Um Rio de resistência e esperança
Como entender os resultados da campanha de Marcelo Freixo que o levou ao segundo turno, mracando o fortalecimento do partido na cidade?
O cenário das eleições municipais de 2016 enquadrou-se numa das maiores crises econômicas e políticas que o Brasil já enfrentou e seu resultado é em grande medida produto desse terremoto político e econômico em que vive o país. O Rio de Janeiro, ponto avançado da crise, esteve governado pelo PMDB durante longos anos. Figuras de proa do condomínio de poder que é o partido nacionalmente são do Rio e a hegemonia política do PMDB no estado foi componente de uma divisão de tarefas com o PT no jogo governabilidade dos governos Lula e Dilma. Hoje, com a operação Lava Jato, podemos ver em que estavam fundados esses acordos. Não é por acaso que o único ex-governador preso pela operação seja daqui, o outrora presidenciável Sérgio Cabral. O PT do Rio de Janeiro funcionou durante muito tempo como moeda de troca para os acordos eleitorais de Lula e de seu campo no partido. A intervenção nacional de 1998 contra a candidatura da esquerda petista representada na figura de Vladimir Palmeira foi a máxima expressão de um dos motivos pelo qual o PSOL no Rio de Janeiro é tão forte: o PT fluminense foi o que faliu e se degenerou mais prematuramente como projeto independente e alternativo.
Essa introdução é para, mesmo que de forma breve e esquemática, tentar revelar indícios sobre as raízes do processo riquíssimo pelo qual passou o PSOL do Rio de Janeiro com a candidatura de Marcelo Freixo, um processo que reflete grandes méritos do candidato e da militância social da esquerda carioca, mas também guarda profunda relação com um tempo histórico anterior.
Nesse marco geral, podemos afirmar que o desempenho da candidatura de Marcelo Freixo foi um elemento fora da curva porque protagonizou um movimento político e eleitoral de massas, amplo, democrático e radical, como o Rio de Janeiro e o Brasil não viam há bastante tempo. Desde 1992, partidos identificados com a esquerda não disputavam o segundo turno de uma eleição municipal na capital fluminense. Tal movimento conectou em termos simbólicos, processos históricos anteriores, como o fenômeno do brizolismo, com o acúmulo do que a rebeldia carioca tem de mais atual: a greve dos bombeiros de 2011, a Primavera Carioca (2012), Junho de 2013, a histórica greve dos professores municipais também de 2013 e a luta de resistência das favelas contra as violações de direitos humanos.
O resultado do PSOL do Rio de Janeiro se distingue do resultado geral do partido, que embora positivo dentro de um quadro tão conturbado, não conseguiu reproduzir o fenômeno de mobilização política protagonizado pelos cariocas. Do resultado eleitoral nacional três elementos fundamentais primaram: um giro eleitoral nacional à direita, a rejeição categórica de amplas massas ao ex-governismo, sobretudo ao PT que perdeu 60% de seu eleitorado e a lei da mordaça (Lei Cunha) como enorme barreira objetiva para o surgimento de novos fenômenos eleitorais por fora da velha esquerda.
Um primeiro turno duríssimo
A vitória do candidato do PSOL no primeiro turno se deu em condições bastante desiguais de tempo de TV e recursos. Marcelo Freixo tinha apenas 11 segundos nos programas de TV em bloco e média de menos de duas inserções de 30 segundos diárias durante a grade de programação. Pedro Paulo do PMDB, adversário direto de Freixo, possuía um latifúndio de tempo de TV: 3 minutos e 30 segundos nos programas em bloco e 14 minutos e 43 segundos em inserções durante a programação. O espantoso em todo processo do primeiro turno não foi somente o fato de Pedro Paulo, com todo aparato e exposição, não ter conseguido fazer sua candidatura decolar e ultrapassar a de Freixo, já que a direita, assim como os setores identificados com a esquerda, também se dividiu, mas sim o fato de que com pequeníssima exposição a candidatura do PSOL não desidratou e criou uma curva ascendente na última semana que proporcionou bater Pedro Paulo por um pouco mais de 2% dos votos.
A sustentação da candidatura majoritária até a última semana do primeiro turno se deu em grande parte pela militância orgânica do partido e pela potente chapa de vereadores, a melhor que o partido já teve. A chapa proporcional reduziu consideravelmente a diferença de votos em relação à majoritária comparando com 2012 e garantiu uma ampliação de 50% da bancada. Com a limitação de exposição da candidatura, não ocorreu no primeiro turno uma campanha-movimento, essa tarefa ficou circunscrita aos orgânicos e à franja social mais engajada que simpatiza com Freixo. Esse setor para os padrões nacionais de militância é bastante numeroso, mas não transbordou para além daí. A diferença em relação a Pedro Paulo na última semana foi conseguida com o extraordinário desempenho do candidato do PSOL no debate da Globo e com o início do movimento que se apresentou de forma mais acabada posteriormente. Caso não estivesse nos debates – possibilidade ainda aberta para eleições futuras pela lei da mordaça –, as chances de ida ao segundo turno se reduziriam sensivelmente. Pouco mais de 64 mil votos separaram Freixo e Pedro Paulo. A reta final do primeiro turno começou a desenhar o movimento massivo em que a campanha se transformou na segunda volta.
A luta democrática do segundo turno
No início do segundo turno existiu um alinhamento rápido dos votos das candidaturas da direita em torno de Marcelo Crivella. A diferença entre Crivella e Freixo havia sido de apenas 10 pontos. Isso deu um salto com a localização dos eleitores conservadores de Pedro Paulo, Bolsonaro, Índio e Osório na candidatura do bispo da Universal. Estava criada uma barreira territorial, social e religiosa. Na primeira volta, a candidatura do bispo articulava líderes do fundamentalismo religioso com elementos escanteados pelo PMDB da política fluminense, como a família Garotinho e Rodrigo Bethlem. No segundo turno, a ampliação se deu em mais um eixo, o do crime organizado, com a adesão da milícia anunciando publicamente entrada na campanha de Crivella. Do ponto de vista territorial, essa barreira se manifestava com maior força na Zona Oeste: a mancha eleitoral de Crivella aponta predominância do candidato nessa região. O recorte social também aponta a opção dos mais pobres por Crivella. Por último, lutamos contra um candidato que praticamente unificou as lideranças e a massa de fiéis evangélicos da cidade do Rio de Janeiro, unidade que o PMDB sempre tentou evitar, cooptando sempre que possível importantes lideranças do fundamentalismo religioso. Tais fatores garantiram estabilidade à candidatura do bispo. Grande parcela desse eleitorado foi praticamente impermeável às ideias da campanha de Marcelo Freixo. Os percentuais de 92% dos votos válidos de eleitores evangélicos pentecostais e 80% entre os não pentecostais com Marcelo Crivella não deixam de ser uma das marcas substantivas dessa campanha.
Apesar da supremacia de Crivella nesses segmentos, a possibilidade da exposição das ideias da candidatura do PSOL, com 20 minutos diários de programa de TV em bloco e 35 minutos de inserções, fez da campanha no segundo turno um movimento de massas democrático e radical, com importantes parcelas da cidadania carioca engajada. Os comícios e as atividades temáticas de campanha passaram a reunir milhares de pessoas: foi criada uma campanha de veto a Crivella. A ideia de que era possível vencer estava colocada. Mais de 14 mil pessoas fizeram pequenas doações, mais de 1,4 milhão de reais foram arrecadados pela plataforma online, arrecadação recorde em campanhas eleitorais no Brasil. Rompemos de forma significativa parte da barreira etária imposta no primeiro turno, parcela importante da 3ª idade aderiu à campanha. Nas ruas era uma enxurrada de pessoas com adesivos nas roupas panfletando sem qualquer vínculo orgânico com o partido.
O quadro eleitoral já apontava no primeiro turno a fragmentação da direita. Esta divisão também se expressou na separação dos meios de comunicação no segundo turno com posicionamentos ainda mais claros. Entre a possibilidade de vitória do bispo da Universal (detentora da rede Record) e a possibilidade de um candidato claramente de esquerda e com um programa democrático radical ganhar, a Rede Globo por eliminação optou pelo “mal menor”, ficando com o segundo. Uma conjunção raríssima que mostra a enorme margem de manobra que possui o Grupo Globo, já que em 2014 a Globo fez de tudo para destruir definitivamente Freixo. Não é necessário dizer que esse posicionamento ocorreu sem nenhum acordo, mesmo que tácito, ou porque era palatável a candidatura do PSOL, mas por interesses comerciais gigantescos, por manutenção de hegemonia ampla entre os meios de comunicação e provavelmente porque mais a frente também julgassem mais fácil derrubar um prefeito de fora do establishment. A capa da Veja traduziu um fenômeno de disputa de interesses similar.
Uma nova alternativa de esquerda é possível
A distorção produzida pela candidatura de Crivella sobre as pautas de direitos civis e liberdades individuas serviram para consolidar no ideário do eleitorado conservador a rejeição ao PSOL e a Freixo. Apesar disso, alcançamos 40% dos votos no total, com predominância sobre o eleitorado da Zona Norte e da Zona Oeste. Somadas as duas regiões, obtivemos 934.290 votos, 80% do total dos votos de Freixo. Os 20% restantes obtivemos no Centro e na Zona Sul. Este resultado serve para indicar não apenas o crescimento do PSOL, mas a entrada e possibilidade de trabalho social orgânico nessas regiões. Até então, nossas condições eram bastante reduzidas dependendo apenas da boa vontade de parcela de militantes do PSOL-RJ. A campanha de 2016 é o elemento objetivo que faltava. Não se trata agora só de uma questão de vontade e disposição militante, já que as condições estão criadas. Um dos maiores objetivos dos dirigentes e militantes do PSOL-RJ deve ser ampliar e aprofundar o trabalho de base nessas regiões, em especial na Zona Oeste. O PSOL necessita crescer nas periferias e áreas pobres da cidade: só assim a hipótese de uma vitória completa estará colocada, tanto política quanto eleitoral.
A apuração do resultado no domingo 30 de outubro deu em parte a dimensão dessa possibilidade aberta. Mais de 10 mil pessoas não iam embora da Cinelândia apesar da derrota eleitoral, seguiam comemorando conscientes de que o resultado foi uma vitória potencial futura. Em seu discurso, Marcelo Freixo apontou a necessidade de mergulhar no trabalho de base na Zona Oeste, de enraizar e capilarizar a influência social do PSOL.
O desempenho eleitoral do PSOL no Rio de Janeiro é um patrimônio inestimável se bem aproveitado. A direção partidária deve se qualificar para estar à altura do desafio, já que ela praticamente não influenciou no resultado eleitoral como corpo dirigente articulado e coeso. Uma porta se abriu para o PSOL-RJ se transformar no maior e melhor partido do Rio de Janeiro, enraizado e de ação. As eleições devem servir para que o partido se credencie para as amplas massas como organização que defende o povo dos ataques que os atuais e próximos governos farão. No Rio, o PSOL sai em condições muito superiores para enfrentar as medidas de austeridade absurdas do governo Pezão-Dornelles e as futuras ações do governo Crivella. A militância, os dirigentes e figuras públicas devem ter como tarefa central organizar de alguma forma todos que se identificaram com o nosso projeto eleitoral de 2016 para avançar e pacientemente explicar nossas ideias a setores populares mais amplos, conquistando-os para caminhar conosco. No Rio de Janeiro, nasceu uma alternativa.