Não apenas estar certo, mas tornar-se livre

A professora norte-americana faz uma análise do último livro de David Roediger intitulado Classe, Raça e Marxismo.

Christina Heartherton 21 jul 2017, 12:41

Como devemos pensar a relação entre raça e gênero na esquerda? Como Christina Heatherton nos lembra nesta série de reflexões sobre o novo livro de David Roediger – Classe, Raça e Marxismo – preparadas para o lançamento do livro em Nova Iorque, a questão não é sobre estar certo, mas sobre tornar-se livre.

A nova coletânea de David Roediger, intitulada Classe, Raça e Marxismo, é uma contribuição bem vinda ao debate marxista, tanto entre quanto sobre a esquerda antirracista. Nestes debates, como Ruth Wilson Gilmore nos lembra, a questão não é apenas sobre estar certo, mas sobre tornar-se livre. Este é, para mim, o espírito que caracteriza o novo trabalho de Roediger.

O livro inicia-se com uma questão de legibilidade – como nós entendemos a luta de classes no presente, especialmente quando tantas pessoas têm se mobilizado por temas relativos ao racismo, como assassinato policial, a interdição do visto de entrada a muçulmanos, leis antiimigração, encarceramento em massa, ataques de drones, assassinatos de pessoas trans de cor e violência militarizada a povos originários [militarized settler colonial violence], particularmente na repressão aos defensores da água que protestam contra o projeto Dakota Access Pipeline? Essa é a questão que motivou Policing the Planet [“Policiando o Planeta”] (Verso), o livro que eu e Jordan T. Camp editamos. Compreendendo as lutas antirracistas contra o policiamento, replanejamento urbano, controle de imigração, colonialismo [settler colonialism] e militarismo, nós acreditamos ser possível traçar de forma mais robusta os desafios ao capitalismo racial do presente. O livro de Roediger possui intenção e espírito similares.

Ele começa por uma crítica específica a David Harvey e sua insistência de que as lutas que emergiram desde Ferguson e pelo Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] não podem ser reconhecidas como lutas anticapitalistas. Eu já trabalhei com David Harvey e tenho muito apreço por ele. Eu admiro a forma como ele nos faz questionar nossas concepções de senso comum sobre o funcionamento do capitalismo. Harvey está empenhado em entender como esses imaginários podem tanto autorizar quanto desautorizar diferentes âmbitos de luta. Dito isto, Roediger está correto em sua crítica. Ao não reconhecer o caráter de classe dessas lutas antirracismo porque elas formalmente não identificam a si mesmas pela linguagem anticapitalista, Harvey perde o aspecto central. Em sua abertura, Roediger apresenta corretamente o desafio que se coloca diante da esquerda: nós escolheremos a postura defensiva de conservar nossas bases e manter distinções formais de como nós imaginamos que o capital deveria funcionar ou nós expandiremos nossas teorias para identificar como a luta de classes se desdobra diante de nós?

A crítica de Roediger dirige-se à lamentável porém comum narrativa de que as “políticas identitárias” são as responsáveis pelo declínio da política de classe nos EUA. É problemático que esta narrativa tenha tanta atração entre intelectuais de esquerda ao mesmo tempo em que os principais enunciadores da extrema direita estejam profundamente empenhados em criticar as políticas identitárias, utilizando este termo genérico para nomear a singular origem de divisões políticas. Esta nociva abreviação geralmente desconsidera as críticas radicais e rebeldes ao capitalismo que vieram da luta antirracista, feminista, queer, e da perspectiva não-heteronormativa. Essas críticas fizeram mais a teoria marxista avançar do que ser negada – isso é o que Roediger defende ao longo do livro. Ainda que existam inegáveis críticas a se fazer ao identitarismo, a fácil recusa às “políticas identitárias” tem feito muitos movimentos sociais conceber o marxismo como refratários a suas lutas. Os liberais estão muito felizes por cultivar e nutrir esse desconforto. Como somos construtores da esquerda, e como temos de defender a nós mesmos, temos de estar cientes dos argumentos que Roediger está colocando diante de nós.

Essa ideia concebe classe como uma relação e não como uma identidade fixa. A dinâmica dos movimentos de classe surge da convergência de diferentes lutas. As nossas teorias devem ser suficientemente capazes de levar em conta essas convergências. O recente escândalo do Grenfell Towers em Londres é um exemplo concreto. Um número não divulgado de pessoas pobres, imigrantes, e trabalhadores morreu quando o prédio do conjunto habitacional em que moravam pegou fogo. A chama – como agora nós sabemos – foi acelerada por painéis inflamáveis instalados na fachada do prédio, uma tentativa de minimizar a “vista desagradável” que incomodava os vizinhos mais ricos. Talvez nós não tenhamos ainda uma síntese da teoria marxista que dê conta completamente das convergências entre exploração do trabalho, circulação do capital financeiro, a predação da especulação imobiliária, imigração, militarismo, colonialismo, racismo, reprodução social, queer e relações familiares não normativas, estética e austeridade neoliberal, mas isso é essencialmente o que as pessoas que estão se organizando contra esse assassinato em massa do capital e do Estado estão atualmente articulando. Nossa teorização deve seguir esses movimentos ao invés de se colocar contra ele. Para nos tornarmos livres, temos de ser capazes de compreender a “mudança no terreno das relações de classe” como se desdobram diante de nós, um aspecto ao qual Roediger retorna ao longo da coletânea.

O livro fornece uma bela genealogia do pensamento do próprio David Roediger. Por meio de seus ensaios nós podemos compreender a íntima relação entre os trabalhos de pessoas como George Rawick, Martin Glaberman, C.L.R James dentre outros. Nós começamos a observar como o pensamento radical é necessariamente produzido em contextos de luta. Nós aprendemos, por exemplo, que Alexander Saxon nunca teria tomado contato com o trabalho de W.E.B. Du Bois, mesmo tendo nascido na mesma cidade e frequentado a mesma faculdade, não fosse pela a esquerda radical, neste caso, o Partido Comunista, que manteve vivo o trabalho de Du Bois. Nós também aprendemos, o que é muito importante, que as pessoas podem discordar. Roediger pontua que um “compromisso comum com o marxismo” não implica em “concordância sobre as particularidades”. Ao contrário, na reprodução de debates com seus amigos, orientadores e críticos, ele nos mostra como podemos respeitosamente discordar, como podemos fazer avançar nossas posições tratando as demais com seriedade e sem rancor, como podemos nos mover por uma causa comum, em outras palavras, como podemos ser camaradas.

Esta rica coleção, que abarca muitos anos da escrita e pensamento de Roediger, também ajuda a contextualizar várias questões fundamentais. Nós podemos entender vários temas que emergiram da New Left, o contexto revolucionário da Detroit do final dos anos 1960 e início dos 1970, a política reacionária do Reaganismo dos anos 1980, a luta contra o apartheid na África do Sul, etc. Refletindo sobre seus antigos escritos, Roediger exercita uma notável humildade, uma disposição em reconhecer quando estava errado, quando outros estudiosos pontuaram questões melhor do que ele, quando genealogias alternativas poderiam ter sido melhor apresentadas, etc. Ele também é cuidadoso em mostrar que às vezes algumas intervenções realizadas em lugares e momentos específicos tornaram-se confusas quando foram transpostas de forma simplista a outros lugares e momentos. Ele fala, por exemplo, sobre entender que os debates aos quais ele estava engajado entre historiadores e ativistas do “primeiro a classe” eram distintos do estreito nacionalismo cultural e fascista a qual Paul Gilroy estava respondendo em Contra Raça. Em outras palavras Roediger mostra que o contexto importa. Ele nos lembra de sermos precisos quanto a intervenções, reconhecendo suas relações com momentos, lugares e condições particulares. Alerta contra a generalização de intervenções específicas em abstrações teóricas muito precipitadas – uma crucial observação para o momento incerto que vivemos.

A lógica neoliberal que desmantelou o salário social e expandiu o estado carcerário imperialista é construída em fantasias. Como Roediger descreveu extensamente, essas fantasias são motivadas pelo racismo. Entre os EUA, beneficiários dos serviços sociais são imaginados como pessoas de cor “não merecedoras” (“rainhas do bem-estar”, “bebês-âncora” [anchor babies], “imigrantes que roubam empregos”, “criminosos”, etc.). A proteção do Estado então é concebida como um jogo de soma zero: quando uma pessoa “não merecedora” adquire algo (bolsas para alimentação, subsídios a moradia, anistia, etc.) isso aparece como se algo tivesse tirado de uma pessoa “merecedora”. Os pedidos de corte do seguro de saúde [health care], eliminação da moradia pública e destruição da educação pública – tudo isso acompanhado da construção de mais muros, armas e celas – ganham vida com a fúria racista. A necessidade de sintetizar fortemente questões de classe, raça e marxismo é mais crucial do que nunca – especialmente quando intelectuais antirracistas, incluindo Keeanga Yamahtta Taylor, George Ciccariello-Maher e meu colega, Johnny Eric Williams da Trinity College, estão sob ataque de elementos perversos da extrema direita.

A esse respeito, vale a pena lembrar que escassez é uma fantasia capitalista. Temos o suficiente para que todos sejam alimentados, abrigados, estimulados e respeitados, mesmo que percepção capitalista insista no sentido contrário. O problema não é quantidade, o problema é distribuição. A inquietação de que falar sobre racismo, colonialismo [settler colonialism], homofobia, misoginia ou capacitismo de alguma forma oculta as discussões sobre a verdadeira luta de classes salta à minha mente como uma forma similar de lógica de soma zero: a concepção capitalista de escassez. O livro de Roediger nos lembra que não é necessárioI apenas lutar contra o capitalismo, mas como devemos extrapolar os limites de nossa epistemologia. Uma sensibilidade socialista, ao mesmo tempo implacavelmente crítica ao capitalismo, é também paciente, ampla e indulgente. Ela compreende que as pessoas apreendem o mundo pelas categorias que elas têm. E entende também que as categorias marxistas estavam em grande medida indisponíveis nos EUA. Nossos debates sobre teoria e prática marxista devem conter humildade, paciência e confiança para falar com as pessoas onde elas estão, não onde nós acreditamos que elas deveriam estar. A questão é, novamente, como nos lembra Roediger, não apenas sobre estar certo. A questão é libertar-se.

(Texto originalmente publicado pela Verso Books. Traduzido por Gustavo Rego)


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