Os socialistas e as eleições – um debate atual

Como os revolucionários devem lidar com o parlamento e os desafios que se abrem a partir da possibilidade de vencer a eleição para a prefeitura de Porto Alegre com Luciana Genro.

Camila Goulart e Israel Dutra 26 jul 2016, 23:57

Estamos às vésperas de mais um processo eleitoral. Nesse caso, esse será mais do que especial. Vale lembrar a anedota que conta nosso deputado Pedro Ruas, a do radialista que na falta de comentar algo novo nas eleições sempre lembra que essa eleição será “atípica”, na verdade reafirmando que toda eleição é “tipicamente atípica”. Não só apenas pelas novas regras eleitorais e a lei da mordaça, mas especialmente pela crise no regime implantada por Junho de 2013 e intensificada pela Lava Jato, além da crise econômica vigente no país de forma intensa há três anos.

Podemos afirmar que essa eleição de 2016 estará marcada por elementos inéditos: 1) a chance uma candidata socialista vencer as eleições em Porto Alegre; 2) uma candidatura majoritária competitiva na capital do principal Estado do país; 3) a imprevisibilidade que o turbulento cenário nacional nos impõe; e 4) a construção do PSOL como alternativa em dezenas de cidades no país.

Como parte do processo de formação marxista que estamos realizando, queremos apresentar nesse texto um debate de mais fôlego acerca do significado da disputa eleitoral para os socialistas, como forma de renovar e discutir, à luz do século XXI, uma de nossas principais esferas de atuação.

Os socialistas e as eleições: oportunidade para falar com as massas

Qual seria um bom ponto de partida para discutir as eleições? Vale a pena retomar o conceito de que as eleições são um espelho distorcido dos conflitos entre classes e setores sociais distintos. Como espelho distorcido, refletem de forma particular os anseios e conflitos que a sociedade pulsa cotidianamente. Esta definição é muito importante. A luta dos trabalhadores e da juventude, historicamente, é para representar politicamente os interesses dos “de baixo”. E é a esquerda radical, no caso do Brasil através do PSOL, que defende e levanta esses interesses. Por isso é tão importante o programa. Voltaremos a ele mais adiante.

A sociedade se organiza em classes sociais – mesmo dentre as classes temos setores diferentes e heterogêneos – e estas expressam diferentes interesses. E, portanto, diferentes pensamentos e propostas. Os partidos burgueses usam as eleições para garantir sua estabilidade e dominação. Votam leis no parlamento de acordo com seus interesses. Atuam nas câmaras das cidades para viabilizar o lucro dos setores que os financiam. No âmbito nacional, defendem medidas que sempre levem em conta os interesses dos grandes capitalistas e seus aliados. Por isso, dizemos que os partidos burgueses representam e expressam as classes capitalistas no terreno da política.

Podemos citar dois exemplos recentes: a) as inúmeras denúncias na operação Lava Jato mostram de forma didática como funciona o esquema de financiamento e corrupção: os grandes capitalistas, em um oligopólio chamado de “clube das empreiteiras”, garantiam contratos milionários através da ação do poder público e retribuíam com financiamento legal e ilegal das campanhas eleitorais, um esquema do qual se beneficiaram todos os grandes partidos da chamada “casta” política; b) o circo que significou a votação do impeachment desnudou aos olhos de milhões o que vínhamos falando há tempos: a grande maioria dos representantes eleitos obedece a uma lógica de seus interesses particulares. O show de horrores só confirmou isso.

A desigualdade no processo eleitoral é flagrante. Para apoiar os partidos burgueses tradicionais, a direita utiliza como linha auxiliar os setores vinculados a grupos particulares, no seio da própria burguesia ou de grupos de interesse. Bons exemplos são a direita que se organiza na bancada ruralista (representa os interesses do latifúndio e do agronegócio), na bancada da “bala” (representantes militares de caráter conservador que atuam sobre a classe média assustada com o medo da insegurança pública) e a bancada fundamentalista (ligados a algumas igrejas evangélicas – aqui temos que ter muita atenção para não confundir o fundamentalismo com as parcelas da classe trabalhadora que são religiosas num país como o nosso).

Portanto, os partidos burgueses controlam o processo eleitoral através de seus postos no “sistema”, no financiamento legal e ilegal e nas leis draconianas, que garantem a desigualdade entre os partidos. Um dos atos mais importantes de Eduardo Cunha, sancionado por Dilma, foi aprovar a contrarreforma política, conhecida como “Lei da Mordaça”, que restringe o tempo de tevê e o acesso ao debate para partidos com menos de nove deputados federais.

Ou seja, o controle da burguesia sobre os processos eleitorais distorce seus resultados. Porém, nas eleições, como parte da luta política da sociedade, existem também brechas. A luta do povo brasileiro na resistência, no ascenso operário do ABC entre 1978-82 e na campanha por Diretas Já derrotou a ditadura civil-militar. Hoje temos um regime com maiores possibilidades do que naquele controlado pelos militares: temos liberdade de associação, os socialistas podem se organizar, defender suas ideias e eleger seus representantes. No regime militar, apenas dois partidos concorriam às eleições: a ARENA e o MDB, uma oposição consentida. Não havia direito de voto para prefeitos, governadores e presidente. Ou seja, uma ditadura que perseguia, torturava e matava seus opositores como política de Estado.

Na presente conjuntura histórica, estamos vivendo sob a crescente demanda por democracia real e o esgotamento dos modelos tradicionais dos partidos burgueses e também dos partidos reformistas tradicionais.

Junho de 2013 colocou o Brasil na rota dos indignados. Essa foi uma definição muito importante para nossa ação política. Desde 2011, com a queda das ditaduras históricas no mundo árabe e o 15-M na Espanha, a onda dos indignados avançou no mundo. Sua principal demanda era a de “Democracia Real”, ou seja, que as eleições e os processos decisórios da sociedade possam ser mais abrangentes, democráticos e participativos.

No Brasil, tivemos uma conjuntura complexa, em razão da própria construção política nacional e do peso do PT. Entretanto, tanto no terreno social como no político, vimos se expressar a demanda por uma democracia dos “de baixo”. O movimento em torno da campanha de Luciana Genro e o reconhecimento que o PSOL está ganhando nas ruas e nas redes são grandes sintomas.

A realidade mundial também nos mostra outros exemplos

O exemplo espanhol é o mais conhecido. Depois de anos em que se alternavam dois partidos – o socialdemocrata e o conservador – irrompeu, a partir dos indignados, uma alternativa, nova em forma e conteúdo: o Podemos. Começou elegendo cinco deputados para o parlamento europeu1 e deu um salto de qualidade nas eleições municipais, onde participou de confluências e alianças que venceram em cidades como Barcelona, Madrid, Cadiz, Zaragoza, etc. Hoje, disputa com chances reais de ter a candidatura de Iglesias como a mais votada nas próximas eleições gerais, que acontecem no dia 26 de junho2. Temos dois exemplos em países centrais: a vitória de Corbyn nas internas do partido trabalhista inglês e o contágio do fenômeno Bernie Sanders. Apesar das suas limitações programáticas, são dois exemplos de como as ruas podem se expressar nas urnas.

Na América Latina, nas eleições peruanas, chamou a atenção a participação de Veronika Mendoza, jovem candidata que conseguiu unificar a esquerda na Frente Ampla, junto aos movimentos sociais, saindo de 2% para quase chegar ao 2º turno com pouco menos de 20% das intenções de voto. O Bloco de Esquerda português foi a grande novidade no ano passado, comandado por duas mulheres, Marisa Matias e Catarina Martins3.

Estamos assistindo ao fortalecimento de novas alternativas de esquerda em várias partes do mundo: Irlanda, Escócia, entre outros. Mas também se fortalecem, como expressão da polarização em curso, alternativas de direita por fora dos partidos tradicionais, como Trump nos Estados Unidos.

No Brasil, o novo ciclo político pós-PT vai ter seu primeiro teste nas eleições municipais, na qual será testada a representação do social e do político como ecos de junho.

Porto Alegre, como se sabe, é uma cidade-referência para o conjunto da vanguarda mundial. Há menos de duas décadas se projetou como exemplo de democracia participativa e como espaço mundial por conta do Fórum Social Mundial. Também foi a capital da resistência em 1961, onde a partir da cadeia de legalidade, encabeçada por Leonel Brizola, se derrotou a tentativa de golpe civil-militar. Portanto, carrega um legado enorme. Na história recente, Porto Alegre antecipou parte do que seriam as Jornadas de Junho, quando uma mobilização multitudinária da juventude derrotou a proposta da prefeitura de aumentar as tarifas do transporte, no mês de abril, portanto, dois meses antes da explosão de Junho em São Paulo. E, naquela ocasião, houve uma combinação particular da ação do movimento de massas com a política do PSOL: a bancada de vereadores do Partido na capital ganhou a causa jurídica que determinou o retorno da tarifa ao preço anterior.

Conceitos para entender a disputa eleitoral: Estado, regime e governo

Para compreendermos a disputa política travada dentro da lógica capitalista no processo eleitoral, faz-se necessária uma retomada dos conceitos marxistas de Estado, regime e governo. Muitas vezes o desconhecimento ou mesmo a má fé na utilização deles leva a análises equivocadas ou a erros históricos. O Estado pode ser definido como uma organização ou uma ferramenta composta por um conjunto de instituições que são comandadas por uma determinada classe social para explorar outras. E o caráter desse Estado se define por que classe é essa. No caso do capitalismo, o Estado é comandado pela burguesia. Logo, podemos defini-lo como um Estado burguês. Para a burguesia comandar, iludindo os explorados, propagandeia que o Estado representa de igual forma a todos. Mas não nos enganemos, ele segue sendo utilizado pela burguesia para explorar a classe trabalhadora. A classe que domina o Estado pode fazer isso de diferentes maneiras, utilizando com mais ou menos peso distintas instituições.

A forma como essa classe domina é o que define o regime politico, que pode mudar dependendo do período, sem alterar o caráter do Estado. Num Estado burguês, podemos ter um regime mais ou menos democrático. Na ditadura civil-militar brasileira, por exemplo, o Estado era burguês e o regime, sustentado pelos militares e empresários, era autoritário. Num mesmo regime, podemos ter diferentes governos. O governo corresponde a que pessoas e partidos estão à frente de um Estado e de seu regime político. Como afirmou Moreno,

“Em síntese, o Estado é ‘que’ setor social governa, que classe social tem o poder. O regime é ‘como’ governa esta classe, em um dado período; através de quais instituições e articuladas de que forma. O governo é ‘quem’ exerce o poder num dado momento; quais as pessoas, grupos de pessoas ou partidos são a cabeça, os que tomam as decisões nas instituições do regime e do Estado”4.

Analisando o caso brasileiro, podemos afirmar que vivemos num Estado burguês, que passou por uma transição no período de 1985-88 de um regime ditatorial para um regime democrático-burguês alicerçado no funcionamento do Executivo presidencialista, de um sistema legislativo bicameral e do judiciário com relativa autonomia entre os poderes. Nosso regime democrático é marcado pela utilização do poder econômico. Apesar da aparência da representação popular, os parlamentos e governos geralmente representam as classes dominantes, com parcos espaços de democracia direta, exceto o voto. Nas eleições isso se dá de forma muito concreta. Vide exemplo da contrarreforma eleitoral, que foi mencionada acima. Apesar disso, as eleições, mesmo que com regras injustas, são um importante espaço de disputa política, no qual os socialistas historicamente se apresentam para disputar um projeto que represente os trabalhadores. Justamente pelas regras serem sempre e cada vez mais prejudiciais a estes, muitos trabalhadores são enganados e acabam por eleger – seja por compra de votos, por falta de informações e conhecimento – representantes da burguesia.

Essa contradição ficou evidente no show de horrores que foi a votação da Câmara dos Deputados sobre o impeachment. As pessoas que assistiram não se sentiram representadas pela ampla maioria dos deputados federais. Mais do que isso: ficaram horrorizadas com o que viram. Foi o fechamento de um ciclo. Do ponto de vista da construção de um projeto da esquerda socialista é necessário analisarmos como o PT, um partido que nasceu das lutas do final da década de 1970 e inicio dos anos 1980 por democracia, se transformou em um partido da ordem, num partido do regime. Nessa questão, é importante pensar que no auge do petismo, que no seu governo combinou uma política econômica neoliberal com políticas sociais, a chamada governabilidade no Congresso Nacional passou pela aliança entre o PT e partidos burgueses que, naquele triste domingo, demonstraram a sua natureza conservadora e reacionária. A conciliação de classes que existiu por 13 anos não resistiu à séria crise econômica em que estamos e os aliados de ontem se transformaram, por sua natureza de classe, nos algozes de Dilma. O modo petista de governar chegou ao seu limite. Governar com as empreiteiras, em aliança com partidos do regime e sem contestar a grande mídia, significa estar do lado contrário dos interesses dos trabalhadores e da juventude. Se é verdade que o Estado serve para garantir a exploração de uma classe por outra, ao se incorporar ao regime democrático-burguês, o PT traiu seu programa fundacional e os trabalhadores, sua antiga base de sustentação.

As eleições ao longo da história: a luta da classe trabalhadora e das mulheres pelo sufrágio universal

As grandes revoluções burguesas deixaram um legado importante: a ruptura com o domínio da nobreza e do clero e sua forma prioritária de regime, a monarquia e o absolutismo. A Revolução Francesa foi a expressão mais bem acabada da utopia burguesa de “liberdade, igualdade, fraternidade”. Por sua radicalidade, com as massas insurgentes combatendo contra o rei, a Revolução Francesa abriu uma nova época na humanidade, na qual a democracia começava a ser ampliada sob bandeira da razão e da liberdade, desferindo um golpe na ideia da vontade divina no governo de todo o povo, encarnado num déspota (monarca).

Pelas suas limitações enquanto classe, a burguesia não pôde concluir sequer sua promessa de programa. Seu caráter progressivo foi rapidamente se transformando num caráter reacionário. Assumiu as rédeas da sociedade e como classe dominante não só não aprofundou a democracia liberal como integrou e realizou compromissos com parcelas da monarquia e na nobreza, dando sobrevida aos impérios até a I Grande Guerra, já no século XX.

Com a limitação histórica da burguesia, restou à classe trabalhadora encarnar as esperanças de democratização e de participação da grande massa do povo. Ampliaram-se, ao longo da história, os conflitos ao redor da luta pelo direito ao voto para o conjunto da sociedade. O que poucos sabem é que foi a classe trabalhadora, com sua luta, que conquistou esse direito. Os primeiros movimentos de trabalhadores combinaram lutas reivindicativas com lutas políticas. Antes mesmo de Marx lançar o Manifesto Comunista (1848), a classe operária lutava pelo direito ao voto, ao sufrágio universal. Na França e na Inglaterra dos anos 30 do século XIX, o centro da luta era a expansão da democracia através do voto operário. Foi organizada a Associação dos Operários pelo voto universal. Com a elaboração de uma carta de reivindicações, o movimento foi batizado de “Cartista”. O cartismo ganhou força em todo território inglês, incorporando a sua plataforma a luta pela diminuição da jornada de trabalho, abolição da lei dos pobres e de proteção às crianças.

Marx saudou o cartismo afirmando que a realização dos seis pontos “políticos” de seu programa levariam a uma grande vitória dos trabalhadores da Inglaterra, que poderiam abrir o caminho para grandes momentos da humanidade. Os pontos a que se referia Marx eram medidas como: a igualdade do peso dos votos entre os distritos; supressão do censo exigido dos candidatos do Parlamento (que limitava essa possibilidade somente a burguesia rica e à nobreza); o voto secreto; eleições anuais e salário para os membros do Parlamento (antes somente os ricos possuíam condições de exercer a atividade política sem receber). Tais medidas se articulavam com a luta geral pelo sufrágio universal.

Um salto na organização da luta política dos trabalhadores se verificou com a composição das primeiras organizações de caráter revolucionário e comunista. Muitos tomam como certidão de nascimento o documento conhecido como Manifesto Comunista, escrito por Marx e Engels. Naquele documento histórico e até hoje atual, além dos aspectos gerais de análise minuciosa da marcha da humanidade e da luta de classes como motor da história, está muito presente a ideia da luta da classe trabalhadora como uma luta política. Justamente o ano de 1848 em que a Europa conhece um amplo movimento democrático visando à abertura política dos regimes, muitos com formas ainda monárquicas e híbridas. Aquele fatídico ano ficou conhecido como ano da “Primavera dos Povos” pela luta democrática no continente europeu.

Engels registra a história inicial da luta da classe trabalhadora, em sua busca por representar-se politicamente, no texto Para a história da Liga Comunista, e nos fornece uma boa imagem dessa trajetória e da polêmica com grupos que menosprezavam as conquistas democráticas, como Proudhon e outros anarquistas:

“Mas, provava-se agora que a Liga tinha sido uma excelente escola de actividade revolucionária. […] Do mesmo modo em Hamburgo. Na Alemanha do Sul, o predomínio da democracia pequeno-burguesa barrava o caminho. Em Breslau, Wilhelm Wolff esteve activo com grande sucesso até ao Verão de 1848; […] Nas publicações oficiais desta associação circulam por isso perspectivas defendidas também no Manifesto Comunista à mistura com reminiscências corporativas e desejos corporativos, restos de Louis Blanc e Proudhon; em suma, queria-se agradar a toda a gente. Especialmente, eram postas em andamento greves, associações de ofícios, cooperativas de produção e esquecia-se que se tratava, antes do mais, de, por vitórias políticas, conquistar o terreno a partir do qual somente, com o tempo, semelhantes coisas são realizáveis”5.

O modelo mais próximo da democracia direta, a primeira experiência da classe trabalhadora na direção da administração pública viria ser o grande levante da Comuna de Paris. No ano de 1871, na moderna Paris, vivia-se o primeiro governo operário da história. Entre suas principais realizações foram listadas as seguintes: residências vazias foram desapropriadas e ocupadas; a jornada de trabalho foi reduzida; os sindicatos foram legalizados; instituiu-se a igualdade entre os sexos; o monopólio da lei pelos advogados, o juramento judicial e os honorários foram abolidos; testamentos, adoções e a contratação de advogados tornaram-se gratuitos; o casamento tornou-se gratuito e simplificado; a pena de morte foi abolida; o cargo de juiz tornou-se eletivo; a igreja deixou de ser subvencionada pelo Estado e os espólios sem herdeiros passaram a ser confiscados pelo Estado; a educação tornou-se gratuita, laica e compulsória; escolas noturnas foram criadas e todas as escolas passaram a ser de frequência mista.

Com a palavra, o próprio Karl Marx descreve os feitos da Comuna:

“O poder de Estado, que parecia planar bem acima da sociedade, era todavia, ele próprio, o maior escândalo desta sociedade e, ao mesmo tempo, o foco de todas as corrupções. […] O primeiro decreto da Comuna foi pois a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo em armas.

A Comuna era composta por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos diversos bairros da cidade. Eram responsáveis e revogáveis a todo o momento. A maioria dos seus membros eram naturalmente operários ou representantes reconhecidos da classe operária. A Comuna devia ser, não um organismo parlamentar, mas um corpo activo, ao mesmo tempo executivo e legislativo. Em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente despojada dos seus atributos políticos e transformada num instrumento da Comuna, responsável e revogável a todo o momento. O mesmo se deu com os outros funcionários de todos os outros ramos da administração. Desde os membros da Comuna até ao fundo da escala, a função pública devia ser assegurada com salários de operários […].

Os funcionários da justiça foram despojados dessa fingida independência que não servira senão para dissimular a sua vil submissão a todos os governos sucessivos, aos quais, um após outro, haviam prestado juramento de fidelidade, para em seguida os violar. Assim como o resto dos funcionários públicos, os magistrados e os juízes deviam ser eleitos, responsáveis e revogáveis”6.

A derrota da Comuna de Paris levou o movimento operário a um refluxo ao final do século XIX. Contudo, a luta pela ampliação dos espaços de representação da classe não parou por aí. Um bom exemplo na arte está no filme “Daens, um grito de justiça”, que mostra a luta da classe operária belga para garantir seus direitos sociais e políticos.

O século XX mudaria completamente esse quadro, com a vitória da Revolução Russa e com a democracia ganhando novo sentido. Entravam em cena, pela primeira vez na história, organismos de poder direto dos trabalhadores em seus locais de trabalho e moradia. Eram os “sovietes” (em tradução livre, conselhos) de operários e soldados. Foi uma experiência muito importante, traída e deformada pelo stalinismo anos mais tarde. Esse debate é fundamental e será pauta de um novo curso/seminário.

As mulheres, como expressão da opressão do patriarcado, herança dos antigos regimes absolutistas que sob o capitalismo se aprofundou em diversos pontos, não tinham direito ao voto até meados do século XX na ampla maioria dos países. A luta das mulheres, com métodos de enfrentamento, organização de massas, choques violentos contra os patrões e o regime, marcou um novo tempo. O filme “As sufragistas”, lançado recentemente, retrata uma pequena parte dessa luta.

Sobre esse debate e o filme, que foi lançado no Brasil em meio ao ascenso que as mulheres estão protagonizando, sobretudo na juventude com a “Primavera das Mulheres”, reproduzimos trecho do artigo de Giovanna Marcelino, no especial que Juntas fez a respeito:

“O que foi a primeira onda do feminismo? Contexto histórico, econômico e social.

Iniciada no final do século XIX, a primeira onda do feminismo foi um conjunto de movimentações protagonizado por mulheres em torno da luta por igualdade política e jurídica entre os sexos. O eixo que marcou esse primeiro período de atividade feminista foi a reivindicação por direitos iguais de cidadania (direito à educação, propriedades e posses de bens, divórcio, etc.), tendo como auge a luta sufragista pelo direito ao voto feminino, que aconteceu em diversos países no mundo.

Seu surgimento pode ser lido como um sintoma de um cenário histórico específico. Enquanto movimento social é um fenômeno essencialmente moderno, relacionado ao contexto de profundas transformações no campo do trabalho, da cultura, do Estado e da vida nas cidades, que surgiram de forma efervescente na Europa após a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.

O pano de fundo das mobilizações da primeira onda do feminismo foi, portanto, o resultado dos desdobramentos produzidos por essa “dupla revolução” (econômica e política) nas sociedades europeias: o surgimento de um novo tipo de configuração social, a sociedade moderna. Ou ainda, a ascensão de um novo estágio do capitalismo – estágio que, como diz Marx no Manifesto Comunista, representa uma etapa do desenvolvimento histórico ao mesmo tempo progressista e contraditória em relação aos períodos anteriores, tendo em vista a combinação de aspectos positivos (urbanização, democratização, industrialização), com negativos (exploração, reificação, dominação).

Em termos econômicos, o nascimento dessa nova sociedade configurou um sistema que passava a concentrar a produção coletiva em fábricas, que se baseava pelo conflito entre classes (com a distinção entre trabalhadores destituídos de meios de produção e empregadores capitalistas) e que passava a incorporar mulheres e crianças como mão-de-obra barata. No âmbito político, houve a instituição democrática de uma comunidade de “cidadãos” livres possuidores de direitos sob a forma de Estados-Nação, bem como a consolidação de três correntes intelectuais e políticas, com visões de mundo divergentes sobre os rumos da sociedade emergente: o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo.

A princípio, as bandeiras levantadas pela primeira onda do feminismo foram convencionalmente identificadas com a luta das chamadas “feministas liberais”, mulheres de classe média e alta, na época inspiradas pelas noções de Estado e Democracia fomentadas pela Revolução Francesa e pela ideia de ampliação dos direitos presentes na “Carta de Declaração dos Direitos do Homem” às Mulheres.

Entretanto, como bem mostra o próprio filme As Sufragistas, recém lançado no Brasil, elas não foram as únicas protagonistas; foram parte da primeira onda, mas não representam seu todo. No cenário de profundas transformações econômicas e políticas que marcaram a época moderna, com o avanço da indústria e da exploração do trabalho, as mulheres trabalhadoras cumpriram um papel histórico importantíssimo. Este é, inclusive, um grande acerto do filme, pois ele retrata este importante marco da história de luta das mulheres através da narrativa das experiências de uma jovem trabalhadora, protagonista do filme, ao invés de seguir a perspectiva comumente difundida, de que o movimento sufragista foi feito pelas liberais burguesas”7

Brasil: democracia racionada e simulacro

Nosso país tem uma história marcada pela falta de canais democráticos. Marighella foi feliz ao classificar nossa democracia como “racionada”. Durante toda a sua história, nosso país teve mais um “simulacro de democracia” do que de fato sólidas instituições de representação da vontade popular. O Brasil de Cunha e Maranhão é também retrato de uma elite que preza muito pouco pela escuta das demandas da sociedade civil. Nossa pesada herança autoritária pode ser encontrada nos traços escravocratas e autoritários que atravessaram os séculos. Fomos um dos últimos países ocidentais a abolir a escravidão. A proclamação da República data de 15 de novembro de 1889.

Ao contrário do que setores da academia e do senso comum afirmam, o povo brasileiro não aceitou de forma passiva as manobras reacionárias da elite. O país sempre foi marcado por duros enfrentamentos, regionais, étnicos e de classe. As elites sempre usaram de diversas formas e métodos para rearranjar seus interesses: golpes militares, manobras e também “pactos por cima”, resolvendo as pugnas e conflitos de setores dissidentes sem incluir o povo como ator fundamental das decisões.

Da proclamação da República até Vargas em 1930 nosso país viveu a etapa conhecida como “República Velha”. Ali se institucionalizaram mecanismos de controle como o “voto de cabresto” e o domínio dos grandes proprietários de terra sob a gestão pública em grande parte do país: o “coronelismo”. Na República Velha, as principais frações de classe que davam as cartas eram os agropecuaristas de São Paulo e Minas Gerais, daí a derivado o binômio “café com leite”.

Uma das principais demandas articuladas por militares da baixa oficialidade, nos movimentos tenentistas, era o direito ao voto e a entrada na vida política nacional de contingentes dos setores militares, até então alijados do voto. O tenentismo foi um importante movimento que lutava por democratização e pela modernização das regras eleitorais, tendo um caráter progressista, de onde sairia Luiz Carlos Prestes, principal figura da esquerda e do partido comunista na primeira metade do século XX. Vargas, ao romper o pacto anterior das elites regionais, representou um contraditório movimento de duplo sentido: por um lado selou uma recomposição de pacto por “cima”, inclusive com traços autoritários e paternalista; por outro, acelerou a incorporação de reivindicações que modernizaram o sistema político nacional – o código eleitoral de 32 contava com medidas como a criação da Justiça Eleitoral, o voto feminino, o voto secreto e o sistema de representação proporcional.

O Brasil sempre teve democracia como excepcionalidade. A esquerda, na maior parte do século XX, foi proscrita e teve de atuar ou na clandestinidade ou na semi-clandestinidade. A presença de representantes comunistas nos debates para a Constituinte de 1946 foi efêmera. Logo, as elites desferiram uma lei para cassar os mandatos populares e da esquerda.

A conjuntura brasileira se acelerou no ano de 1961. A tentativa de golpe para sacar Jango, derrotada pelo levante da legalidade, acirrou a luta de classes. Durante três anos a luta por reformas de base opôs os setores mais reacionários da sociedade que, com o apoio do imperialismo, travou encarniçada batalha pela direção do Estado. O golpe civil-militar de 1964 foi o maior retrocesso da democracia brasileira no século XX. Vivemos uma longa noite de vinte anos, com atrocidades cometidas pelo terror de Estado, interrupção por completo de debates no seio da sociedade e um país controlado pelos militares sob a ideia de “Brasil: ame ou deixe-o”.

A entrada em cena da classe operária do ABC no final dos anos 70 rompeu o equilíbrio de forças entre as classes e uma vez mais com a demanda democrática de livre-associação, direito ao voto direto para presidente, combinado com lutas econômicas, abriu-se o cenário para irromper a luta democrática. A campanha pela anistia e retorno dos exilados e a criação de novos partidos – entre eles o Partido dos Trabalhadores – reforçaria o clima de esperança democrática.

A campanha das Diretas Já foi uma expressão do movimento de massas, com muita força da juventude, das classes médias e do ascenso que seguia no movimento operário e popular. Uma vez mais a burguesia utilizou a saída por cima, com a sua proposta de “reação democrática”, para descomprimir a pressão social. A unidade em torno da chapa Tancredo/Sarney, depois da derrota da emenda Dante de Oliveira, representou esse novo rearranjo. O PT, corretamente, convocou o boicote ao colégio eleitoral da eleição indireta, posição contrária das correntes stalinistas como o PCB e o PCdoB. A Constituição de 1988 representou um grande embate. Em meio a uma correlação de forças interessante ao movimento de massa, a Carta de 1988, trazia avanços sociais importantes como o SUS, porém sedimentava as posições do regime da Nova República, motivo pelo qual o PT decidiu não assinar a carta de conjunto, apesar de ter batalhado por emendas em diferentes áreas.

O atual modelo de sistema político é o que propicia a corrupção generalizada – que nada é mais do que o domínio de empresas e carteis sobre as decisões mais importantes do poder público. As grandes empresas controlam a política, seus representantes e dessa forma, podemos dizer que controlam a vida das pessoas. Exemplos não faltam: do clube das empreiteiras denunciado na Operação Lava Jato ao cartel das empresas de transporte público em Porto Alegre. A evolução dos privilégios pode ser anotada ao longo da história: a evolução das famílias/clãs às castas político-empresariais, nas quais os traços iniciais verificados no coronelismo ganham contornos modernos, sem mudar a lógica espúria que domina a política no Brasil. Por isso nossa democracia tem elementos de simulacro.

O papel de uma prefeitura do PSOL na construção de uma nova política

A crise do regime da Nova República é vista a olho nu. Depois da derrocada do 17 de abril e da consagração do processo de impeachment, ficou nítido para amplas massas que apenas um verdadeira revolução política no país poderia reverter a tragédia que a casta representa.

Tivemos um grande acontecimento que foram as Jornadas de Junho de 2013. Foi um primeiro ensaio geral que deixou como lição – dentro de suas múltiplas contradições – que a auto-organização da juventude e dos trabalhadores pode ser a ferramenta das conquistas. E que a rua é um espaço fundamental da disputa política.

Com a força do “espírito de junho”, disputaremos as próximas eleições de outubro. O PSOL vem ganhando espaço desde 2012 com a “Primavera Carioca” de Freixo; com o salto na sua simpatia entre a juventude; com a campanha de Luciana Genro em 2014; e, agora, com o derretimento do projeto do PT, pode ser visto como uma nova esquerda anticapitalista e combativa. Não será fácil, vide os debates sobre o conjunto da esquerda, dentro do próprio PSOL e do papel nefasto que ainda cumpre o PT para igualar os projetos supostamente de “esquerda”.

A chance do espírito de junho encontrar uma representação política é alargar o espaço para um terceiro campo na política brasileira, alicerçado nas mobilizações da juventude, onde o PSOL em geral e Luciana Genro em Porto Alegre tem papel central. Muitos ativistas nos questionam: “Mas, chegando ao poder, o PSOL não vai repetir os mesmos erros do PT? Vocês não vão aderir à lógica da governabilidade?”. Tais ponderações são mais do que naturais, num momento de confusão política. Fundamos o PSOL para ser uma nova política e uma nova esquerda. Bebendo das influências e das diferentes vertentes da tradição da esquerda brasileira, mas apresentando um projeto completamente inovador. Por isso rompemos com o PT em 2003, quando Lula e Dirceu expulsaram os “radicais” por causa da reforma previdenciária. Somos parte um outro projeto.

Não acreditamos que basta vencer uma prefeitura, eleger um vereador ou deputado e depois esperar sentados pelas transformações. O PT sustentou que o Brasil poderia mudar apenas com o slogan “Lula lá”. Para o PSOL brilhar, nossa estratégia terá inevitavelmente que ser outra.

Uma prefeitura de Luciana Genro vai articular movimentos sociais e políticos para além das fileiras do PSOL. Será uma prefeitura responsável por elevar o nível da luta política, ampliando sobretudo a capacidade de participação e debate popular. Porto Alegre tem um suporte e uma memória de experiências de participação popular. A ideia do Orçamento Participativo é viva, seu projeto inicial, ainda que na forma atual tenha se desvirtuado. Com a nova capacidade de integração tecnológica e colaborativa, uma experiência que se pensa como democracia direta tem ainda melhores condições para se transformar num êxito e numa referência internacional. Ajuda nesse caso também o fato de que o Fórum Social Mundial tenha sido um dos cartões de visita “políticos” da cidade na virada do século.

Se a experiência de um governo local pode incorporar as reivindicações e se transformar numa novidade, pode servir para acelerar a construção de um terceiro campo, hegemonizado pela nova esquerda anticapitalista, em parceria com outros setores. Isso quer dizer ter medidas concretas, articuladas com atores da própria cidade. Os planos de trânsito e mobilidade urbana serão construídos em conjunto com os agentes da EPTC. Para ampliar a qualidade do transporte público ninguém melhor do que os funcionários da Carris para ajudar na construção de uma proposta sobre toda a cidade. Acumulando diálogo com a comunidade e com a guarda municipal, pensar um modelo eficaz e integrado de segurança. Enfim, partir de medidas concretas para mudar a realidade concreta. Isto deve ser articulado com a luta geral para um novo Junho, por uma nova institucionalidade no Brasil, uma assembleia popular constituinte, que vire do avesso o sistema político.

Uma das experiências novas que devemos acompanhar com entusiasmo e atenção são as “prefeituras da mudança” na Espanha: Barcelona, Madri, Cadiz, Zaragoza. O modelo espanhol é uma grande fonte de aprendizado. Outro exemplo histórico de socialistas a frente das prefeituras foi o de Liverpool, nos anos oitenta, onde a prefeitura foi chave no apoio à resistência quando da grande greve mineira contra Margaret Thatcher.

Precisamos fazer uma campanha eleitoral com esse perfil. Utilizar nossos mecanismos para avançar numa concepção de mobilização. Não será uma tarefa fácil, porque as máquinas dos partidos tradicionais farão de tudo para sabotar nossa experiência e chance de vencer.

Polêmicas com o reformismo

O debate em relação a reforma ou revolução não é novo, ao contrário, é histórico. Já foi tema de um dos mais importantes livros da Rosa Luxemburgo, Reforma ou Revolução, escrito em 1900, no qual Rosa faz uma dura polêmica com o reformismo. Leitura obrigatória para todos marxistas, já que o debate segue cada vez mais atual. Não é verdade que os revolucionários são contrários às reformas. Estas são muito importantes, já que significam avanços em direitos para o povo ou setores do povo. As reformas não são concessões da burguesia, mas sim conquistas da luta dos trabalhadores, que necessariamente significam derrotas à classe dominante. São brechas que temos que aproveitar para conquistar. O cerne do problema está na reforma como um fim em si mesmo. A tese de que chegaremos ao socialismo por meio de reformas sociais é tipicamente social-democrata. Vimos esse fenômeno histórico em diversos países. Chamamos esses partidos, que na grande maioria das vezes já nem mesmo visam ao socialismo, de reformistas. E também vimos onde essa estratégia vai dar: adaptação ao regime e traição à classe. É aí em que o PT se encaixa.

Durante os anos 1980, o PT cumpriu um papel progressivo ao articular setores reformistas e setores revolucionários em um mesmo partido, no período da chamada redemocratização. Porém, o PT já possuía um erro de origem, em relação a sua caracterização quanto à natureza e ao caráter do Estado, como afirma Roberto Robaina :

“Já no manifesto de fundação do PT, de fevereiro de 1980, afirmava-se que ‘o país só será efetivamente independente quando o Estado for dirigido pelas massas trabalhadoras. É preciso que o Estado se torne a expressão da sociedade, o que só será possível quando se criarem as condições de livre intervenção dos trabalhadores nas decisões de seus rumos. Por isso, o PT pretende chegar ao governo e à direção do Estado para realizar uma política democrática […]’.

Parece uma questão menor, sem importância, mas não é. Sobre essa definição está a base da confusão, ou melhor, do ‘desvio’ que já embutia uma acomodação do PT no regime político democrático-burguês. Quer dizer, o objetivo do partido foi desde o início a mudança do Estado, não sua destruição, como Marx, Engels e Lênin definiam a tarefa estratégica dos revolucionários. Ficava evidente que o partido adotava uma estratégia que não percebia o Estado como expressão da sociedade no qual a burguesia é a classe dominante, de tal forma que a derrota desse Estado, avalista e garantia do domínio burguês, era necessária para derrotar a dominação de classe. E para mudar o Estado, a utilização da cédula eleitoral pode ser suficiente”8.

E foi essa linha que ganhou no interior do PT. Vimos o PT, ao longo dos últimos anos, ganhando prefeituras, governos, aumentando seus arcos de alianças, rebaixando seu programa. Houve muita luta interna dos setores de esquerda, contra uma direção que cada vez mais ganhava a hegemonia dentro do partido. Setores de esquerda aos quais nos incluímos. Foi dessa forma que o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder, em uma aliança espúria com José Alencar, representante dos empresários da indústria, na época filiado ao Partido Liberal (PL), atual Partido da República (PR). Não tardou para que as primeiras medidas fossem para responder aos anseios de seus novos amigos burgueses. Em 2003 veio a (contra) reforma da previdência, que retirou direitos históricos dos trabalhadores. Direitos que, como vimos, haviam sido conquistados e não dados. Essa história já é conhecida, foi neste momento que os radicais foram expulsos do PT e começamos a luta para construir o PSOL. Para que os trabalhadores tivessem uma ferramenta com um programa claro em defesa de seus interesses. Não entraremos em detalhes sobre o que foram os anos de governo petista, mas quisemos atentar para a acomodação deste ao regime. A grande lição que fica é que a cédula eleitoral é muito importante, mas não é suficiente.

As experiências históricas devem servir de aprendizado. E a história do PT nos prova que além das eleições, o PSOL tem que ser realmente radical. Assim como foram chamados os seus fundadores. Um partido que sirva de ferramenta da classe trabalhadora. Que impulsione e se solidarize com a luta direta dos mais diversos setores do povo. Dos secundaristas que ocupam escolas às mulheres que cotidianamente se empoderam. Das greves que pipocam Brasil afora à luta por moradia digna. Das lutas em defesa da educação e da saúde aos direitos LGBTs. Da luta contra a corrupção e contra as castas políticas ao enfrentamento à guerra às drogas. Mas, mais do que isso, tem que ser um partido que levante um programa capaz de dar unidade a todas essas lutas muitas vezes desconectadas e dispersas para apresentar uma alternativa real para a classe. Precisa se postular como alternativa desses diversos lutadores e não ter medo de se apresentar nas eleições. Há setores esquerdistas que menosprezam o processo eleitoral e defendem apenas a ação direta. As eleições são uma oportunidade que não podemos desperdiçar. É uma brecha para nos apresentarmos a parcelas de massas. Disputarmos consciências. Conquistarmos direitos. Não podemos permitir que os trabalhadores não encontrem correspondência aos seus anseios. Que elejam representantes da classe opressora. Essa visão esquerdista, acima de tudo, é pequeno-burguesa e elitista. Como dizia Lênin, participar das eleições e galgar postos no parlamento burguês ajuda a despertar as massas ainda inconscientes da necessidade de uma transformação radical da sociedade capitalista, para as próprias contradições desse parlamento e para necessidade de ter suas próprias representações.

O lugar do mandato socialista no Parlamento

Além da luta pra construir novas experiências no poder executivo, os socialistas têm larga tradição na luta parlamentar. Um dos símbolos da luta pela autodeterminação dos trabalhadores, pelo internacionalismo e contra o oportunismo foi o grande camarada de armas de Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht.

O revolucionário alemão foi um exemplo de deputado porque votou contra os créditos de guerra, apesar de ter ficado em minoria no parlamento alemão. Essa foi a votação mais importante da história do movimento operário no terreno parlamentar, pois anunciou a traição e falência da social-democracia que apoiou a entrada da Alemanha na I Guerra Mundial. Liebknecht foi expulso do Partido Social-Democrata Alemão, simbolizando na sua expulsão o abandono da história e do programa do partido. Qualquer semelhança com o que o PT fez com Luciana Genro e Babá não é mera coincidência.

Temos uma visão de mandato parlamentar: coletivo, atuante junto aos movimentos sociais, internacionalista, de denúncia constante dos acordos das castas, de ação prioritária extraparlamentar e de sua linha política subordinada à direção do Partido e controlada pela militância de base. O parlamentar é antes de mais nada um militante revolucionário, que naquela altura de sua trajetória, cumpre tarefas especiais de figura pública. Nos recorda Bensaïd, sobre a concepção de militante:

“É também por isso que a concepção do militante revolucionário não é para Lenin a do bom sindicalista combativo mas a do ‘tribuno do povo’, intervindo ‘em todas as camadas da população’, para apreender a forma concreta em que se entrelaçam uma multiplicidade de contradições. Esta questão está no coração do famoso debate sobre os estatutos do partido, minuciosamente comentados em Um passo à frente, dois passos para trás”9.

Nosso modelo de parlamentar se molda com critérios da Internacional Comunista da época de Lenin e Trotsky, adequados naturalmente para a situação política atual. Alguns deles aparecem na declaração de 1920 do II Congresso da III Internacional que segue abaixo. É sobre a tradição e os ensinamentos legados pela luta de classes e por nossos mestres que pretendemos encarar de frente a tarefa de enfrentar os partidos burgueses diante da falência do regime da Nova República na eleição de 2016 e nas lutas que virão.

“Os deputados comunistas estão obrigados a subordinar toda sua atividade parlamentar à ação extraparlamentar do partido. […] O deputado comunista está obrigado a colocar-se à cabeça das massas proletárias, na primeira fila, bem à vista, nas manifestações e nas ações revolucionárias;

Os deputados comunistas estão obrigados a estabelecer por todos os meios (e sob controle do partido) relações por cartas e de outro tipo com os operários, os camponeses e os trabalhadores revolucionários de toda classe, não imitando em caso algum os deputados socialistas que se esforçam para manter com seus eleitores relações de ‘negócios’. Estarão sempre à disposição das organizações comunistas para o trabalho de propaganda no país.

Todo deputado comunista no parlamento está obrigado a recordar que não é um ‘legislador’ que busca uma linguagem comum com outros legisladores, mas um agitador do partido enviado para atuar junto ao inimigo para aplicar as decisões do partido. O deputado comunista é responsável não ante a massa anônima dos eleitores mas sim ante o partido comunista seja este ilegal ou não;

Os deputados comunistas devem utilizar no parlamento uma linguagem inteligível ao operário, ao camponês, à lavadeira, ao pastor, de maneira que o partido possa editar seus discursos em forma de folhetos e distribuí-los nos rincões mais distantes do país;
Os operários comunistas devem abordar, mesmo quando se trata de sua iniciação parlamentar, a tribuna dos parlamentos burgueses sem temor e não ceder o lugar a oradores mais ‘experientes’. Caso necessário, os deputados operários devem ler simplesmente seus discursos, destinados a serem reproduzidos na imprensa e em panfletos;

Os deputados comunistas estão obrigados a utilizar a tribuna parlamentar para desmascarar não somente a burguesia e seus lacaios oficiais, mas também os social-patriotas, os reformistas, os políticos centristas e, de modo geral, os adversários do comunismo, e também para propagar amplamente as ideias da III Internacional […]”10.


1 O Podemos teve 7,98% dos votos na Espanha nas eleições europeias em julho de 2014 (mais de 1,25 milhão de votos), ultrapassando os 10% em Madri.
2 Em junho de 2016, a coligação Unidos Podemos (Izquierda Unida e Podemos) obteve 21% dos votos (mais de 5 milhões de votos), constituindo a terceira força política do país.
3 O Bloco de Esquerda teve o melhor resultado de sua história em outubro de 2015: 10,22% dos votos.
4 MORENO, Nahuel. As Revoluções do Século XX. Câmara dos Deputados, 1989. p. 27.
5 ENGELS, Friedrich. Para a História da Liga dos Comunistas, 1885.
6 MARX, Karl.; ENGELS, Friedrich. Sobre a Comuna, 1871.
7 MARCELINO, Giovanna. “As Sufragistas: reflexões sobre o passado e o presente de luta das mulheres”, 2016.
8 ROBAINA, Roberto. “Um pouco do que somos e o que defendemos”.
9 BENSAÏD, Daniel. “Lenin, ou a Política do Tempo Partido”, 2000.
10 Introdução de Trotsky e Teses de Bukharin-Lenin aprovadas pelo II Congresso da Internacional Comunista (Julho de 1920).


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Pedro Micussi