“A chave-mestra da questão econômica está na agenda dura da política”

Em entrevista, o economista uruguaio explica que o país que se insere de forma subalterna na divisão internacional do trabalho.

Rodrigo Alonso 22 jul 2017, 01:34

Hemisferio Izquierdo – Na atualidade, as avaliações sobre a situação econômica do Uruguai oscilam entre uma visão otimista que destaca o controle dos efeitos mais negativos da crise internacional e manutenção de níveis de crescimento do país em meio ao estancamento econômico regional; por outro lado, uma avaliação mais negativa que assinala que, ao mesmo tempo em que não se transformou a matriz produtiva, nem o tipo de inserção internacional da economia uruguaia e muito menos as relações de poder e de propriedade da estrutura econômica nacional, o Uruguai segue reproduzindo desigualdades e continua a mercê das crises recorrentes próprias da globalização capitalista. Qual é o seu diagnóstico da situação econômica do Uruguai atual?

Rodrigo Alonso – A economia uruguaia encontra-se num ponto de inflexão ou de transição para uma sorte de estado de lentidão ou meseta depois de um dos períodos de maior crescimento de sua história e como consequência disso começa a mostrar seus limites e suas caras menos amáveis. Para entender por quê, é necessário introduzir algumas ideias sobre o comportamento geral da economia uruguaia.

A dinâmica do capitalismo no Uruguai por sua forma particular de inserção econômica internacional se baseia no uso dos fluxos extraordinários de renda agrária que recebemos em troca de nossas exportações para compensar uma estrutura de capitais basicamente ineficiente cuja produtividade média é ao redor de um terço da dos países capitalistas mais avançados. O mecanismo pelo qual esta compensação se fez efetiva na última década de renda alta (período progressista) foi a sobrevalorização cambial, isto é, um dólar barato. Um peso alto (ou dólar barato) afeta ao latifundiário-exportador e beneficia a acumulação interna por meio do barateamento de meios de produção e bens-salário importados. Esse movimento é a condição de possibilidade fundamental do dinamismo econômico e a agregação “tranquila” de interesses contrapostos da última década. Sem esse fluxo de renda crescente provavelmente hoje não estaríamos falando do “ciclo progressista” na América Latina e Frente Ampla não teria ganho três vezes com maiorias parlamentares. É natural que o elenco político que geriu a economia uruguaia pretenda receber os créditos do 5% de crescimento anual da última década, mas o certo é que o crescimento econômico no fundamental não depende de governos ou gestores e no limite nem sequer da política macroeconômica. Esta última basicamente administra tendências e nisso influi tangencialmente nelas, mas não as cria nem as explica. Administra marés, e essas marés estão dadas pelo movimento geral que assume o capital num país rentista da periferia 1.

A situação econômica atual está pautada pelo fato de que a partir de 2014 entramos numa fase de estancamento e retrocesso da renda que se faz visível na queda do preço das matérias primas. É de se esperar então um período de menor dinamismo na acumulação e da colocação em marcha de outros dispositivos de compensação para o precário capitalismo uruguaio. Aí aparece no horizonte a necessidade de um novo ciclo de endividamento externo. As preocupações pelo déficit fiscal e em consequência pela nota da dívida uruguaia vão no sentido de preservar crédito barato para o país. Por outro lado, os fluxos de investimento estrangeiro agora se tornam mais necessários para manter a acumulação em marcha pelo que são previsíveis maiores incentivos.

Contrair dívida permite comprar tempo em troca de trabalho futuro, é uma forma de chutar as contradições para frente incrementando-as. Mas, ao não se recuperar o fluxo de renda, nossa economia deve lançar mão da depreciação da força de trabalho como novo elemento compensador de seu atraso produtivo. Junto a isso, começa a subir o desemprego, tal como está ocorrendo, manifestando que já aumenta a quantidade de uruguaios que sobram ao capital, o que põe os trabalhadores sobre uma incômoda, porém real, disjuntiva entre salários e postos de trabalho, enfraquecendo a sua capacidade de negociação. Neste cenário, todo o gasto que não contribua para a acumulação começa a estorvar. Os recursos públicos orientados à sobrevivência da população estruturalmente excedente se colocam em questão. A frente pró-ajuste começa a ganhar força social e política.

O saldo que resta depois de um dos períodos de maior crescimento da história tampouco é excepcional. A economia uruguaia tem quase cerca de 8,5 % de desempregados, com forte incidência juvenil e feminina: um de cada quatro jovens entre 14 e 25 anos está desempregado e se apenas levamos em conta as mulheres temos quase uma em cada três jovens uruguaias entre 14 e 25 anos busca e não encontra trabalho 2. Estes dados não levam em conta aquelas pessoas que já desistiram da busca laboral pelo que a massa de gente sobrando é ainda maior, ainda sem considerar aquelas pessoas que se “auto-empregam” em atividades informais de venda varejista, como flanelinhas ou outros serviços precários, ou vivem da mendicância.

A pobreza geral, por sua vez, está em torno de 10%, sendo crítica para as crianças menores de 6 anos, onde em Montevidéu, quase um terço vive em lares pobres.3

Os famosos “equilíbrios macroeconômicos” da última década, além do alto fluxo de renda, descansam sobre o fato de que a metade da força laboral do país ganha menos de 600 dólares mensais 4. Isso não é uma invenção própria. Disse isso todo o tempo o Executivo quando adverte que aumentos salariais superiores aos pautados trariam consequências inflacionárias indesejadas. Ou seja, num dos melhores momentos do capitalismo uruguaio ainda sobram pessoas, sobretudo mulheres jovens, há graves níveis de pobreza infantil e sustenta seus equilíbrios sobre a base de quase a metade de sua força de trabalho ganhando menos que 600 dólares.

Neste ponto, poderá ser dito que nos anos 90 a situação estava muito pior, mostrando-se uma série de indicadores que atestam isso. O que seria correto. No entanto, tem pouco sentido comparar uma fase econômica com escassez de fluxo de renda e investimento estrangeiro, como os anos 90, com uma fase de níveis históricos dessas duas variáveis. Caso trata-se de fazer comparações, seria mais fértil comparar o que temos com o que poderíamos ter se 62% da riqueza total que hoje está nas mãos de 10% 5 da população fosse um ativo social comum ou se cerca de 40% do total da renda que hoje é apropriada pelo 10% 6 mais rico estivesse equitativamente distribuído.

H.I. – Desde os setores mais críticos, assinala-se que num marco de depreciação dos produtos primários que o Uruguai exporta, e sem uma alteração da estrutura de poder e propriedade da economia interna, o cenário a médio prazo é o de um ajuste sobre os setores trabalhadores com consequências de desemprego e marginalização. O que pensa desta projeção? Quais são os cenários que cabe esperar no curto e no médio prazo? Que alinhamentos de política econômica teria que levar adiante para afrontá-los?

Sem recomposição relevante do fluxo de renda cedo ou tarde haverá ajuste, mas sobretudo haverá um assentamento de um capitalismo que estruturalmente assumirá traços mais regressivos. À medida que aumenta a escala da acumulação mundial e se amplia a brecha de produtividade que nos separa de outros espaços de acumulação, é necessário um fluxo cada vez maior de renda para sustentar nossa economia. Se este fluxo não cresce ao ritmo necessário ou diretamente cai, em primeiro lugar os que administram começam a comprar terra captando fluxos de dívida, quando isso já não dá mais é previsível que se inicie a deterioração do tecido econômico nacional com capitais que perecem, estancamento ou retrocesso dos salários e o aumento da população operária excedente. As bem-intencionadas propostas de “blindar” direitos formalizando-os em leis ou outros mecanismos pelo estilo não serão suficientes para assegurá-los porque um marco legal é incapaz de resistir ao impulso de uma necessidade orgânica do padrão de acumulação.

No momento, as respostas a esta deriva que se colocam desde alguns setores de esquerda põem o foco no fomento da demanda agregada (ampliar poder aquisitivo dos salários e promover o investimento público) como forma de sustentar a economia. Uma espécie de keynesianismo periférico a ser financiado com o aumento de alguns impostos ao capital. Na minha opinião, este tipo de medidas, numa fase de renda do solo baixa, só é possível no marco de continuar o ciclo de endividamento e, portanto, apenas se nos permitem ganhar um pouco de tempo a preço de aumentar o tamanho do ajuste antipopular necessário. Na América do Sul, sem boom de matérias-primas, carecemos da materialidade necessária para que seja viável um capitalismo virtuoso de inspiração cepalina. Intervenções a partir da política que vão no sentido contrário ao efetivamente requerido pelo capital, mas que tampouco avançam sobre ele, tendem a torná-lo caótico. Por outro lado, a possibilidade de avançar pela via impositiva sobre o capital tem limites imediatos, porque como víamos, o capital no Uruguai precisa de diferentes mecanismos de compensação para continuar se reproduzindo, entre eles as exonerações ou a baixa carga de impostos. Não que inexista margem de ação para esse lado, mas ela é pequena e não resolve o problema de fundo.

Vários dos eixos de luta que hoje em dia desenvolvemos (luta orçamentária, salarial, etc.) são de caráter imediato e no caso hipotético de triunfar nos podem permitir evitar retrocessos no curto prazo mas no mediano transferem o problema a outro âmbito (déficit fiscal e dívida; ou inflação), portanto não resolvem a contradição, mas em suma a postergam e a transportam de lugar. Se apenas travamos batalhas de registro tático e imediato, podemos avançar em organização e confiança e evitar retrocessos, mas devemos ser conscientes de que com isso vamos estar desordenando o metabolismo do capital e portanto aumentando a necessidade do ajuste posterior. É imperioso aprofundar o debate sobre os limites do capitalismo no Uruguai.

Por outro lado, aparecem expressões políticas que colocam o foco no extrativismo como o problema central. No curto e médio prazo é inviável que o Uruguai renucie aos dólares que resultam de suas exportações primários, o que faz com que o chamado “extrativismo” continue sendo uma realidade que se impõe pela força da atual divisão internacional do trabalho. Opor a isso uma proposta baseada na pequena propriedade semi-artesanal seria insustentável política e economicamente.

O problema colocado é como opomos à deriva do capital um projeto de base produtiva capaz de sustentar um país com seu povo adentro. Isso não se resolve no campo da política econômica. Em última instância, a chave mestra da questão econômica está na agenda dura da política: o problema do poder, a propriedade e a matriz produtiva. Não é um assunto de tecnocratas ou gestores.

A forma de reprodução da economia uruguaia contém em si mesma seu próprio limite. Ao dinamizar a acumulação mudando a renda do solo pelos bens importados barateados através de um dólar baixo, inibem-se as possibilidades do desenvolvimento de setores produtivos capazes de competir internacionalmente. O que dinamiza o capitalismo uruguaio ao mesmo o confina a reproduzir sua matriz produtiva. É um problema congênito do qual só se pode sair com uma redefinição do poder político de classe que seja capaz de se apropriar da renda do solo e colocá-la a serviço de setores com capacidade de inserção sustentável à escala mundial, algo que só é possível no marco da agregação de uma escala continental, pelo que a integração regional é fundamental. A chave, então, para um projeto sustentável está em utilizar os fluxos de renda e o que hoje se dilapida em consumo suntuário por parte das elites como um fundo de acumulação primitiva em escala continental, o que faz necessário pensar a política para além do próprio Uruguai.

No médio prazo e num plano mais concreto aparecem algumas frentes específicas sobre os quais se pode intervir com propostas de fundo. A título de exemplo: o problema do poder aquisitivo dos salários requer um Plano de Abastecimento Nacional que assegure o fomento efetivo dos bens-salário que compõem a cesta de consumo dos trabalhadores; a política imobiliária atual (ou melhor, sua ausência) implica um enorme problema de acesso à moradia, mas também é uma das maiores fontes de transferência regressiva de recursos de trabalhadores a proprietários através do fluxo de aluguéis. Neste plano, requer-se uma estratégia que vá além do controle de preços para assegurar o acesso à moradia. Em geral, as diferentes frentes possíveis devem ser abordadas a partir da introdução de níveis de planificação econômica que disputem com o mercado a condução do metabolismo econômico. Isto é, uma política transversal de desmercantilização da economia que tenha como ponto de apoio à planificação do Estado em articulação com espaço de poder popular organizado.

No horizonte, visualiza-se um período de lentidão ou meseta da acumulação, que pautará o ingresso do capital numa fase mais regressiva, aumentando tensões que provavelmente se arrastarão até se tornarem insustentáveis. Quando chegar a esse ponto, a ofensiva do capital será aberta sobre os salários e o gasto do Estado orientado ao salário indireto e a contenção da população excedente. Neste intervalo, é preciso construir as capacidades políticas para contrapor à crise do capital uma perspectiva socializante capaz de avançar sobre seu metabolismo.

Norbert Lechner dizia que “criar uma ordem é uma forma de criar continuidade”; do mesmo modo poderíamos dizer que criar continuidade é dar sentido a uma ordem. A promessa que nos situa rumo a um capitalismo primeiro-mundista é o grande metarrelato que se cultivou no Uruguai e que neste novo cenário começa a se desgarrar. Seguindo por este rumo, no horizonte não estará a Escandinávia, mas outro 2002 a resolver-se com confisco salarial e expulsão de mais uruguaios do país ou do modelo, seguido pela canonização tributada a novos Batlles e Atchugarrys como símbolos da concórdia nacional.

A realidade nos bate à porta ante a queda do fluxo de renda e nos enfrenta o fato de que desde a crise do neo-batllismo em diante, o Uruguai progressista tem sido a exceção e não a regra. São necessárias altas doses de realismo para compreender que o “capitalismo como a gente” no longo prazo tende a se afundar, porque é para aí que vamos.

(Entrevista originalmente publicada pelo Hemisferio Izquierdo. Tradução de Charles Rosa)


Notas do autor

1 Esta perspectiva com centralidade na renda agrária foi desenvolvida inicialmente pelo economista argentino Juan Iñigo Carrera. Para um maior desenvolvimento da mesma, ver a entrevista com Juan Iñigo Carrera realizada por Hemisferio Izquierdo  ou a entrevista com Gabriel Oyhantcabal na revista Brecha 

2 INE

3 INE

4 Com base no documento sobre “quincemilpesistas” do Instituto Cuesta Duarte.

5 Ver tese de graduação de Mauricio de Rosa

6 Instituto de Economía de la Universidad de la República.


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Pedro Micussi