta de uma análise totalizante, que dê conta da multiplicidade e variedade de elementos que compõem a realidade. Se pinçarmos elementos da realidade e os absolutizarmos, ainda que sejam reais, estaremos caminhando para uma análise desequilibrada da conjuntura e, consequentemente, uma política equivocada. Uma análise precisa levar em conta os fatos, as dinâmicas, mas também elementos tidos como “subjetivos”, tais como a disposição de luta da classe trabalhadora e as entidades que estão construindo a luta sob uma perspectiva da mobilização permanente.
Uma análise equilibrada precisa considerar os principais elementos, definindo quais são determinantes e quais são os secundários, construindo uma totalização a partir da relação social das classes em luta, sempre na perspectiva de subsidiar a elaboração de políticas e táticas que estejam em consonância com nossos objetivos estratégicos. Boas análises são importantes, mas análises não mudam a realidade; o que muda a realidade é a política. Por mais difícil que seja, errar não pode ser uma opção.
Para entender o momento atual precisamos retroagir alguns anos. No período pós-ditadura civil/militar tivemos pelo menos três grandes pactos interburgueses: a constituição de 1988, o primeiro e mais importante; a unidade burguesa em torno do plano neoliberal de FHC; e o grande “pacto social” lulopetista, que foi o mais estável. Ao dizer isso não podemos desconsiderar as tensões internas na classe dominante, que são desiguais, mas permanentes em cada um desses períodos. A vitória eleitoral de Bolsonaro, que a princípio não era o candidato preferencial da burguesia, tenta consolidar um novo pacto, de caráter muito mais autoritário e com maior peso das Forças Armadas, que hoje buscam tutelar os três poderes (Judiciário, executivo e Legislativo). Sua vitória expressa também a continuidade da escalada autoritária em curso desde o golpe de 2016, que culminou com o impeachment de Dilma e a prisão de Lula, num processo completamente corrompido, visando impedi-lo de participar das eleições de 2018. Bolsonaro busca agora radicalizar a agenda neoliberal visando um novo ciclo de acumulação de capital baseado na ampliação da desnacionalização da economia, com mais privatizações, inclusive de segmentos estratégicos, ataques cada vez maiores a direitos sociais (cujo principal expoente hoje é a Reforma da Previdência) e a hegemonização do capital financeiro. As tendências neofascistas se alimentam da crise crônica do capital: o desemprego, a queda da renda, a precarização do trabalho, o aumento da pobreza, a destruição sistemática de nosso meio ambiente e o aprofundamento da desigualdade social são terrenos férteis para a misoginia, o racismo, a xenofobia e a lgbtifobia.
Segundo Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, o governo federal é uma “usina de crises”. Parece uma boa imagem se considerarmos a quantidade de escândalos protagonizados por Bolsonaro, seus filhos e seus ministros, alguns tão bizarros que custamos a acreditar. Apesar de a burguesia estar bastante unificada em torno da reforma da Previdência e do ajuste fiscal, não parece ter o mesmo grau de unidade em outras pautas do governo, tanto é assim que Bolsonaro já teve que recompor diversas vezes seu Ministério, readequando suas competências, na tentativa de aprovar pautas como a flexibilização do porte e da posse de armas, da legislação de trânsito, do corte de verbas na educação, da destruição da legislação ambiental, do fim da reforma psiquiátrica, do ensino domiciliar e de outros temas semelhantes.
A recente prisão de um sargento da FAB, que integrava a comitiva presidencial, com 39 Kg de cocaína e o escândalo do vazamento das conversas de Moro com Dallagnol (o “vaza jato”) apimentam ainda mais o cenário de crise. Sérgio Moro, considerado por muitos como a segunda pessoa mais importante no governo, teve sua credibilidade arranhada de forma irreversível e pode ser fritado como foram Bebianno, Vélez Rodrigues, Santos Cruz e mais uma dezena de cargos de segundo escalão. Além desses escândalos há outro elemento determinante no agravamento da crise do governo: não há sinais sólidos de superação da estagnação econômica e do desemprego. Já são mais de 13,2 milhões de desempregados e mais de 28,4 milhões de população subutilizada (desempregados, mão de obra subocupada e pessoas que não buscam mais emprego). Se considerarmos também a informalidade e pessoas que trabalham por conta própria, teremos mais 35,3 milhões de pessoas, contra 33 milhões trabalhando com carteira assinada (IBGE – 2018). Se somarmos a população subutilizada e a que vive na informalidade, teremos perto de 63,7 milhões de pessoas. Esse número significa a somatória da população da Espanha, de Portugal e da Suíça. Um verdadeiro exército de desempregados e precarizados pelas substantivas modificações no mundo do trabalho. Esse caldo de cultura definitivamente não ajuda na construção de uma estabilidade desse novo pacto social.
Bolsonaro segue em queda de popularidade. Perde para quase todos os presidentes anteriores. Segundo a pesquisa de junho da CNI, 48% da população desaprova seu modo de governar, 51% não confiam nele e apenas 32% consideram seu governo ótimo ou bom. Além de indicar uma substantiva perda de apoio popular, acende o sinal vermelho da grande burguesia, que começa a ver que sua fanfarronice está sendo de pouca valia para os verdadeiros interesses do grande capital. Um risco a mais para o capitão. As vitoriosas manifestações de rua desde o “Ele não”, passando pelo 8 de março, pelas manifestações contra o corte de verbas na educação e a greve geral são, evidentemente, pontos determinantes de fragilização do governo.
Por tudo isso, acreditamos que o governo Bolsonaro está mais fraco do que quando assumiu. As dissenções internas no núcleo central do governo, a constante defenestração de ministros, a manutenção da crise econômica, os escândalos frequentes, a perda de apoio para suas pautas “ideológicas”, as crescentes manifestações populares e a greve geral são prova disso. Contudo, ainda não estamos na ofensiva. Nossas lutas são, em sua grande maioria, defensivas e reativas. Os principais movimentos sociais ainda estão fragmentados e com baixa representatividade orgânica. Sua imprescindível reorganização não deve restringir-se a articulações superestruturais ou a movimentações pontuais entre partidos e movimentos e nem deve estar subordinada ao calendário eleitoral. O principal desafio é readquirir capilaridade estrutural nas lutas do povo. É um trabalho que requer tempo, determinação e paciência revolucionária. Mas não vemos outro caminho. Não há atalhos na luta de classes.
Somos a favor da anulação da prisão de Lula, que foi, do ponto de vista jurídico, uma aberração, movida pelo setor golpista visando excluí-lo das eleições presidenciais de 2018. A Lava Jato faz parte de um plano articulado e seletivo para destruir o petismo e a esquerda de uma maneira geral. O PSOL é cada vez mais alvo da extrema direita: o assassinato de Marielle Franco, as crescentes ameaças aos nossos parlamentares e o ódio destilado por Bolsonaro contra nós são prova disso. Sendo assim, trabalhamos em Frente Única pela manutenção das garantias democráticas e contra o neoliberalismo fascistóide do governo. Estamos a favor da mais ampla frente contra a Reforma da Previdência, estivemos na linha de frente da campanha pelo “Ele não”, trabalhamos incansavelmente no “vira voto” e estamos pela anulação do julgamento de Lula. Sem sectarismos e de maneira madura, primamos por expor nossas diferenças dentro da unidade, pois essa unidade será construída respeitando e não negando nossas diferenças.
Nesse sentido é fundamental entendermos a dimensão dada pelo PT à campanha “Lula Livre”. Trata-se, é claro, de uma luta justa e democrática pela anulação do julgamento e nisso temos acordo. Mas essa campanha é muito mais que isso. Reflete uma concepção lulopetista de principalização da luta eleitoral, de uma campanha eleitoral antecipada, de subordinação das lutas aos objetivos eleitorais, legítimos, diga-se de passagem, do PT. Do PT, não do PSOL. O que não podemos fazer, como partido que surge como superação dialética do PT, é atrelar o PSOL a essa tática reformista e eleitoreira. Participamos sim dos processos eleitorais, mas sem ilusão de que nossos problemas se resolvem por essa via. O PT está, há muitos anos, incorporado ao sistema. Abandonou, há décadas, a luta pelo socialismo e restringe seus horizontes estratégicos a “melhorar” o capitalismo. Isso é um crime do ponto de vista político. A conciliação de classes nunca beneficiou a classe trabalhadora. Qualquer resgate histórico vai comprovar isso. Toda vez que a classe trabalhadora, ou suas direções, melhor dizendo, fazem pactos com a classe dominante, quem se beneficia é a burguesia. O fracasso do “modo petista” de “governar para todos” é, na verdade, uma política explícita de consolidação da hegemonia burguesa. O fracasso da conciliação, não raro, dá espaço ao surgimento de vias ultraconservadoras. Esse é, sem dúvida, um dos elementos que explicam a vitória de Bolsonaro. E o PT nunca fez essa autocrítica, o que nos dá a certeza de que, se houver outro governo de Lula ou do PT, haverá poucas diferenças com os que já existiram por 13 anos no Brasil. Não há como tergiversar sobre isso. E é exatamente por isso que fazemos questão, sempre, de reafirmar que nossas táticas têm que estar sempre conectadas ao nosso objetivo estratégico, que é a revolução socialista. Sem sectarismos, sem dogmatismos, sem capitulações e com plena ciência de nossas muitas limitações. Mas com uma profunda confiança na força de nossa classe.
Não temos soluções mágicas. Não temos como ser infalíveis, aliás, haveremos ainda de errar muito, mas o que não podemos fazer é esquecer nossos horizontes estratégicos. Não podemos, se de fato ainda acreditamos no socialismo, buscar atalhos ou sucumbir ao melhorismo. Não é fácil, posto que as pressões adaptacionistas são muitas, mas a manutenção de nossos princípios, a paciência revolucionária, a confiança na independência de classe e a firmeza ideológica haverão de nos permitir navegar com segurança rumo ao futuro.