Relembrando a Travessia

Relembrar a travessia é um exercício de reflexão e bússola para aprofundar a descolonização até mesmo nossas mais habituais formas de pensar.

Felipe Bandeira 19 nov 2019, 12:44

“Olhe aquele sol vermelho de tão quente! Malungo ngoma vem!” diziam os escravos vigilantes no eito da produção cafeeira. A metáfora em português, intercalada por palavras do tronco linguístico bantu, servia de aviso para chegada de feitores. Os negros, então, começavam a trabalhar esforçadamente, cavoucando com enxadas as terras roxas paulistanas. Como salienta Robert Slenes (1992), ngoma em muitas línguas da África Central significa um tambor feito de tronco de árvore escavada utilizado para acompanhar as danças associadas aos jongos durante as horas de lazer. A frase servia de código para indicar aos negros e negras que era hora de dançar (trabalhar em ritmo acelerado). Uma variante deste jongo foi utilizada quando os escravos não percebiam a chegada do senhor a tempo de avisar seus parceiros. Então, um deles cantava, “cumbi virô, ei, ei, ei”. Em kimbundo e umbundo, “Kumbi” quer dizer sol ou dia. Na cultura kongo (cultura de muitos povos da África Central), o sol pode representar metaforicamente força ou poder de um homem, fazendo alusão a chegada de autoridade.

Já a palavra “malungo” significa barco ou companheiro. Este termo evidencia como os escravos da África bantu ressignificaram laços de solidariedade e começaram a se descobrir como irmãos nas Américas. A etimologia da palavra faz alusão à travessia atlântica e deriva da mesma raiz que a palavra kalunga que, representada pelas águas do mar, significa a linha divisória que separa os vivos dos mortos. Atravessar a kalunga (o grande mar), portanto, constituía um verdadeiro rito de passagem que envolvia um grande sofrimento que era compartilhado por homens e mulheres, adultos e crianças. As pessoas que faziam a viagem no mesmo barco criavam uma espécie de parentesco simbólico e em certas ocasiões desenvolviam um tabu sexual. Em muitos casos, até povos inimigos no navio negreiro ressignificavam os laços de solidariedade. Este universo histórico e simbólico, como sugere Robert Slenes (1992), se traduzia no jongo aludido acima e indicava que o “malungo” significava mais do que barco ou camaradas da mesma embarcação, mas forçosamente, companheiros da mesma travessia de Kalunga.

Ainda hoje, muitos povos da região de Congo-Angola, acreditam que o barco é o transporte das almas e marca a passagem entre a vida e a morte. Existe uma crença antiga dos bakongos de que a pessoa poderia retornar da América para a África através da Kalunga ainda durante a vida, desde que guardasse sua pureza de espírito (SLENES, 1992, p. 8). O retorno da América para a África — a viagem de volta — é compreendida como um renascimento. Esta ideia que associa renascer ao retorno as raízes nos é sugestiva para pensar as novas formas de sociabilidade e resistência dos negros e negras nas Américas.

Ao serem arrancados de seus lugares de origem, transportados do interior da África pelos rios e rotas terrestres, agrupados em portos de embarques e depois empilhados em navios para a travessia Atlântica, os indivíduos tinham sua humanidade subtraída e reduzidos a condição de escravos. Ainda em território africano, pessoas oriundas de diferentes aldeias — e frequentemente amarradas umas às outras — passaram a conviver e partilhar do mesmo sofrimento de cativeiro. O tempo transcorrido entre o apresamento e embarque poderia ser longo e envolvia uma cadeia de comerciantes que negociavam os escravos em diversos locais. No caminho até a costa africana, muitos grupos se desfaziam e novos grupos se formavam. Nos armazéns costeiros e nas confluências de muitas rotas do tráfico, esses grupos aumentavam e ficavam ainda mais diversificados. Nesse contato, essas pessoas aprendiam a se comunicar entre si e encontraram similaridades entre suas falas, costumes e também diferenças entre uns e outros.

Como destaca Mariana de Mello e Souza (2002), quando esses grupos eram finalmente embarcados, participavam todos da mesma experiência de sofrimento, tomados pelo medo da morte eminente de que seus corpos fossem devorados pelos brancos em banquetes canibais, pois era comum a crença de que os brancos os comeriam. É o que se pode apreender do registro de horror de Olaudah Equiano ao embarcar num navio negreiro. Apalpado por seres brancos cuja aparência estranhava e que falavam uma língua diferente de tudo o que já tinha ouvido, estava certo de entrar em um mundo de espíritos maus. Ao ver a fornalha acesa e a multidão de mulheres e homens negros acorrentados uns aos outros, não mais duvidou do seu destino e desmaiou apavorado. Ao acordar, perguntou aos negros que o haviam levado a bordo se não seria devorado por aqueles homens brancos de aparência horrorosa e estes, para acalmá-lo, disseram que não. Mas ao longo da travessia, os maus tratos, a fome, as doenças e as humilhações, logo o fizeram perceber que exista várias formas de ser devorado e talvez de maneira pior do que tinha sido imaginado.

Fisicamente exauridos, separados de suas linhagens e seu povo, as desgraças compartilhadas na travessia atlântica produziram entre os cativos laços tão fortes como os consanguíneos e estes se tornaram malungos, mesmo que nem sempre permanecem juntos, pois certamente houve indivíduos que ao fim da travessia viram-se inteiramente sozinhos e tiveram que aprender a se inserir na nova ordem social. Os africanos que aqui já estavam instalados foram os guias mais adequados para inserção dos recém aportados na realidade das Américas. Dessa forma, na América colonial, pessoas submetidas a um mesmo sistema de dominação tiveram que lidar com tensões inerentes às diferenças entre várias etnias e com aquelas que advindas do próprio sistema escravista.

Estudos historiográfico e antropológicos que se debruçaram sobre essas expressões revelaram a existência de um sistema de referências sociais e culturais que as populações negras escravizadas ressignificaram ao longo do Atlântico. Aparentemente “miúdas”, essas expressões são, no entanto, fundamentais para compreender a diáspora negra na modernidade. A mudança de perspectiva promovida por tais estudos, contrasta com as posições teóricas bastante difundidas em boa parte da literatura sobre a nossa formação social que descrevem os escravos como personagens passivos sobre o qual se operaram as forças transformadoras da história. Esta ideia, aliás, se apoia em outra: a de que a única identidade possível entre negras e negros era a que surgisse a partir da condição de escravo. As duras condições do cativeiro, neste sentido, serviriam apenas para tolher todas as formas de união e de solidariedade entre as populações negras que, para compensar este estado de anomia social, perdiam-se em perversões e desregramento moral. Assim, o negro era compreendido nos termos de aculturação e incorporação aos quadros de referências patriarcal.

Foi somente a partir da segunda metade do século XX que estas interpretações foram mais fortemente criticadas. Este movimento permitiu que emergissem novas bases teórico-metodológicas sobre as pesquisas da escravidão no Brasil e retirou certas amarras epistemológicas que haviam relegado os escravos a uma espécie de mito do “cativeiro perfeito”. Esses estudos convergiam para a ideia de que as populações negras escravizadas possuíam uma significativa autonomia de cultura e ação e chamavam a atenção para as linhas de sociabilidades que se desenvolviam nas senzalas.

Essas linhas de sociabilidade mostravam que as populações em diáspora ressignificaram sua existência nas Américas, de modo que reinventaram a África no Brasil e produziram sua própria história. Isto desautoriza o olhar de cima pra baixo que vê as populações negras apenas como vítimas de um mecanismo violento que as moldou feito argila. Os negros e negras — e isso se estende para os povos indígenas — não foram fósseis vivos e refratários à ação colonizadora. É errôneo pensar que as populações negras dispersas pelas senzalas perderam seu contato com a África e tornaram-se anômalas. Entre os Nagô, por exemplo, persistiu o culto religioso islâmico, fogo que nem mesmo “a água benta do batismo católico” foi capaz de apagar (FREYRE, p. 393). Nos relatórios policiais que se seguiram à Revolta dos Malês em 1835 na Bahia, salienta-se o fato de quase todos os revoltosos saberem ler e escrever em caracteres desconhecidos, provavelmente árabe. E, certamente, como apontou Gilberto Freyre (2003, p.382), na Bahia da época, talvez houvesse mais gente sabendo ler e escrever nas senzalas do que no alto das casas-grandes. Entre os malês, era comum o uso de livrinhos de preces escritos em árabes que eram encadernados a um laço de couro para que seu dono pudesse pendurá-lo em volta do pescoço e usá-lo como amuleto.

Em um desses livrinhos (encontrado no pescoço de um dos mortos durante a revolta) observa-se o desejo dos negros em estabelecer uma vida familiar estável: “Nosso Senhor! Conceda-nos mulheres e filhos que sejam o conforto de nossos olhos, e nos dê [a graça] de liderar os que são corretos”. Em outro trecho, lê-se: “Ó Deus, meu senhor! Mande-nos do céu uma mesa rica em provisões que seja suficiente para o primeiro e o último dos nossos” (REIS, 2003, p. 201). Para além do desejo de liberdade, estes escritos têm um grande significado político e cultural, pois mostra que as línguas e a literatura africana faziam parte de um conjunto orgânico de sociabilidade nas senzalas. Ao construir circuitos literários entre os negros recém-chegados e os que aqui estavam há algum tempo, os malês produziram formas próprias de solidariedade. As línguas nativas misturados com o português foram instrumentos usados para exprimir as angustias e desejo por liberdade. Desenvolveu-se, assim, novas maneiras de ver o mundo, códigos sociais que eram incompreensíveis aos feitores e senhores. A imposição cultural dos portugueses, neste sentido, não pôde ser absoluta. As celebrações religiosas que inculcavam não apenas valores cristãos, mas também as formas de dominação colonial e o monopólio da língua tiveram que se ceder as influências das crenças e costumes dos povos africanos e indígenas.

Neste sentido, é fundamental historicizar as formas de sociabilidade que emergiram a partir da constituição da ideia de raça e do racismo. Este ponto de vista é um dos modos legítimos de estudar a existência de indivíduos que foram incorporadas pelo uso da força a uma ordem social que os transformou em propriedade de outros indivíduos. Por isso, é necessário aprofundar o conhecimento sobre a história e cultura africana para compreender de que forma as vidas e costumes dessas pessoas foram ressignificadas nas Américas. Um formalismo excessivo, por muito tempo negou validade aos estudos sobre as culturas e sociedades africanas e sua relação com a América portuguesa, como se fosse possível descobrir entre “nós” um estado ideal de começo absoluto. Por um lado, essa atitude se explica pela internalização das estruturas mentais incutidas pelo mito da democracia racial. Por outro, deve-se a generalização do conceito de indivíduo na modernidade, que tomou o europeu como centro de gravidade e reduziu negros e negras a uma ficção de cariz biológico tornando-os homens-objeto e mulheres-objeto.

Por isso, relembrar a travessia é um exercício de reflexão e bússola para aprofundar a descolonização até mesmo nossas mais habituais formas de pensar. Seguimos em luta, sempre!


Referências

  • FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 50ed. São Paulo: Editora Global, 2005.
  • MBEMBE, Achille. Crítica a Razão Negra. Lisboa: Editora Antígona, 2014.
  • REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • SLENES, Robert W. (1992). “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, (12), 48-67.

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