Lênin, a revolução e o partido
Sobre a atualidade do pensamento e da obra política de Lênin num mundo em que, apesar de todas as diferenças, segue atualíssimo o desafio de construir organizações políticas da classe trabalhadora fortes o bastante para enfrentar a sociedade de classes e o Estado.
O nada que se torna tudo, eis a marca, o objetivo final da ação do proletariado; “Se nada somos neste mundo, sejamos tudo, oh produtores!”, cantam milhões de vozes, há várias décadas, repetindo a estrofe do hino da Associação Internacional dos Trabalhadores, da qual Marx foi fundador junto com um punhado de operários de países europeus. Trata-se de uma manifestação clara da verdade como torção, como salto, como revolução. E a revolução russa de 1917, sem dúvida, foi a que inaugurou uma época na qual ainda estamos inseridos: a época das revoluções proletárias, de seu advento, seus desvios, suas derrotas, seus recomeços. A época das tentativas de que o nada seja tudo. Nossa corrente se constrói mantendo-se fiel a este acontecimento histórico que comemora 100 anos neste 2017. Alain Badiou, filósofo francês que fortaleceu a importância na política da fidelidade a determinados acontecimentos e com quem também dialogamos neste texto, vai indicar que os sem nome, os sem parte, os sem pátria, constituem o proletariado e que esta ideia de não pertencimento nos remonta no mínimo ao Marx dos Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844, que define o proletariado como humanidade genérica, pelo fato de que não possui por si mesmo nenhuma das propriedades pelas quais a burguesia define o Homem (decente, normal ou “íntegro”, diríamos hoje) (BADIOU, 2012a, p.142).
Estes são os sujeitos da revolução socialista mundial. Estão nas fileiras da classe trabalhadora, em seu lugar de força social explorada no interior das relações de produção capitalista, na juventude de classe média e trabalhadora. Badiou mesmo define que a classe operária é o sítio do acontecimento de uma política de emancipação. Os que não fazem parte da dominação são os que tendem a participar de uma política de não dominação, para usar o axioma político de Badiou (BADIOU, 2007b). E onde encontrar os que não fazem parte de uma política de não dominação senão nos remetendo às relações de produção e de propriedade? A política encontra-se em gérmen na economia, esta entendida como relações de produção. E, nesta definição vamos nos aproximando do pensamento de Lênin, herdeiro direto de Marx.
Relações de classes
Já nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, Marx definia a gênese da luta de classes na estrutura econômica da sociedade capitalista. E particularmente mostrava aí a importância da questão salarial, do conflito distributivo, explicando também a debilidade estrutural inicial dos operários nesta disputa.
O salário está determinado pela luta aberta entre o capitalista e o operário. Necessariamente triunfa o capitalista. O capitalista pode viver mais tempo sem o operário que este sem o capitalista. A união entre os capitalistas é habitual e eficaz; a dos operários está proibida e tem funestas consequências para eles. Ademais, os latifundiários e o capitalista podem agregar a suas rendas lucros industriais. O operário não pode agregar a sua renda industrial nem renda da terra nem juros do capital. Por isso é tão grande a concorrência entre os operários (MARX, 1986, p. 51).
Logo, no nível das relações sociais de produção, na chamada estrutura econômica mais básica, temos as funções determinadas na produção de cada classe e elas empreendendo uma luta pelo excedente econômico, expressa, por parte dos trabalhadores, na luta por melhores salários. Não por acaso Engels definia as greves como escaramuças, como a escola militar dos operários. Também vale destacar que a burguesia enfrenta sua concorrência interna através da organização do Estado como seu instrumento político unificador, mostrando que a luta de classes assume a natureza de uma luta política e pelo poder.
No livro O capital, a análise das classes desenhada na própria estrutura econômica da sociedade é reforçada e ganha um caráter científico. “O capital como valor que acresce implica relações de classe, determinado caráter social que se baseia na existência do trabalho como trabalho assalariado” escrevia Marx no livro II (1986, p.107). O conjunto da obra está perpassado por estas definições. Daniel Bensaïd em seu livro Marx, o intempestivo é quem melhor explica a articulação entre O capital e os conceitos das classes e suas lutas. O livro I d’O capital tem como eixo a explicação do processo de produção, a mais-valia e, portanto, a disputa pelo excedente econômico, a luta entre os trabalhadores e os capitalistas ao redor da divisão da jornada de trabalho entre o trabalho necessário e o trabalho excedente. Já neste livro se explica a mais-valia como ponto de excesso, para usar o conceito de Badiou, como o presentado que não é representado no estado da situação dos saberes dos capitalistas. Ao descobrir a mais-valia, como afirma Althusser, Marx produz um verdadeiro acontecimento na ordem do conhecimento.
No livro II, cujo eixo é a circulação do capital, as metamorfoses do capital, a base objetiva da luta de classes aparece na sucessão de atos de compra e venda da força de trabalho, na relação de conflito estabelecida na negociação contratual. Esta questão é fundamental, porque os trabalhadores se viram forçados a vender sua força de trabalho apenas depois de terem sido separados dos meios de produção. A partir da apropriação dos meios de produção, de sua transformação em propriedade da classe dos capitalistas, a partir do qual garantem seu papel social na exploração da força de trabalho, os trabalhadores passam a produzir valor excedente, após reproduzir seu próprio valor na jornada de trabalho necessária para tanto, parte esta cada vez menor tanto pelo avanço da técnica quanto pelo aumento do ritmo do trabalho.
No livro II Marx ainda insiste que a circulação é tão necessária à produção de mercadorias quanto à própria produção em si mesma, e os agentes de circulação, portanto, tão necessários quantos os agentes de produção. Afinal, sem a circulação a produção não se realiza e se inutiliza. Assim, no livro III, quando Marx analisa o capital em seu conjunto, mostra os trabalhadores como uma força de trabalho coletiva necessária para a reprodução global do capital, incluindo os trabalhadores da esfera da circulação, como o comércio e os trabalhadores do transporte – estes incluídos no capital industrial – todos garantindo valor excedente para seus empregadores e vivendo em condições de exploração da mesma forma que os trabalhadores do setor diretamente industrial, sendo igualmente parte da mesma determinação de classe. Para Marx constituíam todos o proletariado.
Nossa reflexão acompanha Marx, que apontava o lastro objetivo da existência das classes, independentemente de a classe trabalhadora ter consciência de sua existência como tal. Ao mesmo tempo, percebia as classes como uma construção num processo histórico determinado, afirmando de modo claro que “os indivíduos isolados formam uma classe pelo fato de terem de encetar uma luta comum contra outra classe” (MARX, 1980, p.79), o que quer dizer que as classes exploradas em seu processo de produção já encontram bases objetivas para se rebelar, ao viverem as relações de produção antagônicas com outra classe, se reconhecendo enquanto tal na medida em que desenvolvem este enfrentamento coletivamente. Logo, a formação da classe é um processo de ação da própria classe, o que não pode ocorrer sem o estabelecimento de um lastro objetivo, uma base material.
Posto isso, fica claro que os trabalhadores são uma classe para os capitalistas, não para si mesmos, ou seja, não se formam completamente como classe para si enquanto não assumem esta consciência acerca de seus interesses comuns, num processo de desenvolvimento que começa na estrutura mesma da produção, com a resistência individual do operário, onde a classe em si, objeto da exploração e sujeito da experiência concreta, sendo realizada no mesmo tempo em que é explorado. É neste processo que os trabalhadores vão se transformando em classe para si, isto é, em sujeito com clareza do conteúdo antagônico da ordem social atual e da incompatibilidade dos interesses dos trabalhadores com o capital.
Imagino que tenha ficado claro que o “domínio da economia serve como chave que nos permite decodificar lutas políticas” (ZIZEK, 2005, p.296). Nos marcos das relações de produção antagônicas se desenvolvem as lutas e a consciência de classe. E a obra de Marx é exaustiva na importância da experiência das lutas na formação da consciência de classes. E muitas destas lutas foram verdadeiros acontecimentos. No princípio era a ação, disse Goethe. Marx se refere às fases desta luta. Como se expressam estas fases? O livro A miséria da filosofia antecipa o Manifesto Comunista.
A grande indústria aglomera num mesmo local uma multidão de pessoas que não se conhecem. A concorrência divide os seus interesses. Mas a manutenção do salário, este interesse comum que têm contra o seu patrão, os reúne num mesmo pensamento de resistência: a coalizão (MARX, 1982, p. 158).
No manifesto, Marx irá desenhar o cenário a partir da resistência individual, seguir com a coalizão dos operários de uma mesma fábrica, a associação de trabalhadores de vários fábricas, avançando a luta de classes na cidade enquanto todo, no país, até finalmente os trabalhadores se organizarem em partido político para lutar pelo poder. A história real tem sido mais conturbada, nada linear, repleta de acidentes, de descontinuidades, contratempos, interrupções, retrocessos, acelerações e recomeços.
Vimos, portanto, que para Marx as condições objetivas elementares da produção e da circulação, as relações sociais aí estabelecidas, já trazem o desenvolvimento da consciência de classe como desdobramento lógico. É evidente que não é um desdobramento inevitável. Marx não pensava isso. No seu nível elementar, porém, a relação de exploração está grávida da consciência desta exploração via a experiência cotidiana daqueles que vivem do trabalho, realizando o trabalhando e agindo para melhorar sua situação. A experiência é a consciência embrionária que pode ou não se desenvolver conforme um conjunto mais amplo de fatores, o estágio de desenvolvimento das forças produtivas, a força das ideologias em luta, dos partidos (a luta entre as superestruturas erguidas sobre as relações sociais), o nível de cultura e de informação da sociedade, etc.
Nas palavras de Nahuel Moreno, ação, experiência e consciência são partes de uma totalidade que se dá em todos os níveis, desde o partido até as massas. O elemento determinante desta totalidade são as ações do movimento de massas. Mas é evidente para todo mundo que muitas vezes – na maioria delas, aliás – os trabalhadores não agem ao sentir a exploração (MORENO, 1989). Os trabalhadores em geral, na situação normal de exploração, fora de uma situação revolucionária, têm em sua grande maioria, uma consciência burguesa. Por isso é tão importante aproveitar as divisões nas classes dominantes, os grandes eventos, os acontecimentos inesperados, as brechas políticas na situação. Nahuel Moreno dizia:
“Há milhares de intelectuais pequeno-burgueses que “amam” a luta e pensam – um tanto romanticamente, que com as massas sucede o mesmo. Desgraçadamente não é assim, e cada vez que um destes intelectuais vai falar com os operários para incitá-los por uma simples razão emotiva de que “tem que lutar” acaba tendo uma tremenda decepção: os trabalhadores não o entendem, crêem que está louco, lhes dão as costas. O operário comum, o explorado em geral, não tem prazer em ir à luta. É um ser humano normal, que não tem nenhum interesse em perder uma parte de seu escasso salário entrando numa greve, nem em arriscar sua integridade física indo numa manifestação, nem em arriscar sua vida tomando em armas contra o capitalismo” (MORENO, 1989, p. 339).
Nahuel Moreno acrescentava outra questão:
“Não basta que exista um problema objetivo para que, automaticamente, as massas saiam à luta. Os trabalhadores podem estar sofrendo baixíssimos salários, porém sua atitude frente a este problema depende de qual é a situação de suas lutas com a burguesia neste momento” (MORENO, 1989, p.340).
Segue dizendo que se este momento é após uma derrota do movimento, quando o fascismo acabou de vencer e prendeu lideranças, etc., a tendência é que não ocorra mobilização alguma:
“Por outro lado, se a situação é revolucionária, se há uma ofensiva do movimento de massas, os trabalhadores são capazes de chegar à beira da tomada do poder para conseguir salários melhores. Isso explica que a consigna de pão tenha sido uma das que levaram ao poder o proletariado russo” (MORENO, 1989, p.340).
É pela via da prática, da atividade concreta dos trabalhadores, em sua experiência de luta pelo atendimento de suas necessidades, que pode ir desenvolvendo-se a ação e a subjetivação capaz de uma alteração revolucionária da atual ordem das relações sociais. Esta é sua primeira e necessária ruptura com a consciência burguesa. É a partir da ação e da consciência da necessidade da mudança e do seu caráter inevitável que se pode desenvolver a consciência de classes.
Sem esta bagagem é impossível compreender a irrupção de um acontecimento revolucionário no século XX. A importância da classe operária, seu papel determinante na decisão dos rumos da luta é uma definição essencial do marxismo e da obra de Lênin. É a classe operária como tal, como classe consciente, que não pode existir no regime normal do capital. Sua irrupção colapsa o sistema, mostra sua inconsistência mais profunda. Zizek, explicando a posição de Badiou, mostra que para este há uma invisibilidade no estado da situação, um ponto de incoerência, ou torção sintomal de uma situação, e este é justamente aquele elemento da situação “para o qual não há lugar apropriado na (dentro) de uma situação – não por razões acidentais, mas porque seu deslocamento exclusão é constitutivo da própria situação” (ZIZEK, 2011b, p 90). Badiou neste ponto diz claramente que a classe operária é este invisível. Zizek segue sua explicação: “claro que a classe operária é ‘visível’ de várias maneiras no mundo capitalista (como aqueles que vendem espontaneamente sua força de trabalho no mercado, como ralé em potencial, como criados fiéis e disciplinados dos empresários capitalistas, etc.)” (Ibidem, p. 90). Mas é o invisível do ponto de vista da exploração, na medida em que esta exploração é negada, que a existência da mais-valia é ocultada. Entretanto, nenhum destes modos de visibilidade inclui o papel sintomal do proletariado como “parte de parte alguma” do universo capitalista. A “invisibilidade” de Badiou é, portanto, o anverso da visibilidade dentro do espaço ideológico hegemônico, é o que tem de permanecer invisível para que o visível possa ser visível” (ZIZEK, 2011b, p.90).
Lênin como pensador da política moderna
Alain Badiou escreveu um livro sobre São Paulo, o fundador da Igreja Católica. O mais destacado na atividade de Paulo que Badiou busca explicitar é a defesa de que há verdades, e estabelecer a relação entre as verdades e o sujeito. Para Paulo, a verdade tem caráter universal, imortal, infinito. Ela eclode num acontecimento. Para ele a ressurreição foi a eclosão desta verdade, o acontecimento. É claro que Badiou não compartilha, ou melhor, não acredita no que ele denomina de a fábula de Paulo, isto é, a ressureição. Badiou é ateu. O que ele então busca em Paulo?
Está buscando a repercussão do acontecimento, “de uma grande irrupção que impõe no tempo um antes e um depois, afirmando que a única prova do acontecimento é a declaração pelo sujeito” (BADIOU, 2009b, p. 12). Para Paulo foi a ressureição. Para um projeto, para uma ideia como a igualdade social, por exemplo, uma grande mobilização social, uma revolta, uma revolução pode ser este acontecimento. Mas em ambos os casos o acontecimento depende do engajamento militante para nomeá-lo. A nomeação é a prova de sua existência, e a militância, defendendo esta nomeação, sua continuidade.
Os apóstolos foram os que se comprometeram a ser fiéis à verdade da ressureição. Sem esta subjetivação, subjetivação que é a construção de um corpo desta verdade, o acontecimento seria em vão. A ressureição seria em vão. Badiou escreveu, realizando sua leitura de Paulo: “O apóstolo é, então, aquele que nomeia essa possibilidade (o Evangelho, a boa-nova, é simplesmente isso: nós podemos vencer a morte). Seu discurso é de pura fidelidade à possibilidade aberta pelo acontecimento” (BADIOU, 2009b, p. 56).
Para Badiou, a ideia da igualdade também é imortal, infinita, universal, mas suas aparições são sempre históricas e singulares, no tempo e no espaço. Trata-se da verdade da luta pela igualdade. O comunismo representa este movimento igualitário. O capitalismo representa a morte. Por isso se pode ler o pensamento de Badiou em analogia com os textos de Paulo. O apóstolo seria o militante. O Evangelho, a boa-nova, seria a ideia do comunismo. O militante, então, é aquele que nomeia essa possibilidade do comunismo e a fé de que nós podemos vencer a morte, o capitalismo.
Para a leitura de Badiou devemos agregar algo mais. Como a luta pela verdade, pelo comunismo, é infinita e imortal, escolher um momento finito como realização desta verdade significa renunciar a esta verdade. O finito é o mortal. A verdade é imortal. Forçar a verdade, definir que ela já está instalada e efetivada é a posição que congela o processo. Seguindo esta lógica sempre se deve continuar. Badiou nos traz assim uma leitura filosófica da revolução permanente.
Em sua leitura de Paulo, Badiou diretamente nos remete a Lênin. Como se sabe, Badiou não escreveu um livro sobre Lênin como o fez sobre Paulo, mas considerou que os dois adotaram a mesma posição de defesa da militância e da fidelidade a uma verdade. Badiou define as epístolas de Paulo como intervenções na vida dos núcleos dos apóstolos, repletas de paixão política, tratando sobre as questões internas dos núcleos, combatendo suas divisões, estimulando os dirigentes locais, tratando de finanças, enfim, todas as questões referentes à organização. Impossível não lembrar que armar seus militantes era também o objetivo fundamental dos textos de Lênin.
Badiou reivindica então uma tradição, uma sequência, e nomes como símbolos de política de emancipação, entre os quais Lênin, para quem a política se concentrava na luta pelo poder. Para Lênin, o ponto maior era a ideia da revolução, a decisão pela luta da classe trabalhadora, para desenvolver a consciência de classe dos trabalhadores até as últimas consequências, até a luta e a vitória final. Este era seu critério. E ao mesmo tempo era convencido do papel determinante do partido.
Lênin foi o principal dirigente da Revolução Russa. Trabalhou sobre economia, filosofia, teoria política, administração. Nasceu em 1870. Esteve exilado, foi preso, fundou o partido bolchevique, sua principal obra, dirigiu a Revolução Russa e o Estado Soviético até 1923. Faleceu em 1924, quando a burocracia já começava a ganhar peso na Rússia, depois da Revolução de 1917, depois de uma guerra civil de três anos e depois que o melhor da vanguarda havia sido dizimado. A Rússia quase desapareceu. Mas venceu a guerra. Não conseguiu evitar a burocratização. Mesmo assim o país cresceu com a expropriação da burguesia e se converteu numa potência econômica e militar.
A obra de Lênin tem como eixo constante as táticas e a estratégia da revolução. Em Lênin o marxismo atingiu seu momento mais alto, quando a arma da crítica deu lugar definitivo à crítica das armas. Com ele não existe sequer como tentar fazer a manobra que fazem com Marx de separar o analista, o investigador, do revolucionário. E o revolucionário é inaceitável para o saber existente do Estado da situação. Por isso as universidades o rejeitam.
Lênin, como Paulo, tratou de transformar uma luta particular numa batalha universal. Como Paulo, que decidiu que a luta não é apenas de judeus, mas de não judeus, de gregos, de pagãos, no século XX foi Lênin que decidiu defender um tipo de militante universal organizado apenas em partidos nacionais, mas num partido mundial da revolução. Neste sentido, assim como Paulo foi internacionalista na implementação do cristianismo, Lênin fez o mesmo para defender o comunismo.
A universalização de ideias e tarefas em Lênin, a partir de uma intervenção particular, pode ser vista mesmo em vários pontos, além da ideia do militante profissional, que veremos em linhas gerais nas páginas que seguem: 1) ideia da revolução mundial e da destruição do Estado burguês; 2) da revolução que coloque uma pauta negativa do tipo abaixo a ditadura ou abaixo a autocracia; 3) ideia de auto-organização democrática do movimento de massas via sovietes, os conselhos; 4) ideia do partido centralizado e disciplinado como instrumento coletivo dos militantes que dispute o movimento de massas para lutar pelo poder. Antes de abordar a questão do partido, vejamos mais de perto a teoria da revolução de Lênin.
Lênin e a revolução ininterrupta
Um dos pontos mais fortes de Lênin é a questão do programa entendido como uma política para a ação com base nas tarefas que estão colocadas em um determinado período da luta de classes, na análise concreta da situação concreta. E Lênin era o político do real, segundo Badiou, e um político que lutava pela vitória. “Converte a vitória, o real da política revolucionária, em uma condição interna da teoria e desta maneira determina a maior subjetividade política do século, pelo menos até seu último quarto” (BUDGEN; KOUVELAKIS; ZIZEK, 2010, p 12)
Ao mesmo tempo, sua ação exigia teoria. “A paixão leninista pelo real, que é também uma paixão pelo pensamento” (BUDGEN; KOUVELAKIS; ZIZEK, 2010, p 17): combinava o imediato e o mediato, o finito e o infinito, a tática e a estratégia, a política prática e o programa. Foi a paixão pelo real que fez com que Lênin fosse intransigente da ideia de que devia se atuar com uma política revolucionária mediada pela análise concreta da situação concreta e examinando a relação de forças entre as classes. Relação de forças. Esta questão sempre foi determinante. “A tarefa principal de um partido revolucionário é esclarecer a correlação de forças na revolução que se aproxima” (LÊNIN, 1985, p.83). Sem um pensamento profundo não se é capaz de responder em qual ritmo se deve atuar, que mudanças de marchas devem ser executadas. Por isso sua característica era, além da intransigência nos princípios, a flexibilidade política. No seu discurso de fechamento do Congresso do partido, em 02 de abril de 1922, diante da acusação de que o partido estava ficando velho, que perdia a flexibilidade mental e a de todo seu organismo, Lênin respondia:
Não, não temos perdido esta flexibilidade. “Quando foi necessário – segundo o estado o estado objetivo das coisas na Rússia e em todo o mundo – avançar, atacar o inimigo com abnegada audácia, com rapidez e decisão, assim o fizemos”. Em seguida completou: “E quando, na primavera de 1921, nosso destacamento avançado da revolução se viu ameaçado pelo perigo de ficar isolado das massas do povo, das massas camponesas, as que devia saber conduzi-las com correção até adiante, nós definimos unânime e firmemente recuarmos” (LÊNIN, 1976, p.346).
Seu recuo chegou ao ponto de defender o capitalismo de Estado na Rússia, com a introdução da Nova Política Econômica. Ao mesmo tempo, Lênin era um defensor do pensamento, da verdade como acontecimento, como revolução. Não abria mão do princípio fundamental que norteava sua ação política: a luta pelo poder dos trabalhadores e do papel protagonista e determinante do partido revolucionário. “O capitalismo de Estado é admitido por nosso Estado proletário e o Estado somos nós” (Ibidem, p. 334). E por isso, dizia Lênin, não é o mesmo capitalismo de Estado dos alemães, porque no caso russo não se perdia a estratégia da revolução e do poder operário concretizado no partido que ao longo de sua história havia defendido a revolução e seguia defendendo. Ou seja, a defesa aberta da estratégia revolucionária, da ideia da revolução, é um elemento de determinação da própria natureza do estado.
Lênin fazia uma aposta que Sylvain Lazarus definiu como a revolução do indecidível (BUDGEN; KOUVELAKIS; ZIZEK, 2010). Analisando o processo revolucionário russo de 1917, “Lênin mantinha que o futuro caráter da revolução que havia começado era indecidível, que ‘ninguém sabe e que ninguém pode saber’” (BUDGEN; KOUVELAKIS; ZIZEK, 2010, p 249). A questão do caráter indecidível da revolução nos conduz a uma parada na obra de Lênin de 1905. Trata-se de um dos livros em que expõe mais claramente sua teoria da revolução. Nos referimos ao seu livro Duas táticas da social-democracia. Segue uma síntese da orientação deste livro:
- definia que o eixo da tática era a luta pela derrubada revolucionária do czarismo; ao mesmo tempo em que insistia na natureza burguesa da revolução, acreditando no desenvolvimento de um capitalismo moderno, não asiático, a partir do qual o proletariado lutaria pelo socialismo em melhores condições; sustentava que a burguesia era inconsequente nesta luta e na própria revolução democrático-burguesa;
- defendia que o proletariado deveria assumir a direção do processo, em unidade, sobretudo, com o campesinato, a maioria da população russa e das demais repúblicas do império czarista;
- os bolcheviques lutavam pela mais radical democracia burguesa e pelas reivindicações do proletariado no interior deste bloco; em sua defesa da democracia burguesa, diferenciavam, porém, a democracia burguesa de um burguês e a de um camponês, sustentando sempre a aliança estratégica com este último; criticavam, por exemplo, a proposta de Comuna, mas ao mesmo tempo queriam um novo governo que fosse radical contra qualquer vestígio do antigo regime;
- Lênin aceitava a unidade com a burguesia mais democrática, definindo que neste caso teria duas alas da burguesia, uma mais ligada à monarquia e outra menos egoísta. Aceitava lutar pela revolução com esta, mas tampouco depositava confiança nela nem abandonava a tarefa da luta pela direção do proletariado nesta revolução democrática, sempre em aliança com o campesinato;
- discutia as condições de participação do partido social-democrata (nome dos revolucionários marxistas da época) num novo governo provisório revolucionário surgido da vitória da insurreição contra o czarismo, tendo a correlação de forças como uma das bases para a análise e a escolha acerca da participação ou não; o argumento menchevique (uma das alas do partido) de que participar de um governo em conjunto com representantes da burguesia seria cair no millerandismo (quando pela primeira vez na França os socialistas participaram de um governo burguês), isto é, seria cair numa linha de sustentação do estado burguês, etc, era denunciado por Lênin como uma posição de esquerda apenas aparente, já que aceitava sem luta, sem tentativa de aproveitar para mudar o país “de cima para baixo” além de “de baixo para cima”. A posição menchevique era sinônimo, portanto, de uma posição omissa, passiva, que entregava a direção da revolução e do governo, surgido da revolução, para a burguesia. Tratava-se então de uma política oportunista, levada adiante com argumentos semianarquistas para não construir um governo da ditadura democrática do proletariado e do campesinato. Lênin, ao contrário, defendia a luta no interior deste governo; defendia que a entrada dos social-democratas dependia da correlação de forças, das possibilidades de intervenção real no processo de “cima para baixo” e que seu papel no governo era radicalizar a democracia, entregar a terra aos camponeses, defender as reivindicações mínimas do movimento operário – mas fundamentais para melhorar a vida dos mesmos – enfrentar a contrarrevolução e a própria burguesia que iria atacar os operários, e enfrentar inclusive a própria ala da burguesia que também pudesse integrar o governo;
- logicamente, defendia também que o governo podia ser formado sem qualquer fração da burguesia se a mesma recuasse, e que uma política revolucionária de mobilizações de massas deveria ser levada adiante sem temor de assustar a burguesia. Defendia, então, uma luta ininterrupta; não aceitava, por exemplo, a ideia de um novo governo que regulasse a luta de classes como defendia a resolução da conferência menchevique;
- como princípio fundamental de toda sua estratégia defendia a organização independente do proletariado, um partido próprio que declarasse com clareza e de modo sistemático os interesses do proletariado, suas tarefas imediatas e históricas e o objetivo socialista de sua luta.
Sua posição era derivada de Marx, do Manifesto Comunista de 1848 e dos textos de 1850, das experiências das revoluções de 1848 e das conclusões de Marx destas experiências, conclamando a revolução permanente. Marx, na revolução alemã de 1848, percebeu com clareza que a burguesia não queria levar adiante uma revolução democrática consequente. Preferia negociar com a nobreza e compor uma transformação gradual – ou mesmo manter a situação como estava – e não se unir com os operários e com o povo em mobilizações revolucionárias. A pequena burguesia também não era consequente, embora Marx defendesse a unidade entre o incipiente proletariado e os pequenos artesãos, camponeses, estudantes. Mas sua política expressa na mensagem à liga dos comunistas de 1850 apresentava o corte classista em defesa da necessidade de uma organização independente do proletariado. E ao mesmo tempo defendia que o movimento de massas deveria levar adiante suas demandas de forma cada vez mais clara, sem parar. Neste sentido, sua proposta de revolução era ininterrupta e, portanto, indecidível. Até qual estação o trem da revolução iria andar, aonde iria se deter, eram questões em aberto. Seu objetivo final era o socialismo e o comunismo, mas os ritmos não podiam ser antecipadamente determinados. Esta foi uma linha universal por ele defendida.
Na experiência histórica, quando a burguesia já não tinha mais nada que ver com os jacobinos, os únicos que poderiam defender bandeiras democráticas – eram estas as bandeiras do movimento operário nas revoluções de 1848 – eram os trabalhadores. Marx apenas intui esta mudança na dinâmica da relação entre as classes sociais e suas tarefas, que fizeram com que algumas classes assumissem tarefas de outras, concretamente os operários assumindo as tarefas não realizadas pela burguesia. Marx não formula esta dialética deste modo claro, embora sua posição claramente tenha servido de inspiração para a posição de Trotsky, por exemplo, que foi o defensor da revolução permanente por excelência.
Algumas das formulações de Marx, notadamente a mensagem à Liga, jogaram luzes de visionário, reivindicando a luta permanente até a conquista do poder do proletariado, a conquista do proletariado dos principais instrumentos de produção e o triunfo da revolução nos principais países. Foram, contudo, luzes rápidas, não articuladas numa estratégia global consolidada. Cada um deve tirar suas conclusões, mas entendemos que a posição de Lênin é a mais próxima de Marx do que a posição de Trotsky, porque a defesa da revolução permanente em Marx respondia ao conceito de luta ininterrupta, não havendo nela uma avaliação mais acabada sobre a dialética entre as classes e as tarefas revolucionárias. Neste sentido, embora inspirado em Marx, Trotsky fez um aporte original.
A revolução russa de 1917 e as teses de abril
A Revolução Russa de 1905 foi derrotada. Sua experiência, porém, foi determinante. Sem ela, segundo Lênin, a revolução não teria triunfado doze anos depois. Nem a revolução de fevereiro nem a de outubro de 1917. Posto isso, fazemos uma afirmação que retomaremos em seguida: foi a orientação de Lênin de 1905 que permitiu que os bolcheviques adotassem uma linha política correta – cuja palavra de ordem central era “abaixo o czar” para impulsionar a Revolução Russa, cuja primeira vitória ocorreu em fevereiro de 1917. E, sem a vitória de fevereiro, as condições da revolução dirigida pelos bolcheviques não teriam se realizado.
A primeira revolução vitoriosa ficou conhecida como a revolução de fevereiro: caiu o czarismo, assumiu o governo provisório, formado por mencheviques (já conformado em partido, depois da divisão definitiva com os bolcheviques de 1912), por partidos representantes da classe média, como os SR (socialistas revolucionários), e setores da burguesia, governo encabeçado pelo advogado Kerensky, da ala direita do partido Socialista Revolucionário. Lênin, ainda no exílio, decidiu não entrar no governo. Ao contrário, criticou duramente os bolcheviques que estavam na Rússia, entre eles Kamenev e Stálin, que defendiam, das páginas do Pravda (jornal do partido), uma posição de conciliação com o governo, de apoio crítico ao governo provisório. A posição de Stálin representava a tentativa de aplicação dogmática, estreita, conciliadora da defesa de Lênin da ditadura democrática de 1905. Mas Lênin repudiava esta tentativa de misturar suas posições com a conciliação. Nada mais distante da ideia de apoiar o governo e acumular forças para um futuro indefinido. Seu chamado foi pela luta direta e imediata. Nada de etapismo.
A verdade é que, como sempre, a realidade foi mais rica que a teoria: a revolução democrático-burguesa vitoriosa de fevereiro foi mais rica que os esquemas anteriores dos bolcheviques. E isso deu margem para que uma determinada leitura, dogmática e não dialética das teses bolchevistas de 1905 conduzisse à capitulação. Foi uma deformação da tese, embora alguma guarida encontrava nelas. Por isso Lênin ajustou o curso e propôs as “Teses de Abril”, uma mudança no programa bolchevista. O contexto da nova orientação foi no desdobramento da revolução de fevereiro.
Na Rússia havia se estabelecido um regime de duplo poder. Em todos os lados surgiram conselhos de operários, camponeses e soldados cujos poderes – no controle da distribuição da produção, nas questões da segurança das cidades, nas decisões políticas, etc. – muitas vezes era superior ao do governo provisório, embora, nos primeiros meses, os sovietes apoiassem majoritariamente o governo, com os mencheviques e SRs tendo ampla maioria. O novo governo não resolveu o problema da terra e da paz, nem publicou os acordos secretos do czarismo. Não aceitava muito menos formalizar os sovietes como instituição de centralização de todo o poder, tentando na prática esvaziar seu conteúdo e consolidar a força do governo provisório. A ruptura de Lênin com o velho programa se afirmava: abandonou a rejeição à comuna e declarou o fim da separação entre o programa mínimo e máximo. Logo proclamou o caráter socialista da revolução. Foi o momento de aproximação entre Lênin e Trotsky, quando ambos defenderam uma nova revolução contra a burguesia, que abriria a etapa da realização de tarefas econômicas e sociais anticapitalistas.
De fato, Lênin abandonou a ideia de que a revolução traria um progresso do capitalismo, superando os traços feudais e asiáticos do mesmo na Rússia. Proclamou o caráter socialista e de abertura da revolução europeia. Então, é clara a ruptura, a mudança; o estudo da lógica de Hegel foi apresentado por alguns como a base filosófica dessa mudança que o advento da guerra deixou claro.
Este choque de 1914 foi – na expressão de Alain Badiou – um desastre, uma catástrofe na qual um mundo inteiro desapareceu: não apenas a idílica fé burguesa no progresso, mas também o movimento socialista que a acompanhava (p. 08, prefácio Portas da revolução). E ainda agregou: “Esse momento de Werzweiflung, essa catástrofe, limpou o terreno para o evento leninista, para o rompimento do historicismo evolucionista da II Internacional – e Lênin foi o único que percebeu isso, o único que articulou a Verdade da catástrofe” (ZIZEK, 2005, p. 08).
Apesar destas mudanças, Lênin jamais escreveu uma linha sequer de adesão à teoria da revolução permanente formulada por Trotsky. Isso pelo menos sugere que a relação entre a posição de Lênin e esta teoria foi mais complexa do que a maioria das escolas trotskistas supõe ao simplesmente defender a tese da adesão de Lênin à posição de Trotsky. Como apontou Lowy, Nahuel Moreno e outros autores, tudo realmente indica que a leitura da lógica de Hegel teve seu papel e também a eclosão da guerra mundial na evolução do pensamento político de Lênin. Mas em 1915 a guerra já estava em curso e ele já havia estudo a lógica. Mesmo assim criticava Trotsky duramente: “A tarefa principal de um partido revolucionário é esclarecer a correlação de classes na revolução que se aproxima (…) Trotsky propõe uma solução errônea no Nashe Slovo, repetindo sua “original” teoria de 1905 e negando-se a refletir sobre as causas pelas quais, durante dez anos, a vida passou ao largo desta magnífica teoria” (LÊNIN, 1985, p. 83).
Por outro lado, no prefácio da edição de 1919 de Balanço e perspectiva, Trotsky reivindica sua teoria. A reivindicação é justa, porque de fato a segunda Revolução Russa, a de outubro de 1917, dirigida pelos bolcheviques, não desembocou num crescimento não asiático do capitalismo, mas num novo regime de propriedade, na expropriação dos expropriadores, tudo isso em questão de meses, não de anos. Em 1918, a expropriação da burguesia se confirma. A revolução não era burguesa nem ocorreu desenvolvimento do capitalismo. Mas o início da construção socialista, como proclamou Lênin em 1917, negando suas posições anteriores. As “Teses de Abril” marcaram este giro, esta nova orientação, impulsionando a nova revolução.
Seria incorreto definir que as “Teses de Abril” foram uma conversão pura e simples de Lênin à teoria da revolução permanente de Trotsky defendida em 1905. Primeiro, porque Trotsky não dava importância em 1905 – como ele mesmo obviamente reconheceu, ao papel do partido revolucionário na revolução para a realização de uma revolução do tipo outubro. Em segundo lugar – e este neste caso é o fator mais importante – porque a política de Lênin em defesa de uma nova revolução era desdobramento de sua ideia de luta ininterrupta. Em inúmeros escritos de Lênin fica claro que as “Teses de Abril” foram uma ruptura, mas também uma continuidade. Foram uma superação. Tanto é assim que Lênin tinha claro duas questões que alicerçaram a teoria de Trotsky: a combinação de tarefas e o desenvolvimento desigual e combinado, embora não formulasse nenhuma destas questões com a genialidade e a clareza de Trotsky, que corretamente definiu o desenvolvimento desigual e combinado como uma lei, hierarquizando a mesma em sua elaboração teórica.
Mantendo sua posição em que separava de modo ainda rígido a revolução burguesa da revolução socialista, Lênin já apontava a combinação de tarefas. “Naturalmente”, dizia Lênin, em 1905,
numa situação histórica concreta se entrelaçam os elementos do passado e do futuro, se confundem um e outro caminho. O trabalho assalariado e sua luta contra a propriedade privada existem também sob a autocracia, nascem inclusive num regime de servidão. Porém, isso não impede minimamente em distinguir lógica e historicamente as grandes fases do desenvolvimento. Todos nós contrapomos a revolução burguesa à socialista, todos nós insistimos na necessidade de fazer uma distinção rigorosa entre as mesmas, porém, se pode negar que na história se entrelaçam elementos soltos, particulares de uma e outra revolução? Por acaso a época das revoluções democráticas não registra na Europa uma série de movimentos socialistas e tentativas socialistas? E por acaso a futura revolução socialista na Europa não terá, todavia, muito para fazer para dar fim ao que ficou incompleto no terreno da democracia? (LÊNIN, 1982, p.78).
Finalmente, não é demais lembrar que quando Lênin assume a defesa da necessidade de uma nova revolução de caráter socialista já havia ocorrido a queda do czarismo, a primeira revolução, a de fevereiro, cujo resultado imediato foi a abertura de um período de muita democracia, segundo Lênin garantindo a instauração de um regime democrático na Rússia com maiores liberdades de organização do que os dos países da Europa. Ou seja, a consigna central dos bolcheviques de “abaixo o czar”, consigna democrática, não socialista, havia se realizado plenamente. Lênin chegou a definir em O Estado e a Revolução, livro de preparação teórica da revolução de outubro, que a ditadura democrática do proletariado e do campesinato havia obtido a vitória (uma questão a se discutir), embora tenha considerado que o governo surgido desta primeira revolução trabalharia contra a revolução, suas motivações e conquistas. E a revolução de fevereiro uniu vários setores do povo e vários partidos, sobretudo os representativos do campesinato e dos soldados, que não eram na sua imensa maioria adeptos do bolchevismo. Na última hora, na agonia final do czarismo, setores burgueses também aderiram.
Sem fevereiro, não teriam se desdobrado as contradições nem se clarificado as políticas dos partidos e os interesses de classe correspondentes, para permitir que os bolcheviques ganhassem tão rápido a influência na maioria das massas, em primeiro lugar – e isso foi o determinante – entre a maioria dos operários dos sovietes de Petrogrado e Moscou. Os sovietes também se formaram em fevereiro, estabelecendo um regime de duplo poder. No duplo poder é preciso que o poder seja dos operários, do tipo Estado-Comuna.
E a questão é que até a queda do czarismo, o eixo era democrático, era o “abaixo czar”, não a revolução socialista, o poder operário e popular concretizado nos sovietes. Podemos dizer então que a política se apresentava mais pela negativa, não pela positiva. Neste sentido, é importante lembrar como Nahuel Moreno, um dos principais dirigentes trotskistas do pós-guerra, corretamente defendia a consigna “abaixo a ditadura no cone sul” no final da década de 70 e início dos anos 80, tendo esta consigna como tarefa central da revolução, sem colocar muitas outras. Parece que neste caso seguia mais a armação política de Lênin.
Em outras palavras, a armação política correta em 1905 era centrada na luta pela revolução democrática, pela vitória contra o czarismo e no chamado aberto para unir forças e mobilizar para derrubá-lo. Esta orientação seguiu até a vitória da revolução de fevereiro, e armou a intervenção bolchevista em todo este período histórico. Ao mesmo tempo Lênin sempre defendeu que a luta era ininterrupta, sempre defendeu que a entrada no governo dependia da correlação de forças e das possibilidades de mudar o país “de cima para baixo” e não apenas de “baixo para cima”. Entrando ou não no governo, a mobilização revolucionária deveria continuar.
Em fevereiro de 1917, a opção foi por não entrar, já que a natureza e a política do governo provisório de Kerensky ia contra a mobilização, tendo ademais adotado uma política pró-imperialista, de conciliação com os privilegiados, não garantindo nem o pão nem a paz e, portanto, oposto aos interesses da revolução mundial. Nestas condições, participar ou apoiar significava ceder no essencial e desarmar a continuidade da luta.
Lênin não teve dúvida de chamar a não confiar no governo e manteve os bolcheviques na oposição com a expectativa de ganhar as massas, de ser a ala consequente da revolução fora do governo, demonstrando a real natureza do governo. Como prova de que seu pensamento não tinha nada a ver com o esquematismo dogmático, propôs um compromisso com os mencheviques e socialistas revolucionários: que se eles aceitassem o poder dos sovietes – num momento em que Lênin era minoria nesta instituição – os bolcheviques renunciariam a defesa da insurreição e disputariam o poder pela via pacífica. Esta proposta não era uma manobra, mas uma convicção de que os sovietes, como organismos máximos de poder, representariam, como mínimo, a concretização e consolidação da ditadura democrática do proletariado e do campesinato, abrindo a possibilidade de uma disputa no seu interior pelos rumos da revolução.
Assim, fica claro que Lênin entendeu o governo provisório de Kerensky como uma tentativa de roubar das massas o triunfo da revolução e que sua continuidade e aprofundamento dependia de uma oposição clara a este governo. Onde mais se expressava o caráter inconsequente do novo governo com a própria revolução de fevereiro foi sua negativa de entregar o poder para os sovietes. A inconsequência e a traição do governo provisório ficou provada na covardia para enfrentar Kornilov, representante da contrarrevolução – apoiado pelo czarismo e pela burguesia europeia – e depois na aceitação de Kornilov, na conciliação com os exércitos imperialistas para derrotar a nova revolução defendida por Lênin e pelos bolcheviques.
Em 1917, não é certo dizer que a história testou as distintas estratégias, como se a elaboração de Lênin de 1905 e a de Leon Trotsky fossem antagônicas. É como se Lênin tivesse defendido uma linha estratégica durante 12 anos e, em 1917, a tivesse abandonado. Os bolcheviques desavisados teriam mantido a estratégia anterior e por isso apoiaram Kerensky. A realidade, porém, não permite estas simplificações que acabam distorcendo a real dinâmica histórica do processo revolucionário e as mudanças não apenas nas estratégias e nas políticas, mas nas condições em que estas estratégias se realizavam. E como se modificavam as próprias estratégias na medida em que se realizavam, parcial ou completamente. Os bolcheviques não eram etapistas.
A posição deles, porém, era da revolução ininterrupta, isto é, defendiam a realização de uma revolução burguesa conquistada por uma luta democrática revolucionária, em que o proletariado defenderia um novo governo e um novo poder cuja característica seria a ditadura democrática do proletariado e do campesinato, a partir do qual se inauguraria a luta direta pelo socialismo, cujas tarefas estariam mais próximas quanto mais profunda fosse a revolução democrática. Esta defesa permitiu uma intervenção correta durante anos, uma intervenção intransigente na defesa do avanço da revolução, do caráter ininterrupto da mesma.
Quando triunfa a revolução de fevereiro, se realizam parcialmente os objetivos da revolução democrático-burguesa, mas mesmo estes objetivos estavam ameaçados com a continuidade do governo provisório. A questão agrária tampouco havia sido solucionada. Insistimos que apenas parcialmente os objetivos da ditadura democrática haviam sido alcançados, porque o pensamento de Lênin indicava a necessidade de uma nova revolução justamente para levar adiante as tarefas não realizadas, combinando desta vez as tarefas democráticas com tarefas antiburguesas, diretamente socialistas, indissoluvelmente ligadas à revolução socialista europeia.
Henri Lefevbre, em seu clássico estudo sobre Lênin (O pensamento de Lenine, 1969), sustentou que a ditadura democrática do proletariado e do campesinato defendida por Lênin em 1905 foi estabelecida apenas na revolução de outubro de 1917, quando foi instaurado o governo dos bolcheviques em aliança com os socialistas revolucionários de esquerda. Trata-se de uma simplificação, como se a realidade tivesse seguido à risca a teoria e o esquema de 1905. A verdade é que a ditadura democrática, como havia concebido Lênin, não se realizou nem em fevereiro nem em outubro. Em fevereiro ficou aquém; em outubro se foi além.
O fato é que o czarismo caiu em fevereiro, não em outubro, e um novo regime de liberdades democráticas se estabeleceu em fevereiro, realizando uma das tarefas fundamentais da revolução democrática. Como dissemos, porém, deixou outro problema determinante da revolução democrática sem resolver, qual seja, a questão agrária. A revolução de outubro, por sua vez, além da questão agrária, já foi contra toda a burguesia, iniciando as mudanças diretamente socialistas. O fato da expropriação da burguesia ter ocorrido apenas em 1918 não anula que o começo da revolução socialista tenha sido em outubro do ano anterior, porque tais medidas econômicas e sociais foram desdobramentos lógicos do novo regime conquistado em outubro, do domínio operário e revolucionário da nova máquina estatal, uma confirmação cabal da posição de Trotsky e em sintonia com a linha estratégica de Lênin.
Ao desenvolver esta estratégia, Lênin tinha muito claro o conceito de luta ininterrupta para ter que recorrer ao da revolução permanente, embora a genialidade de Trotsky ter sim sido conformada, isto é, a tese central da permanente segundo a qual os operários no poder não iriam se autolimitar e aceitar a continuidade da exploração do capital. Para complicar mais as questões, vale também lembrar que o próprio Trotsky, apesar desta tese, defendeu a introdução da NEP, isto é, uma certa abertura e estímulo ao capital privado, um ano antes de Lênin, depois que a revolução havia sido desgastada por três anos de guerra civil e quando estava claro a necessidade de ganhar tempo.
A fórmula ditadura democrática do proletariado e do campesinato defendida por Lênin em 1905 expressava uma posição mais algébrica sobre o caráter de classe de um novo governo. Seu peso essencial estava assentado na ideia da aliança de classes entre o proletariado e o campesinato, entre o partido revolucionário operário e a pequena burguesia com seus organismos políticos. Não deixava claro exatamente qual classe e qual o partido teria a hegemonia nesta ditadura. Trotsky era taxativo neste ponto desde 1905 e argumentava que o campesinato não podia ter a hegemonia, porque como classe era incapaz de ter uma posição independente, seguindo ora o proletariado ora a burguesia.
Como dissemos, em outubro de 1917, o que ocorreu foi mais do que ditadura democrática, mas abriu a etapa da expropriação da burguesia pelo estabelecimento direto de uma ditadura do proletariado, isto é, um poder operário revolucionário em aliança com o campesinato, mas sob a hegemonia do proletariado e do seu partido revolucionário. Lênin foi consciente de que tarefas democráticas para serem cumpridas exigiram um poder operário revolucionário que enfrentasse imediatamente a burguesia e abrisse uma etapa no qual estaria posta a aplicação medidas de socialização da produção. Foi a confirmação da posição de Trotsky.
Diante disso, quando as polêmicas sobre estas questões teóricas retornaram, depois da morte de Lênin, Trotsky sustentou que a fórmula ditadura democrática, como havia sido formulado por Lênin em 1905, não mais se realizaria. Isto é, Trotsky concluiu, sobretudo da experiência de outubro, que sua tese teria validade universal. Lênin não escreveu nada sobre isso depois da experiência de outubro. E quando escreveu as teses do Oriente, para armar as revoluções nos países coloniais e semicoloniais, depois da revolução de outubro de 1917, podemos dizer que reafirmou a tese da ditadura democrática do proletariado e do campesinato ao propor que os partidos comunistas integrassem – sempre mantendo sua independência organizativa – os movimentos nacionalistas revolucionários, inclusive com setores burgueses nacionalistas revolucionários. Isso prova mais uma vez que Lênin nunca deu razão para a teoria da revolução permanente como a havia formulado Trotsky. Ao mesmo tempo, sabemos hoje que a posição da III Internacional, apostando em burguesias nacionalistas revolucionárias, não pode ser sustentada nos dias atuais, quando a associação entre as burguesias nacionais e o imperialismo é muito superior. Podem, porém, ser perfeitamente aplicadas às forças nacionalistas da pequena burguesia. As posições esquerdistas parecem desconhecer as elaborações da III Internacional dirigida por Lênin. Isso depois do teste de 1917.
O grande acordo de fundo entre Lênin e Trotsky foi a defesa da concepção do papel determinante da revolução socialista mundial, cujo ensaio geral foi a revolução de 1905 e que foi aberta de modo claro com a revolução de outubro de 1917. É o conceito fundamental que liga Lênin e Trotsky. Em 1905, o internacionalismo de Lênin se expressava na defesa de que a revolução russa com a conquista de um governo revolucionário do proletariado e do campesinato era para acender a fogueira da revolução na Europa. Em 1915, a guerra mundial abriu a situação revolucionária europeia e a revolução de 1917 acendeu esta fogueira. Os tempos se encurtaram e as tarefas da revolução democrática e da revolução socialista se entrelaçaram. A partir daí o triunfo definitivo do proletariado russo dependia do triunfo do proletariado europeu e mundial.
Assim, a defesa de que a revolução começa na arena nacional e segue no terreno internacional, essência da teoria da revolução permanente, sua atualidade indiscutível, a marca de uma verdadeira e autêntica ditadura revolucionária do proletariado, une Trotsky e Lênin. Neste sentido, Lênin e Trotsky são permanentistas. E Trotsky torna-se plenamente leninista quando se incorpora no partido bolchevique em agosto de 1917. Torna-se, segundo Lênin, o melhor bolchevique.
Além desta defesa do caráter internacional da revolução, da necessidade, portanto, de uma organização internacional, ambos eram defensores intransigentes de que a classe trabalhadora era o sujeito social fundamental da revolução socialista mundial, a única classe capaz de ir até o final neste sentido, sendo necessário que a classe operária industrial assumisse o papel de vanguarda, razão pela qual era preciso sempre garantir e impulsionar a independência organizativa da classe e a mobilização pelas suas demandas. A confiança na classe operária sempre foi marca de ambos; estes eram seus princípios, a partir dos quais a obsessão de Lênin era a análise concreta da situação concreta para intervir e lutar pelo poder.
Mas no mundo atual, quando existem chances de um Podemos ser governo na Espanha, com a experiência do Syriza no governo da Grécia, qual a utilidade destas elaborações? Qual o papel das possibilidades de governos intermediários, de ditaduras democráticas do proletariado e do campesinato, para usar a fórmula de Lênin, para que se concretize a luta pela hipótese comunista? Quando Bosttels, um estudioso e próximo às posições teóricas de Badiou, defende as experiências do governo de Evo Morales na Bolívia estamos diante desta hipótese? (BOSTTELS, 2010). São possibilidades de novos regimes sem que o Estado se altere. Esta situação, de qualquer forma, tem limites, porque se os processos revolucionários não avançam, inevitavelmente, retrocedem. O curso da revolução bolivariana tragicamente confirma isso.
Por fim, segue presente uma grande questão cuja marca podemos assinalar na experiência polaca, na derrota do movimento operário polaco do início dos anos 80. Se o movimento operário não encontra o marxismo não teremos uma verdadeira reconfiguração do marxismo nem superaremos, como experiência mais avançada, as soluções e governos intermediários, governos, poderíamos chamar, da ditadura democrática. Teremos que saber aproveitar estes governos, quando eles cumprem um papel progressista, mas não os aceitar mais quando passam a ser um freio. Não se trata de apoiá-los, nem de não apoiá-los nunca. A análise concreta da situação concreta deve decidir. Mas não se pode limitar nosso projeto a este plano. Devemos seguir adiante enquanto a unidade entre os operários e o marxismo não se realiza. E manter a ideia e a luta por uma verdadeira Comuna, cujo combate não cessa. Enquanto não tivermos o encontro destas condições, marxismo e movimento operário, estaremos apenas começando. Mas não se pode esperar de modo testemunhal por este encontro. É preciso trabalhar para ele. E trabalhar para derrotar o capitalismo é preciso também saber aproveitar e desenvolver alternativas parciais, provisórias, intermediárias sempre que representem um verdadeiro passo adiante e sem que tenhamos que abrir mão da mobilização revolucionária como atividade central. A aposta deve ser a continuidade da revolução, ou da luta pela sua efetivação. Para isso a revolução russa segue de inspiração, e por que não dizer: a ela devemos nos manter fiéis. E não há fidelidade a este acontecimento por fora da ideia de organização.
Lênin e o partido
A principal obra de Lênin foi o partido bolchevique. Na ideia de partido se expressou seu combate ao espontaneísmo e ao movimentismo. Lênin defendeu inúmeras táticas, desde a participação nas eleições ou o boicote ao parlamento, passando pelas lutas sindicais e mobilizações por liberdades democráticas, até a tática da guerra de guerrilhas e/ou da associação legal no interior da Rússia czarista. Combinado com inúmeras táticas, Lênin teve a construção de um centro político organizativo, a construção de um partido como guia, como expressão da continuidade da consciência de classe, dos interesses históricos do proletariado nos fluxos e refluxos da atividade revolucionária, como estratégia permanente.
Lênin perguntava: “O que é a luta de classes? Quando os operários de uma fábrica, de um ofício, iniciam uma luta contra seu patrão ou seus patrões, é isso luta de classes?” “Não”, dizia ele. (LÊNIN, 1981, p.199). Sua resposta mostrava que não era suficiente a luta reivindicava, parcial
Isso é tão só seus brotos. Luta dos operários só se converte em luta de classes quando os representantes da vanguarda de toda a classe operária adquirem consciência de que são uma classe unida e começam a atuar contra toda a classe dos capitalistas, e contra o governo que apoia esta classe. Só quando o operário tem consciência de que é parte de toda a classe operária, quando sua pequena luta cotidiana contra um patrão ou um funcionário vê a luta contra toda a burguesia e contra todo o governo, só então sua luta se transforma em luta de classes (LÊNIN, 1981, p. 199-200).
É claro então que a norma da situação não é a existência de luta de classes. A luta de classes tem que ser da ordem da interrupção da normalidade da situação. O desafio é construir o interruptor e não deixá-lo apenas a mercê do desenvolvimento espontâneo. E ao mesmo tempo construir este operador ligado ao movimento de massas, sem o qual não tem energia para nenhuma verdadeira mudança. Na tradição leninista o partido é este operador. A ideia de construção do partido acompanha o marxismo desde seus primórdios.
A luta pela construção do partido ou dos partidos da classe trabalhadora, os partidos comunistas e revolucionários têm uma história que acompanha toda a história do movimento operário. Marx foi o primeiro, junto com Engels, que apontou a necessidade de se fazer a fusão da orientação socialista com o movimento operário. Rompeu com a ideia de conspiração de grupos pequenos que tentavam tomar o poder sem base de massas e defendeu que a tarefa dos socialistas era organizar a luta de classes do proletariado.
Marx apontava a perspectiva da existência de um único partido operário. Esta era a necessidade do momento, quando o proletariado necessitava construir seu próprio partido, independente da democracia pequeno-burguesa. Não tinha como prever que no futuro a heterogeneidade da classe trabalhadora – de renda, de localização geográfica, cultural – poderia dar lugar a distintos partidos da luta política dos trabalhadores. A ideia de partido único da classe não era mais viável. Somente foi retomada depois em sua versão stalinista.
Não obstante sabemos que o esquema de Marx correspondeu a uma avaliação da experiência histórica até então vivenciada pelo movimento operário, somada a uma perspectiva por ele visualizada da dinâmica da luta de classes, com a crescente tomada de consciência dos trabalhadores acerca de seus interesses históricos de classe.
Apesar deste erro, isto é, de considerar que os operários teriam apenas o partido único, Marx estava certo no essencial: o proletariado, os trabalhadores assalariados necessitam de uma organização política independente para defender seus interesses e para desenvolver a consciência de classes. Em outras palavras, a consciência de classes necessitava se concretizar no partido operário independente, rompendo com o espírito de pequenas seitas e círculos conspiradores. Os discípulos de Marx foram adiante e definiram a necessidade do chamado partido revolucionário comunista.
Em 1848 o movimento operário, porém, ainda não estava maduro, mesmo nos processos mais avançados. Trotsky conta como na Áustria os operários lutaram lado a lado com os estudantes, como Viena foi tomada pelas barricadas e numa ação determinada os operários derrotaram a monarquia. A República foi conquistada e ninguém percebeu. O poder estava vago. Apesar disso, os operários não tinham organização nem consciência para tomá-lo. Paralelo a isso, pequenos grupos conspiravam e acreditavam que podiam tomar o poder sem ganhar as massas (TROTSKY, 1979).
Mas “o século XIX não passou em vão”, insistia Trotsky (TROTSKY, 1979, p. 39). As revoluções da metade do século podem ser encaradas como a ponte entre as revoluções burguesas (Inglaterra em 1648, a francesa de 1789, quando foram realizadas tarefas como a queda da monarquia e a reforma agrária, e a dos EUA, em 1776, com a conquista da independência nacional e o não pagamento da dívida externa) e as revoluções socialistas, cuja primeira expressão foi a Comuna de Paris, em 1871. Ambos processos revolucionários – os de 1848 e 1871 – foram fundamentais na construção da compreensão estratégica de Marx e Engels, os dois fundadores do socialismo científico, para os quais a revolução socialista constituíra-se como uma soma de revoluções nacionais cujo eixo geográfico e determinante eram os países centrais, Inglaterra, França e Alemanha, onde o capitalismo havia mais desenvolvido suas potencialidades, entre as quais a própria classe que seria sua negação revolucionária.
O prognóstico exato de Marx não se realizou, mas as revoluções ocorreram transferindo seu centro de gravidade para o leste, para o oriente, como ele mesmo havia sugerido como hipótese durante os anos finais da vida (HOBSBAWM, 1998). Além da experiência das revoluções de 1848, Marx viveu a derrota da Comuna, uma derrota histórica na qual o movimento operário pagou com milhares de vida e um prolongado refluxo, inclusive com a diluição da sua primeira experiência séria de organização internacional, a Associação Internacional dos Trabalhadores, da qual Marx foi um dos fundadores e autor de seu manifesto inaugural. Depois da derrota da Comuna, o mundo viveu três décadas sem efervescência revolucionária, numa situação marcada pelo desenvolvimento econômico capitalista. Foram anos de surgimento do imperialismo, isto é, do início do domínio da formação econômica e social capitalista pelo capital financeiro, união do capital bancário e industrial, regime dos monopólios privados dos países centrais. Ao mesmo tempo, os partidos operários cresciam cada vez mais e o marxismo conquistara a hegemonia nestes partidos. As revoluções, contudo, silenciaram nos países centrais.
Durante a Comuna de Paris, em 1871, Marx analisou o processo e incorporou novas lições. A principal foi de que o Estado burguês precisava ser destruído, toda sua máquina militar e administrativa. Marx saldou a Comuna como primeira experiência de poder operário, início da dissolução do Estado – expresso na rejeição ao exército profissional, no fim da separação entre poderes e na construção de uma instância única deliberativa e executiva, bem como na criação de um corpo de funcionários eleitos e exoneráveis – deixando claro, por sua vez, que a derrota da Comuna não evitaria novas revoluções, cuja experiência ficaria guardada na memória do movimento de massas. Apesar disso, Marx reconheceu e apontou seus limites: a fraqueza da centralização militar, a não centralizalização do sistema bancário, o que provocava a impossibilidade de definir prioridades financeiras. Este balanço será retomado sem alterações por Engels 20 anos depois.
Alain Badiou define que este balanço é ambíguo justamente porque seus limites, os déficits, as lacunas da Comuna apontadas por Marx, eram decorrentes dos méritos igualmente apontados por ele, sobretudo o mais importante deles: a dinâmica da Comuna de ser o início da dissolução do Estado. Predominou o menos Estado, segundo Badiou, também no aspecto da centralização militar e financeira (BADIOU, 2012a). Conclui que “a ambiguidade do balanço de Marx foi promovida, por mais de um século, pela disposição social-democrata e, em seguida, por sua radicalização leninista, isto é, pelo motivo fundamental do partido. O partido “social democrata”, o partido “da classe operária”, o partido “proletário”, ou mais tarde o partido “comunista”, é livre em relação ao Estado e ao mesmo tempo ordenado pelo exercício do poder” (BADIOU, 2012a, p 104).
Badiou aponta justamente que a construção do partido foi a solução encontrada para a necessidade de lutar para dissolver o Estado e ao mesmo tempo enfrentar, atuar no período de transição, na tomada do poder e no exercício dele. O partido é “um órgão puramente político, constituído por adesão subjetiva, por ruptura ideológica, e, como tal, externo ao Estado. Ele é livre em relação à dominação: traz em si a temática da revolução, da destruição do Estado burgues” (BADIOU, 2012a, p 105). Ao mesmo tempo, o partido é organizador e disciplinador, instrumento para a tomada de poder. “Traz em si a temática de um Estado novo”. Segundo Badiou, podemos dizer que o partido realiza a ambiguidade do balanço marxista da Comuna, dá corpo a ela. O partido torna-se o lugar político de uma tensão fundamental entre o caráter de não Estado, ou mesmo anti-Estado, da política de emancipação e o caráter de Estado da vitória e da duração desta política. E isso tanto se essa “vitória” for insurrecional quanto se for eleitoral: o esquema mental é o mesmo (BADIOU, 2012a, p 105).
Com isso trata de explicar como ganha peso a ideia do partido na elaboração do marxismo. E foi Lênin que tirou as conclusões políticas da repercussão da Comuna no problema do partido em todas as suas dimensões. Lênin é o pensador do partido revolucionário, o construtor do operador necessário para levar adiante o projeto da Comuna, a luta por dissolver o Estado e ao mesmo tempo manter o poder operário, ou seja, manter e desenvolver esta unidade contraditória entre a revolução e o poder. Por isso o partido foi tão determinante na elaboração de Lênin. Era a instituição que aprendia a experiência da Comuna, que visava manter a centralização e ao mesmo tempo ir dissolvendo o aparato estatal.
Sylvain Lazarus apontou o salto na elaboração da teoria do partido em Lênin em relação à teoria de Marx. Sobre Que fazer? defende uma ideia correta:
“Em Que fazer Lênin rompe com a tese de Marx e de Engels do Manifesto Comunista (1848), no que respeita ao caráter espontâneo da aparição dos comunistas dentro do proletariado moderno. Em contraposição à tese marxista, que diz que “onde há proletários há comunistas”, Lênin opunha a consciência espontânea à consciência socialdemocrata (quer dizer, revolucionária), levando esta oposição aos seus limites” (LÁZARUS, 2010, p.248).
Aprendendo corretamente a diferença entre o social e o político, Lazarus vai adiante e coloca ainda que esta tensão não se produz entre o que é para Marx um comunista e o que é a consciência revolucionária para Lênin. Neste ponto estavam de acordo. Podemos recordar as três características que se propõem no Manifesto: ter uma visão científica do curso da história, privilegiar os interesses nacionais por cima dos locais e privilegiar os interesses do proletariado mundial em relação ao proletariado nacional (LÁZARUS, 2010, p.248). Onde a tensão se encontra é no que segue:
“No fato de que para Marx a aparição dos comunistas é algo intrínseco à existência dos operários como classe. Lênin se distancia desta tese com sua crítica do que ele chama de consciência espontânea. A consciência revolucionária, a aparição de militantes revolucionários não é um fenômeno espontâneo; se trata de um fenômeno muito particular e requer uma ruptura com formas espontâneas de consciência. O núcleo político da consciência não espontânea é o antagonismo relativo à totalidade da ordem social e política existente. O partido é o mecanismo de realização das condições que permitirão o surgimento de uma consciência política. Em Marx, de fato não há uma teoria da organização, nem podemos falar de uma verdadeira teoria da consciência política. Existe uma teoria, importante e fundamental, da consciência histórica e da consciência como consciência histórica: a história da humanidade é a história da luta de classes. Eu mantenho que Lênin supõe a fundação da política moderna, porque afirma que se requer a política revolucionária para anunciar e praticar as condições da existência daquela” (LAZARUS, 2010, p. 249).
E, para a fundação da política moderna, a experiência da Comuna foi decisiva. Para Badiou, justamente “em 1902, Lênin criou a política moderna, criação registrada em O que fazer?” (BADIOU, 2007a, p 18). Neste livro expõe uma série de categorias fundamentais para o desenvolvimento da teoria do partido de novo tipo; um partido capaz de lutar pela destruição do estado burguês e como operador de um novo estado. Na construção de um partido deste tipo, a categoria do revolucionário profissional é central, isto é, a ideia de que a revolução necessita de líderes experientes que encarem a atividade sem amadorismo, de modo profissional, não apenas como dirigente estudantil, ou sindical, como parlamentar o líder do movimento de moradia. Por isso dizia que os operários necessitavam muito mais de um tribuno do povo do que de um líder sindical. Para Lênin, era preciso ter uma estratégia de luta pelo poder. Definia de modo claro que sem partido não há política, e que a política é a luta pelo poder que se realiza na luta entre os partidos. Para Lênin, a luta de classes é a luta de partidos.
E para a construção do partido há necessidade da criação, da invenção, da construção de ações, do aproveitamento de possibilidades, da ocupação de espaços, do cálculo dos tempos e da relação entre o espaço e o tempo, ora para acelerar o tempo, ocupando muito espaço, ora cedendo espaço para ganhar tempo. É preciso, para construir um partido, que a ação e o pensamento aceite uma disciplina. Quando quer “que reine no partido proletário “disciplina de ferro” é que ele sabe que os proletários, desprovidos de tudo, não têm a menor chance de triunfar se não se impuserem a si próprios, como consequência e figura material de sua consistência política, uma inigualável disciplina de organização” (BADIOU, 2007a, p 130). De fato, Lênin foi categórico na importância da disciplina e do partido com mediador de uma consciência dos interesses históricos do proletariado que vem de fora, o partido como operador do trabalho de mediação entre o espontâneo e o consciente, entra a ação espontânea da classe e a ciência, o conhecimento vindo do exterior e a consciência embrionária. Lênin deu mais peso que Marx para atribuir hierarquia ao partido e à política como mediador e operador.
Mas Lênin pode desenvolver e dar um salto nas elaborações iniciadas por Marx porque viveu num período em que se desenvolveu de modo mais claro a chamada aristocracia operária, base social do oportunismo como corrente particular surgida no seio do movimento operário, influência direta dos interesses burgueses no interior da classe trabalhadora. No Imperialismo, fase superior do capitalismo, explicou que a base social do oportunismo eram os privilégios obtidos pelos superlucros da exploração das colônias e distribuídos pela burguesia com a chamada aristocracia operária. Num quadro destes, onde surgia uma corrente oposta aos interesses da revolução, era preciso saber dividir e não apenas unir. Lênin e, antes dele, ainda que não de modo tão rico, Rosa Luxemburgo, explicaram o que Marx não pode fazer, o oportunismo como corrente do movimento operário e a maior razão da divisão da classe operária, da impossibilidade de um partido único da classe operária (LÊNIN, 1985).
Vimos o fenômeno do oportunismo no Brasil durante a experiência do PT, com forma diferente, desta vez revestido por privilégios dos setores melhores remunerados da classe operária temerosos de engrossarem o exército de reserva permanente e os excluídos que nem na reserva encontram-se. Tal análise do oportunismo se mantém atual.
Lênin organizou as forças comunistas e derrotou as correntes oportunistas, dirigindo a Revolução Russa e formando a III Internacional comunista, o projeto de partido mundial da revolução socialista. Mas o fracasso das revoluções anteriores e sobretudo o stalinismo não deve nos fazer abandonar a forma-partido?
É evidente que depois do fracasso da social democracia e, sobretudo, do stalinismo, a relação que acredito que devemos ter com o projeto comunista talvez seja melhor explicada recorrendo a Zizek e suas piadas. Zizek pergunta por que a teologia está surgindo como ponto de referência da política radical, uma questão evidente na linguagem de Badiou. Sua resposta é que o “paradoxo que ela vem surgindo não para aparecer um “grande Outro” divino que garanta o sucesso final de nossos esforços, mas, ao contrário, como símbolo de nossa liberdade radical, sem nenhum grande outro com que possamos contar” (ZIZEK, 2012b, p 289). Zizek se refere a Dostoiévski, que já lembrava que Deus não é um mestre benevolente que nos guia para a segurança; estamos na verdade totalmente abandonados a nossos próprios recursos. E os recursos incluem a forma-partido como invenção necessária da luta contra o regime de exploração do homem pelo homem. Não se pode perder a piada e sua reprodução é útil:
‘O Deus que temos aqui é mais como o Deus da piada bolchevique sobre um talentoso propagandista comunista que, depois da morte, vai para o Inferno, onde rapidamente convence os guardas a deixá-lo ir para o Céu. Quando o Diabo nota sua ausência, corre fazer uma visita a Deus e exige que o propagandista seja devolvido ao Inferno. No entanto, assim que o Diabo começa a falar com Deus, “Meu Senhor…”, Deus o interrompe: “Em primeiro lugar, não sou seu senhor, sou um camarada. Em segundo lugar, você é maluco para falar com uma ficção? Eu não existo! Em terceiro lugar seja rápido, senão perco a reunião da minha célula do partido!” “.(ZIZEK, 2012b, p. 289).
Zizek (2012b, p. 290) segue dizendo que este é “o Deus que a esquerda radical precisa hoje: um Deus que “se tornou homem”, um camarada entre nós, crucificado com dois excluídos e que, além de “não existir”, sabe disso e aceita seu próprio apagamento, passando inteiramente para o amor que une os membros do “Espírito Santo”, isto é, o partido e outras formas de coletivo emancipador”.
Zizek retoma a defesa da ideia do partido. O partido que deve ser reivindicado, contudo, é o partido de novo tipo. Um partido que tenha como estratégia a luta revolucionária para a construção de um Estado-comuna, não de um partido-Estado. Como corretamente explicou Bensaid,
“tentar imaginar uma estratégia sem partido, é como um militar que tem em suas mãos as cartas do Estado maior e os planos de guerra, porém sem ter tropas nem exército. Só há estratégia realmente se há, ao mesmo tempo, a força que a leva a cabo, que a encarna, que a traduz dia a dia na prática, etc. “(BENSAID, 2009, p.06).
Nesta retomada do projeto comunista e da questão do partido, porém, é absurdo repetir o erro de aceitar qualquer lógica que diga que o partido tem sempre razão. Sobretudo depois da experiência do século XX e do desastre do stalinismo afirmar o partido comunista, ou partido revolucionário dos trabalhadores, ou o nome se queira dar, como garantia da linha correta não resiste à mínima crítica. Tal ideia se desmorona na hora. Não há garantias. A luta por uma política de emancipação encontra na fidelidade as suas marcas, as pegadas deixadas por acontecimentos revolucionários passados, como sua única possibilidade de desenvolvimento. E a aposta é construir o partido como operador desta política, da luta por construir um novo Estado como mecanismo de transição e não como fim de uma verdade que na realidade é infinita. Um partido, ademais, que seja internacionalista. Trata-se, portanto, de superar as experiências das revoluções do século XX. O Estado de transição então não pode ser o partido-estado, cuja essência é o partido único e burocrático sustentando e se apoiando num estado cada vez mais forte e opressor. E para lutar por um estado de novo tipo é preciso um novo partido, de novo tipo, um partido internacionalista e baseado na ideia de Lênin de partido operador, que foi muito diferente dos partidos da II Internacional.
Para os partidos social-democratas sua tarefa era essencialmente pedagógica uma tarefa de educador, fundada sobre a concepção de uma sorte de lógica, espontânea do movimento de massas em que o partido aportava ideias, com escolas muito interessantes, etc. Para retomar a fórmula de um famoso dirigente da social-democracia de antes de 1914, o partido não tinha que preparar uma revolução” (BENSAID, 2009, p. 07). Bensaid mostrará em seguida que a concepção de Lênin é outra: o partido deve tomar iniciativas, propor objetivos de luta, lançar palavras de ordem que correspondam a uma determinada situação e, em um momento dado, ser capaz de orientar a ação” (BENSAID, 2009).
Por fim, mas não menos importante, é dizer que partido revolucionário quer dizer também defender a ideia de partido pluralista. Badiou explicando que se pode ter posições, sensibilidades diferentes e participar com esta diferença de uma mesma verdade, apresentava um exemplo da apreciação de um quadro artístico. Pode ter olhares diferentes de uma obra de arte, mas ter o mesmo juízo de que a obra é bela. Mas com sensibilidades diferentes acerca de como apreciar esta beleza e participar conjuntamente do protocolo desta verdade (BADIOU, 2013c). O compromisso com a verdade militante, com a fidelidade à revolução não exige acordo sobre todas as questões de teoria, nem de políticas. Badiou também defende uma lógica desta pluralidade, onde o princípio da contradição é derrogado e possa ocorrer que uma proposição e sua negação sejam ambas verdadeiras.
Definir a importância do partido e a necessidade de um estado de transição não pode, entretanto, ser encarado como o fim em si mesmo, como a verdade da política da emancipação. Tanto o partido quanto o Estado de transição devem ser encarados como operadores, não como o objetivo final. A ideia do comunismo corresponde a uma verdade que não pode encontrar sua parada numa estação determinada da luta de classes. Portanto, nem o partido nem o Estado podem ser a parada. Mesmo do ponto de vista do marxismo clássico, enquanto as classes existirem, a verdade deve ser encarada como meta a ser alcançada e, logo, a fidelidade deve ser aos acontecimentos que irrompem e empurram em direção às mudanças permanentes. Esta é apenas uma forma de defender a revolução permanente e a estratégia do protagonismo da mobilização de massas.
Para ser mais concreto, trata-se da defesa do caráter internacional da revolução. Esta, aliás, deve ser uma conclusão lógica do fracasso do socialismo num só país. Trotsky sempre denunciou a ideia do socialismo num só país como reacionária. O desdobramento da mesma foi a utopia de competir economicamente com o capitalismo. A tal utopia reacionária. Neste ponto o fracasso foi claro. A economia socializada carrega enormes progressos e permitiu que países atrasados conquistassem grandes avanços nas forças produtivas. Mas o mundo não tem desenvolvimento linear. O progresso de países atrasados não teria condições de representar uma superação do capitalismo dos países avançados. Até porque a produtividade dos países cuja economia é socializada não pode superar a produtividade alcançada pelos países avançados do capitalismo, estimulados por forças produtivas mais avançadas e pela própria concorrência que atua como um chicote, com enorme capacidade coercitiva no sentido de aumentar a produtividade.
Assim, o preço do socialismo num só país não poderia ser outro senão a bancarrota da revolução. No caso foi a burocratização e logo a restauração, como previu Trotsky. Não queremos aqui esgotar temas nem explicações reducionistas. Na contraditória situação mundial chegamos a ter o fenômeno de uma revolução socialista que assentou as bases de um novo salto do capitalismo. Foi o que ocorreu na China, cujo dinâmico – e ao mesmo tempo destrutivo – capitalismo atual somente se explica pela unificação nacional e pelo avanço das forças produtivas promovidas pela revolução de 1949. Fazer um balanço da experiência das revoluções socialistas do século XX vai muito além de nosso objetivo nesta reflexão.
Nossa ideia de fidelidade à Revolução de Outubro não implicou jamais em seguir a orientação dos partidos comunistas. O movimento trotskista representou esta tentativa. Olhar a experiência do trotskismo é fundamental para os que negam a ideia de um partido que controle o Estado, porque foi precisamente o trotskismo o movimento que se construiu mantendo a ideia de que a fidelidade a Lênin somente podia se concretizar com a permanente luta pela democracia operária que pressupõe a autodeterminação e o poder das massas, dos operários, dos camponeses, dos trabalhadores em geral exercidos via seus próprios organismos. Não, portanto, o modelo do partido-estado, mas do Estado-Comuna.
A crítica ao abandono do Estado-Comuna esteve no centro da crítica de Trostsky ao stalinismo. Foi com sua obra que se permitiu uma compreensão do processo de burocratização e da ascensão do Stalinismo. Apesar de ter fundado a IV internacional num momento de refluxo da revolução mundial, Trotsky tinha a ideia de que a fundação da IV estava relacionada com a necessidade de manter vivo o programa comunista. Portanto, ter continuidade histórica com a revolução de outubro, com a experiência bolchevique, com a experiência da III Internacional ou com a própria experiência de Marx.
A fidelidade à Revolução Russa não quer dizer seguir as marcas da defesa política dos Estados burocratizados (ainda que o apoio contra qualquer agressão imperialista deva ser dado) e dos partidos comunistas, mas nas revoluções políticas que se seguiram. O primeiro sintoma de revolução política ocorreu com o levante dos operários alemães de 1953. A seguinte, mais forte, em 1956, na Hungria, novamente derrotada pelos tanques soviéticos. Tivemos, justamente no ano de 1968, a experiência da primavera da Praga, na Checoslováquia, e anos depois a experiência mais rica, a da Polônia em 1980-81, uma experiência com muitas contradições. Em tal revolução foram retomadas questões fundamentais, em primeiro lugar, a ideia dos operários como protagonistas centrais e a auto-organização como elemento determinante do processo revolucionário, a construção do Sindicato Solidariedade. O golpe contrarrevolucionário de 1981, levado adiante pela burocracia polaca, com o apoio da então URSS, derrotou o Solidariedade, dando as bases do triunfo final da restauração capitalista no leste europeu.
A imensa maioria das forças e intelectuais do mundo que se reivindicava comunista denunciava a revolução polaca como contrarrevolução dirigida pela Igreja e pela CIA. Fidel Castro, por exemplo, com todo seu prestígio, propagava esta posição contrarrevolucionária e pró-burocrática. Alain Badiou, ao contrário, viu na revolução polaca a possibilidade de solução da crise do marxismo pela via da destruição do “marxismo-leninismo”, pela via imanente, isto é, pelo interior mesmo dos operários em luta. Tal posição não tem como não nos remeter à ideia da revolução política defendida por Trotsky.
De fato a experiência polaca foi uma experiência importante porque não havia aí um partido marxista revolucionário; o processo era muito mais marcado pelo protagonismo do operariado. Havia muita confusão na consciência, além do peso da Igreja. Mas o problema central é que a revolução foi derrotada. Foi um golpe contrarrevolucionário. Não foi feita a experiência dos operários com a sua consciência, com o seu processo de auto-organização, um processo que poderia abrir uma nova possibilidade de política de emancipação de massas se realmente tivesse culminado na tomada do poder pelos organismos operários.
No balanço geral o saldo é difícil de definir. No leste e na ex-URSS, o stalinismo caiu e ao mesmo tempo a restauração capitalista se impôs. Até alguns setores trotskistas tomam este fato como uma derrota histórica do movimento socialista, tendo como base o argumento de que em termos sociais se viveu uma contrarrevolução social. Com tudo isso, podemos dizer que ocorreu um colapso de um saber, já que foi algo imprevisível e que não encontrou uma boa explicação. É um elemento de crise do marxismo. Afinal, a classe trabalhadora fracassou em sua tentativa de revoluções socialistas? A burocratização e a restauração argumentam a favor deste fracasso. E a ideia de revolução política mantendo as bases não capitalistas da economia era uma utopia trotskista? As derrotas destas tentativas foram claras. Por fim, ao longo das últimas duas décadas, pós 1989, se apresentou o capitalismo como único modo de produção possível. Viver sem ideia, porém, não esta entre nossas opções. Cair no ceticismo do fim da historia é esta ausência. E agora? E depois de 2008? Já são mais de 8 anos de crise. Existem economistas burgueses que falam em estagnação secular. São economistas, intelectuais, especialistas dos capitalistas que fazem estas definições. Quando estourou a crise em 2008 muitos previram no mínimo dez anos de estagnação; estão próximos de completar os dez anos e não vemos mais um capitalismo glorioso no horizonte.
O que está posto a partir daí é justamente discutir este quadro. Agora nós entramos num outro período. Se há algo claro é que o capital está em crise. E igualmente está claro que a política dos capitalistas é cada vez privatizar mais, transformar tudo em mercadoria e explorar de modo crescente a mercadoria força de trabalho. Esse é um conceito marxista que não está em questão: a ideia de que o capitalismo vai levar a um processo de ataque cada vez maior aos interesses dos trabalhadores e da juventude, aos interesses econômicos e sociais. Deste ponto de vista não tem crise no marxismo.
O agravamento de todas as contradições e a intensificação de todas as crises – econômica, política, social, ambiental – são parte deste novo e inédito período histórico. A falta de uma alternativa política socialista de massas aponta, porém, os limites para a superação desta crise. Aqui temos novamente a discussão sobre o tema do partido. Com o fracasso das experiências comunistas, o que parece estar evidente é que há uma ausência de modelo alternativo ao capitalismo e isso tem muita relação com a identificação entre comunismo e stalinismo. Assim, a combinação da falta de uma alternativa pela esquerda, a continuidade das dificuldades da acumulação do capital e do enfraquecimento das representações políticas burguesas e/ou burocráticas arrasta a crise no tempo e em muitos casos leva a sociedade a impasses da vez mais graves.
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