É preciso refundar a República

Construir uma alternativa de esquerda combatendo as “castas” corruptas e o ajuste contra o povo.

Secretariado Nacional do MES 8 mar 2016, 21:02

O texto que reproduzimos aqui é uma Resolução Política do Secretariado Nacional do Movimento Esquerda Socialista (MES-PSOL) publicada no dia 8 de março de 2016.

É preciso refundar a República: construir uma alternativa de esquerda combatendo as “castas” corruptas e o ajuste contra o povo

A  deflagração da 24ª fase da Operação Lava Jato acelerou mais uma vez a crise do regime político, que se arrasta há meses, colocando agora no centro do debate a relação entre Lula e as maiores empreiteiras do país. A semana que sacudiu o Brasil começou com o Supremo Tribunal Federal acatando as denúncias de corrupção contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Na sequência, soube-se do acordo entre Dilma (PT), Serra (PSDB) e Renan Calheiros (PMDB) para entregar às multinacionais, em novos leilões, o petróleo do pré-sal, terminando com a presença obrigatória da Petrobrás na exploração desses campos. Ao mesmo tempo, a imprensa vazava as denúncias da provável delação premiada de Delcídio Amaral, outrora poderoso líder do governo no Senado, além de ex-diretor da Petrobrás no governo FHC. Finalmente, na sexta-feira 4/03, o país amanheceu com Lula no centro das investigações da Polícia Federal.

A desordem atinge, sobretudo, o Congresso Nacional e o governo federal, e a impressão geral é de que ainda não se chegou ao fundo do poço das crises econômica e política, que se alimentam mutuamente. Enquanto o noticiário político incendiava-se, foi divulgada a retração de 3,8% do PIB brasileiro em 2015. No período, cerca de 1,5 milhão de postos de trabalho foram fechados. Em janeiro, o desemprego chegou, segundo dados do IBGE, a 7,6% no país (nas capitais e regiões metropolitanas a taxa é muito maior), o pior índice desde 2009. Especula-se que ainda em 2016 a taxa de desempregados supere os 10%. A juventude sente o desemprego de forma ainda mais dramática. Na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, o desemprego entre jovens de 16 a 24 anos de idade alcançou 28% em 2015. A inflação, por sua vez, segue corroendo o salário dos trabalhadores. Após um ano de duro tarifaço e desvalorização da moeda, a inflação medida pelo IPCA alcançou 10,67% em 2015, a maior alta de preços desde 2002, mostrando que o arrocho salarial é uma das apostas do governo e dos patrões para sair da crise. Os analistas e economistas burgueses já começam a falar em quebradeira generalizada de empresas nos próximos meses. Nesse grave cenário, Dilma e seu novo ministro Nelson Barbosa apresentaram ao Congresso escandalosa proposta de congelamento do salário mínimo e dos salários do funcionalismo público caso a meta de superávit primário para pagamento dos juros da dívida não seja alcançada. Diversos governos estaduais, como os de Sartori (PMDB-RS), Pimentel (PT-MG) e Pezão (PMDB-RJ) têm sistematicamente atrasado salários do funcionalismo e atacado diretamente categorias como os professores, no que foram acompanhados pelos tucanos Alckmin (SP) e Beto Richa (PR) em 2015. Governo e oposição de direita unem-se no desejo de que o povo e os trabalhadores paguem pela crise.

A rapidez dramática com que se desenvolvem os acontecimentos mostra como o regime político brasileiro, seus partidos tradicionais e instituições deterioram-se e caem em descrédito, cada vez mais incapazes de resolver ou mesmo atenuar as crescentes dificuldades e sofrimento do povo. Tais elementos reforçam nossa caracterização de documentos anteriores, a saber: estamos diante do fim de um ciclo político, de crise e destruição do regime da Nova República e de falência do projeto de poder do Partido dos Trabalhadores.

O cerne da atual crise política encontra-se nos efeitos da crise econômica mundial sobre o Brasil e sobre o projeto de conciliação de classes promovido por um governo que, ao longo dos últimos 13 anos, tem gerenciado os interesses de seus principais aliados banqueiros, além de empreiteiras e do agronegócio. Um projeto que vai além do governo e que pode também ser visto nas viagens de Lula como garoto-propaganda e lobista para promover a expansão dos negócios das empreiteiras para a África e a América Latina. Das 30 viagens internacionais feitas do período de 2011 a 2013 por Lula, quase metade foi paga por Odebrecht, Camargo Correa e OAS. Em abril de 2013, Marcelo Odebrecht, agora condenado a quase 20 anos de cadeia por corrupção, chegou ao ponto de escrever artigo (com título “Viaje mais, presidente”) no jornal Folha de S. Paulo para tentar justificar o que ele então chamava de “patrocínio” a Lula. Ao mesmo tempo, R$ 20,7 milhões foram doados pelas mesmas empreiteiras entre 2011 e 2014 para o Instituto Lula, além de mais R$ 10 milhões em pagamentos por palestras do ex-presidente.

Independentemente do que ainda mostrem as investigações, está claro que o projeto de poder do PT, com seus sócios prioritários do PMDB, sempre esteve a serviço dos ganhos dessas empresas. O financiamento milionário de campanhas do PT, o escândalo de pilhagem da Petrobrás e as benesses que favoreceram dirigentes petistas como Lula e José Dirceu apenas escancaram o funcionamento da engrenagem que tem movido o governo ao longo dos últimos anos, em benefício dos lucros de banqueiros, grandes empreiteiras e do agronegócio. Esse projeto, agora em seus estertores, demonstra dia a dia seu rápido esfacelamento.

Não há dúvidas sobre a parcialidade da grande mídia e da justiça a respeito dos processos de investigação. A espetacularização das denúncias dos aliados do governo, enquanto são abafados outros escândalos, é evidente, como demonstram a morosidade da justiça e a seletividade com que a imprensa aborda, por exemplo, o desvio de verba da merenda ou o bilionário “trensalão”, envolvendo dirigentes do governo do PSDB paulista. A falta de isonomia pode ser destacada na abusiva “condução coercitiva” de Lula exercida pela Polícia Federal. No entanto, como bem destacou o PCB em sua nota sobre o caso, “esta parcialidade não é um fato isolado. Para a maioria da população trabalhadora, principalmente jovem e negra, toda abordagem pela polícia é sempre coercitiva e sem qualquer formalidade, assistência jurídica e muito menos o ‘devido processo legal’ (…)”. Em 13 anos, infelizmente, o PT no governo nada fez para modificar esta situação. Pelo contrário, recentemente, de mãos dadas com a oposição de direita, o governo aprovou o projeto de lei “antiterrorismo” que ameaça os movimentos sociais e lutadores brasileiros.

O PSOL tem uma posição unânime de oposição de esquerda ao governo. Em nosso partido, há importantes elaborações sobre a natureza da crise e sobre as tarefas do período. Em nota pública, a tendência Ação Popular Socialista afirma com muita correção: “alertamos aos movimentos populares e a todos os militantes que continuam de esquerda a não aceitarem a exploração desse fato pelo PT, na forma de vitimização de Lula, com vistas a esconder o conjunto de suas ações pró-imperialistas, capitalistas e latifundiárias, e a ensaiar o início de sua campanha às eleições de 2018”. É impressionante como um partido que dirige o país há 13 anos se diz vítima do que seria um “Estado de exceção”, após ter contado no período com significativa base no parlamento, além de ter apontado 8 dos 11 ministros do STF, 6 dos 7 ministros titulares do TSE e 26 dos atuais 31 ministros do STJ. O mesmo governo que se diz vítima de um “golpe midiático” distribuiu, até junho de 2015, R$ 22 bilhões em publicidade estatal, dos quais impressionantes R$ 6,2 bilhões foram direcionados ao Grupo Globo.

É tarefa da esquerda socialista digna deste nome exigir punição a todos os corruptos e corruptores, denunciar a seletividade e ser protagonista de todas as lutas contra os governos, independentemente de qual partido político os dirija, que promovem ataques ao povo e protagonizam escândalos de corrupção. Não vacilaremos em enfrentar aqueles que se dizem de esquerda e governam como a direita da mesma forma como sempre combatemos a própria direita. Exemplos abundam: de passagem, basta relembrar a luta realizada pelo PSOL gaúcho contra a governadora Yeda Crusius (PSDB-RS), o combate sem tréguas contra Renan Calheiros e José Sarney, além da atual e incisiva campanha, que reivindicamos, do movimento “Juntas!” contra Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

O combate à corrupção, vale lembrar, não é simplesmente fruto espontâneo do progresso das instituições judiciais envolvidas. O atual papel do Ministério Público é produto de lutas passadas, dos anos 80, algumas das quais foram inscritas na Constituição de 88. Mais recentemente, um novo e impressionante processo social – o levante juvenil e popular de junho de 2013 – provocou um avanço institucional limitado, mas real: a delação premiada para os casos de corrupção. Foi a própria Dilma, na tentativa precária de responder ao levante, quem propôs e sancionou a medida. Não foi apenas a crítica ao sistema político e à péssima qualidade dos serviços públicos que esteve em questão naquelas manifestações. Também estiveram presentes inquietações por medidas concretas de combate à corrupção. A consciência adquirida pelo povo, que saiu às ruas e não aceita mais a espoliação promovida pela “casta” das elites política e econômica, é uma herança a ser reivindicada. A inaudita prisão e condenação de executivos das maiores empreiteiras do país só pode ser entendida a partir desse novo patamar. Por isso, devemos evidenciar a luta contra a corrupção e exigir que as investigações sejam e concluídas o mais rápido possível, sem parcialidades e com as consequências que a sociedade espera.

O desfecho desse processo ainda não é claro. No entanto, em qualquer dos cenários especulados pela burguesia – impedimento de Dilma pelo Congresso, cassação da chapa PT/PMDB pelo Tribunal Superior Eleitoral ou manutenção de um governo fragilizado até o final de seu mandato – será o povo, infelizmente, quem pagará a conta. A tendência é a imposição de um plano de austeridade ainda mais duro, além da retirada de direitos, como já apontam os cortes em programas sociais e a nova reforma da previdência, reivindicada igualmente pelo governo e pela oposição de direita. Não à toa, a maioria do povo segue atônita diante dos acontecimentos, sem que haja uma resposta concreta que termine a farra com dinheiro público, que inunda o noticiário ao mesmo tempo em que a falência da saúde e da educação públicas, em todo o país, atinge níveis dramáticos.

O agravamento da crise econômica e o colapso do regime político mostram, como dito anteriormente, a derrocada de um projeto de poder incapaz de atender as necessidades do povo. Por isso, a nota da coordenação do MTST, para nós, aponta na direção correta, ao não apresentar nenhuma expectativa no governo Dilma, que vai cada vez mais à direita, além de propor como tarefas a mobilização popular, a luta contra o ajuste e contra a retirada de direitos do povo trabalhador. Nesse momento, estes devem ser os eixos de mobilização da classe trabalhadora e da esquerda socialista: a defesa dos interesses, reivindicações e direitos do povo, além do combate ao ajuste fiscal e à reforma da previdência. Deve-se defender investigação não seletiva e transparente de todos os casos de corrupção, e punição aos corruptos e corruptores.

É preciso exigir que o governo federal pare de restringir o acesso ao seguro-desemprego e proponha imediatamente um plano de emergência via Medida Provisória que amplie para 1 ano o recebimento deste benefício para os trabalhadores colocados na rua pelo patronato, que utiliza a crise para ampliar a produtividade através do corte da força de trabalho e intensificação para os que ficam nas empresas. Tal cenário é nefasto porque, com o aumento do desemprego e da insegurança, os novos acordos salariais tendem a ser sempre prejudiciais à classe e mesmo inferiores à inflação. Por isso, um plano de emergência à crise, com força de lei, deveria estabelecer que todos os acordos salariais no mínimo reponham a inflação. Ao mesmo tempo, como forma de reverter a escalada do desemprego, o governo deveria terminar com a política de ajuste fiscal para manter os pagamentos da dívida e implantar um vasto programa de obras públicas para absorver mão-de-obra, focado na recuperação da infra-estrutura brasileira e em transporte público sobre trilhos nas grandes cidades, uma das mais agudas necessidades do povo. É preciso, também, estimular e apoiar as mobilizações de trabalhadores desempregados que, com a intensificação da crise, logo tomarão as periferias das cidades brasileiras. Salário mínimo, aposentadorias e o funcionalismo público devem receber aumento real, como forma de recuperar poder de compra e o nível de vida das famílias trabalhadoras. Tudo isso está na contramão das medidas propostas por Dilma, cujo governo estimula lay-offs e redução de jornada com redução de salário subsidiados pelo Estado para reduzir as perdas do capital.

Segue tendo grande importância denunciar e combater as medidas tomadas por um Congresso dirigido por Eduardo Cunha, corrupto notório e porta-voz dos setores mais reacionários da sociedade. Também por isso, somos contrários à proposta em curso de impeachment de Dilma, levada a cabo por parlamentares como Cunha e outros assemelhados, que dominam o parlamento e estão completamente desmoralizados e sem qualquer credibilidade diante do povo. Um governo Temer, surgido nessas condições, evidentemente não traria qualquer melhora ao povo.

A discussão entre os ativistas e organizações populares sobre a necessidade urgente de outra ordem política pela qual lutar amplia-se. Por isso, propomos a retomada do debate e da luta por uma Assembleia Nacional Constituinte Popular. O próprio governo Dilma em junho de 2013 cogitou a realização de uma constituinte para realizar uma reforma política, mas a abandonou covardemente em menos de 24 horas pela pressão do PMDB. A única “reforma” que avançou foi imposta por Eduardo Cunha para restringir o tempo de debate político durante as eleições e retirar espaço dos partidos socialistas e da verdadeira esquerda. Nossa proposta de Constituinte tem o objetivo oposto ao dos políticos tradicionais: trata-se de refundar a República para combater a corrupção sistêmica e o poder do capital.

Sabemos que o país ainda não tem uma alternativa popular e de esquerda com peso de massas. É fundamental fortalecer um campo que realize este projeto e lute em defesa dos direitos do povo e da juventude. Além das agitações e mobilizações do próximo período, este novo setor terá uma tarefa fundamental que é a de apresentar-se nas eleições municipais também a partir da luta local. No avanço da luta pelo poder local, mesmo nos limites de prefeituras, combinando-a à ação direta e à auto-organização popular, é possível levar adiante a construção de uma alternativa nacional que supere o projeto falido de conciliação de classes promovido pelo PT, apresentando-se como alternativa de poder para enfrentar os grandes capitalistas e seus aliados. A serviço dessa tarefa, seguimos dedicando nossas forças.


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Pedro Micussi