“Nosso desafio é ter um programa à altura dos desafios históricos”

Para o economista Plínio de Arruda Sampaio Jr., a crise brasileira e o fracasso da política econômica conduzida pelos governos do PT podem ser entendidos como parte de um processo de “reversão neocolonial”.

Numa manhã fria do fim de outono paulista, a revista Movimento encontrou-se com Plínio de Arruda Sampaio Jr., professor do Instituto de Economia da Unicamp e militante socialista há décadas. Em debate, a crise de dimensões históricas por que passa o Brasil e a necessidade de que a esquerda socialista retome a elaboração e o debate estratégico sobre a revolução brasileira.

Para Plínio, que está lançando livro com uma contundente crítica à política econômica conduzida pelos governos petistas, a crise brasileira é estrutural, profunda e de dimensões históricas: uma “reversão neocolonial” da economia brasileira, caracterizada pelo recuo da industrialização – como parte do movimento de toda a economia global e da organização das cadeias de valor –, aprofundamento da subordinação dependente do país, que mais e mais se especializa na exportação de matérias-primas agrícolas e minérios. Os governos do PT, ao contrário da propaganda realizada à época ao redor de um suposto “neodesenvolvimentismo”, aprofundaram o movimento de reversão neocolonial e financiaram a expansão de transnacionais brasileiras que, uma vez terminado o boom das commodities, também entraram em crise.

A crise política, portanto, responde a um movimento geral de reorganização da economia, da sociedade e do Estado brasileiros, conduzido – não sem conflitos, fissuras e indefinições – por uma burguesia divida e em luta interna, organizada em dois “partidos”: o partido do “estanca sangria”, que em perspectiva futura estaria historicamente condenado à derrota, e o partido do “fora todos”, que atua para desmontar o regime político apodrecido da Nova República. O governo Temer, completamente tomado pelos escândalos de corrupção revelados pela Lava Jato em conjunto com o PT e o PSDB, debate-se buscando sobrevida ao mesmo tempo em que tenta entregar à burguesia a redução de direitos trabalhistas, previdenciários e sociais conquistados há décadas e inscritos na Constituição de 88.

Para o entrevistado, cabe à esquerda socialista, nesse cenário, construir um programa próprio e uma política alternativa a ambos os campos em luta para evitar o risco de terminar atada aos planos eleitorais de Lula, ao partido do “estanca sangria” e ao passado. Acompanhe a seguir a extensa conversa, em que também se abordaram outras questões fascinantes, como o enfrentamento pelos socialistas das insuficiências da formação nacional brasileira, suas relações com o internacionalismo, as tarefas do PSOL e a necessidade de recuperar a esperança em nossas lutas. Às vésperas de completarmos 3 anos sem Plínio de Arruda Sampaio, relembramos de sua confiança na juventude, no Brasil e no socialismo.

Movimento – Prof. Plínio, você acaba de lançar o livro Crônica de uma crise anunciada: crítica à política econômica de Lula e Dilma, em que realiza a crítica dos 13 anos de governos do PT. Anos atrás, uma longa polêmica acadêmica e política desenvolveu-se justamente a respeito da caracterização da política econômica dos governos lulistas, em que estes foram considerados governos “neodesenvolvimentistas” por alguns analistas. A profunda crise econômica e o impeachment parecem ter tornado esta polêmica um fóssil antes mesmo que chegasse a uma conclusão. Afinal, como definir a política econômica dos governos do PT? Por que se trata de uma crise “anunciada” e quais seus fundamentos?

Plínio de Arruda Sampaio Jr. – Em primeiro lugar, a polêmica do neodesenvolvimentismo foi resolvida pela história. Ela desmanchou o neodesenvolvimentismo em meses. Ou seja, ele não existia. A crise do governo era previsível porque, no fundo, a crise é a expressão das contradições inscritas no próprio movimento da economia. E qual era o movimento dessa economia? Era uma economia subdesenvolvida e dependente que teve um ciclo de expansão impulsionado pelo boom especulativo internacional: o boom de commodities e o boom de liquidez internacional. Essas eram as duas premissas do crescimento da “Era Lula”. Era previsível por dois motivos. Em primeiro lugar, porque o comportamento de uma economia subdesenvolvida é cíclico. Alterna expansão – a depender da conjuntura internacional e da inserção desta economia na divisão internacional do trabalho – e exaustão. O fim trágico era previsível. Quando o boom internacional acabasse, a onda quebraria e a economia brasileira viria abaixo. O PT não enfrentou nenhuma das causas estruturais que condicionam o caráter dependente da economia brasileira. Não era difícil ver que o comportamento da economia brasileira repetiria o círculo vicioso do subdesenvolvimento. Para quem deu aula de economia brasileira por décadas, era mais ou menos previsível que a economia daqueles anos teria uma expansão que acumularia contradições internas e externas que em algum momento viriam abaixo de forma muito forte.

A crise internacional que irrompeu em 2008 já vinha se expressando desde o final da década de 1990 de maneira bem clara. Vários economistas americanos no início dos anos 2000 descreveram as contradições que redundariam na crise posterior. Lendo hoje, parece que fizeram um roteiro da crise. Era evidente que o frenesi especulativo iria estourar em algum momento. A forma temerária como o governo Lula surfou no boom internacional permitia prever que, no momento em que viesse a crise, o Brasil estaria particularmente vulnerável. Lula aprofundou a inserção subalterna na ordem global. Ele atraiu uma quantidade enorme de capital, intensificou a liberalização da economia e consolidou o deslocamento do centro dinâmico da economia brasileira para o exterior. A valorização do câmbio destruiu o mercado interno, destruiu a indústria nacional. O Brasil tornou-se totalmente dependente do comércio internacional. Este conjunto de fatores nos levou a perceber que algo daria errado. O importante da ideia de “crise anunciada” é que, se quisermos entender a realidade, temos que entender as contradições inscritas na realidade. Todas essas contradições (o caráter dependente, o caráter subdesenvolvido, o aprofundamento da inserção subalterna, etc.) sempre estiveram no DNA do governo. Aliás, estão na “Carta ao Povo Brasileiro”. Então, bastava acompanhar isso nas várias trincheiras.

Há bastante tempo você tem argumentado que o Brasil passa por um processo de “reversão neocolonial”. O que você entende por este fenômeno? Quais evidências nos levam a crer que ele está acontecendo?

Em primeiro lugar, para entendermos a realidade, temos que compreender as contradições que explicam o movimento histórico. Sem compreender o sentido das mudanças, é impossível entender a realidade. Do ponto de vista histórico, o Brasil é uma sociedade de origem colonial que não conseguiu consolidar seu Estado nacional. É uma sociedade em transição entre a colônia de ontem e a possível nação de amanhã. Este movimento é o da autonomização da sociedade nacional dentro do sistema capitalista mundial. A formação da nação é impulsionada pela luta para criar um patamar mínimo de civilidade para a sociedade brasileira. Esse é o movimento que dá sentido à história do Brasil: a luta para colocar freios aos negócios. Sem um Estado nacional com um mínimo de soberania, é impossível conter as taras do capital. Essa é a leitura de Caio Prado Jr sobre nossos dilemas históricos. Na luta pela construção do Estado nacional, o golpe de 1964 é um marco decisivo, pois é aí que ela completa a formação de seu padrão de dominação. A burguesia conclui sua revolução burguesa como uma contrarrevolução. O capitalismo é consolidado sem resolver os problemas históricos herdados do período colonial – a segregação social e a marca do colonialismo. A dupla articulação que caracteriza o capitalismo dependente é definitivamente consolidada como marca da sociedade burguesa. Essa é a essência da interpretação de Florestan Fernandes sobre a revolução burguesa. Para a burguesia, o golpe de 1964 representou uma grande vitória, pois ela consegue derrotar as reformas de base e congelar a história. O poder da burguesia de controlar os de baixo – as classes subalternas – e ter um mínimo de poder de negociação com os de cima – o imperialismo – alicerçava-se em duas premissas históricas. De um lado, o imperialismo queria parceiros relativamente fortes em alguns pontos da periferia para combater o risco do comunismo. De outro, o crescimento acelerado gerava emprego e alimentava a ilusão de que a classificação social resolveria os problemas sociais. A mobilidade social propiciada pela expansão dos empregos alimentava o mito do desenvolvimento como solução para os problemas do Brasil.

Estas duas premissas começam a ruir a partir da segunda metade da década de 1970. A crise da industrialização acaba com os empregos. O colapso da União Soviética acaba com o medo do comunismo. A mudança no contexto histórico implica a lenta e penosa transformação da burguesia dependente numa burguesia dos negócios. O que muda essencialmente é o grau de autonomia da burguesia brasileira para condicionar o ritmo e a intensidade do desenvolvimento capitalista. A “reversão neocolonial” é um processo de progressiva perda de autonomia do Estado brasileiro dentro do sistema capitalista mundial. Sem capacidade de impor limites às taras do capital, a sociedade não tem como manter os direitos trabalhistas e democráticos conquistados com muita luta e sacrífico. Ainda que este “mínimo” fosse realmente muito mínimo… O projeto do capital é transformar o Brasil numa megafeitoria moderna – uma economia de “tipo colonial”, voltada para o exterior, baseada na produção em grande escala, no sistema de monocultura, tendo como sustentáculo o latifúndio, a mão-de-obra barata e a depredação do meio ambiente. Se olharmos para as forças produtivas brasileiras, é possível perceber de maneira muito clara que, desde os anos 1980 para cá – e com a crise isso se acelera –, vivemos uma desindustrialização. Ela não é conjuntural, mas estrutural e irreversível. É gravíssimo! A indústria é a coluna vertebral de uma economia nacional. O que vai bem na economia brasileira é o agronegócio e a mineração – complexos produtivos típicos de uma economia colonial. A reversão neocolonial se manifesta em todos os planos. Nas relações de produção, a base de uma economia nacional é a burguesia nacional, aquela que vive de seu mercado interno. Mas a nossa burguesia abriu mão do mercado interno. Nós temos isso que eu chamo de “burguesia dos negócios”. A classe operária de uma economia nacional é aquela que conseguiu construir um mínimo de condição de ter direitos básicos do trabalho. Supõe uma correlação de forças minimamente suficiente para se contrapor à burguesia. Já, no Brasil, estamos assistindo à precarização. Do ponto de vista da organização territorial, a economia nacional é formada por regiões que estabelecem relações econômicas e políticas baseadas em algum tipo de cooperação e solidariedade. Ainda que essa relação seja sempre desigual, uma dinâmica centrípeta unifica as regiões. Mas, no Brasil, as regiões conectam-se diretamente com o exterior. Começa a se configurar uma relação entre as regiões típica de economias coloniais. A reversão neocolonial também atua no âmbito cultural. Por exemplo, uma universidade nacional é aquela que cuida dos problemas nacionais e de suas possíveis soluções. Nossas universidades estão virando ensino superior. A diferença entre universidade e ensino superior é que o ensino superior transmite o que vem de fora, já a universidade cria conhecimento, critica a realidade e tem autonomia para criar uma forma de pensar. O que eu chamo de reversão colonial é este processo. A reversão neocolonial é bem concreta: tudo que rebaixa o mínimo civilizador da sociedade – o congelamento dos gastos públicos, o desmantelamento da legislação trabalhista, o fim da previdência, a nova onda de grilagem das terras indígenas, o jubileu da depredação ambiental…

Os intérpretes mais relacionados ao PT provavelmente rebateriam sua visão argumentando que houve no período Lula e Dilma, ao contrário, o fortalecimento do mercado interno e a criação de grupos empresariais que se expandiram. Mas, se olharmos para esses grupos empresariais, veremos que boa parte deles, senão todos, justamente lidam com essas atividades que você associou a uma economia tipicamente colonial. É o caso, por exemplo, do agronegócio com a JBS ou da Vale com a mineração.

Com certeza. Na verdade, no período do Lula, houve crescimento econômico com regressão das forças produtivas. Se olharmos para qualquer indicador da indústria, veremos que, ao final dos treze anos do ciclo petista, todos os setores estratégicos da indústria nacional – como a indústria de transformação e a indústria de bens de capital – diminuíram sua importância relativa na economia nacional. Houve uma regressão das forças produtivas. Eu brinco que foi uma espécie de “crescimento Michael Jackson”: finge que vai para frente, mas vai para trás [risos]. Não nego que houve expansão do mercado interno. O Brasil, por ser muito grande e ter distribuição de renda muito concentrada, possui um elevado multiplicador de renda. O mercado interno brasileiro é grande e tem um potencial de expansão enorme. Qualquer aumento de gasto leva a uma grande multiplicação da renda. Mas a pergunta é: qual foi o elemento dinâmico do crescimento do período Lula do ponto de vista qualitativo? O elemento determinante foi o boom exportador. Nós crescemos pela exportação. A pequena distribuição pessoal de renda deu um impulso adicional a esse elemento. Mas o elemento dinâmico, gasto autônomo, não foram os investimentos nem o gasto público, mas as exportações. Teria crescido ainda mais não fora a política de ajuste fiscal permanente que conteve o potencial expansivo do mercado interno para evitar desequilíbrios ainda maiores no balanço de pagamentos.

Isto é o curioso do Ciro Gomes. Trata-se de um oportunista, que a cada 5 anos veste uma camisa diferente: já foi candidato na juventude do PDS, suposto prefeito modernizador, economista tucano no Plano Real, ministro do Lula, agora uma espécie de nacionalista tardio… Independentemente do personagem, ele tem insistido num diagnóstico com aspectos comuns ao que apresentamos aqui: a desindustrialização e o aprofundamento da localização subalterna do Brasil na ordem internacional são os problemas a se enfrentar. Este é um discurso que pode ocupar parte do espaço da esquerda socialista. Como você avalia as saídas que ele propõe?

O Ciro Gomes é um ignorante. Não tem ideia do que está falando. Qual é o nosso problema? A industrialização nacional não está mais inscrita no movimento econômico de nenhum país do mundo e muito menos de um país em reversão neocolonial. O capitalismo vive um momento impar. As mudanças são profundas. Transformações que levam à ruptura do Reino Unido devem significar alguma coisa… Alguma coisa grave deve estar acontecendo e é preciso estar à altura dos desafios históricos. O desenvolvimento das cadeias de valor liquidou a possibilidade da industrialização nacional. Não só para nós, para o mundo inteiro. Ah, mas há industrialização na China… Primeiro, na China, não há uma industrialização propriamente nacional e, segundo, a China é um caso muito atípico. O Ciro Gomes é um vendedor de ilusões. Faz um discurso nostálgico que vai ter clientela. Se a gente não tiver uma alternativa que o critique, ele vai ter espaço. Essa ideia de que nós vamos fazer industrialização, dentro dos parâmetros da ordem global, é um delírio. É um estelionato. Mas, se nós não estivermos preparados para fazer essa crítica, o discurso pseudodesenvolvimentista vai enganar muita gente. A esquerda precisa fazer a crítica da realidade para revelar as soluções inscritas no movimento histórico.

De que forma a crise econômica encontrou-se com a crise política? Como compreender a queda de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer?

A crise econômica brasileira foi determinada pela crise do capitalismo e agravada pela política econômica recessiva feita por Joaquim Levy e depois pelo Henrique Meirelles. Para entendermos o que está acontecendo no Brasil, temos que compreender a resposta do capital à crise, que é o ajuste. O ajuste é uma guerra aos trabalhadores. No curto prazo, arrocha os salários, cria alternativas de negócio para o capital por meio da privatização e cria alternativas de valorização fictícia do capital por meio da dívida pública. E o ajuste, no longo prazo, rebaixa o nível tradicional de vida dos trabalhadores; esvazia a soberania nacional, reduzindo a capacidade do Estado nacional conter as taras do capital, internacional e nacional; e especializa a economia brasileira na divisão internacional do trabalho. Entre o curto e o longo prazos, a economia brasileira fica no limbo, no tempo que o capital precisa para resolver seus problemas em escala mundial e abrir uma brecha para o Brasil na divisão internacional do trabalho.

A crise política estava latente na contradição insolúvel que existe entre as promessas da Constituição de 1988, que acenava com a ampliação dos direitos sociais, e a dura realidade do capitalismo brasileiro, em tempos de reversão neocolonial, que exige o rebaixamento progressivo dos direitos sociais. A crise política explicita-se nas Jornadas de Junho de 2013, quando a juventude vai às ruas para exigir as promessas do programa democrático-popular e a burguesia responde com o ajuste fiscal e a retirada dos direitos sociais. A crise política expressa a absoluta incompatibilidade entre a democracia de cooptação que foi cristalizada na Nova República e a realidade do capitalismo selvagem brasileiro em tempos de crise. A galinha dos ovos de ouro da burguesia brasileira é o salário baixo dos trabalhadores. Quando a economia cresce, o salário pode aumentar um pouco. Quando a economia para de crescer, os salários precisam diminuir. Por essa razão, no Brasil, crise econômica e crise política caminham de mãos dadas. Nenhum presidente resistiu a dois anos de recessão, a começar por Washington Luiz destituído por Getúlio Vargas. O que acomoda os gigantescos antagonismos da sociedade brasileira é o crescimento. O ajuste é uma violência brutal contra os trabalhadores.

Então, a crise econômica encontra-se com a crise política…

A conexão entre crise econômica e política é que o ajuste liberal significa uma declaração de guerra aos trabalhadores. Guerra é guerra. A burguesia precisa destituir os trabalhadores de qualquer meio de expressão política. Daí a necessidade de atacar o sistema político. O capital não admite nenhum obstáculo aos imperativos do ajuste, nem mesmo os que possam advir de sua rebaixada democracia. O projeto do capital para o Brasil é transformar o país numa megafeitoria moderna. As mudanças no padrão de acumulação exigem mudanças no padrão de dominação. Assim como a crise da economia cafeeira levou à derrocada da República Velha, a crise terminal da industrialização exige o fim da Nova República. Afinal, deve existir uma certa correspondência entre infraestrutura econômica e a superestrutura política. Em um país de instituições fracas como o nosso, a relação entre a economia e a política é quase que direta. A crise política tem uma funcionalidade econômica. Para que o ajuste avance, a Nova República precisa morrer. A Constituição de 1988 não cabe nos planos do capital. E o que vão colocar no lugar? Provavelmente, uma estrutura política ainda menos civilizada do que a Nova República. O sentido das mudanças em curso é claro. Em todas as dimensões, as medidas que compõem o ajuste procuram rebaixar o patamar mínimo de civilidade da sociedade brasileira. Logo, seria muito pouco provável que na estrutura política fosse o contrário. A burguesia está dando uma resposta reacionária às revoltas de Junho de 2013. É uma resposta ultrarradical: “Fora Todos”! A princípio, isto não estava claro: eu mesmo pensava que a Lava Jato fazia política e politicagem contra o PT. Mas agora me parece claro que a burguesia tem dois partidos, por assim dizer: o partido da “estanca sangria”, cujo mentor é Jucá e a encarnação política é Lula – o único que, mesmo mortalmente ferido, permanece de pé; e o partido do “fora todos”, comandado pelo Janot, Moro, Fachin e Rede Globo, que sabe o que não quer, mas que não tem ideia do que colocar no lugar.

Em outras palavras, o andar de cima se divide em dois caminhos: o que defende a preservação do sistema político da Nova República, que é o “estanca a sangria” – na minha opinião, historicamente condenado – e o que representa os novos imperativos do capital, que é o “fora todos”. Só para esclarecer: eu não acho que os atores da tragédia conversem entre si, planejem suas ações e tenham plena consciência de seus efeitos. A disputa política é o resultado concreto das forças que estão jogando sem ter uma consciência clara do que elas querem. Na prática, o resultado de suas ações converge para a formação dos dois blocos mencionados. Isso trucidou o sistema político. E o exemplo maior é o Aécio, que se desmontou facilmente em dois dias. Mas a esquerda tem que ter uma resposta para isso. Pois o que faz a Lava Jato é desmoralizar a política e os políticos e ao mesmo tempo liberar o capital. O burguês se libera pela delação e o capital, que é o mais importante, se libera pelos acordos de leniência. A causa do problema fica assim intocada. Nós, a esquerda, temos que ter uma resposta para isso. Pois, se não tivermos o nosso projeto, cairemos em uma armadilha: ou flertamos com a Lava Jato ou nos deitamos com o Lula. Nem um nem outro! Temos que ter a nossa proposta.

Na falta de um projeto nosso, não estamos perdendo a oportunidade de aproveitar as contradições e fraturas abertas pelas revelações da Lava Jato?

Ótima questão. Peguemos três problemas: a crise econômica, a crise de corrupção, e a crise política. As três misturam-se. O capital está dando resposta pra todas elas. Crise econômica: ajuste. Corrupção: Lava Jato. Crise politica: “Fora Todos”. Nós temos que dar uma resposta a isso. Qual nossa resposta ao ajuste? Deveria ser: “Fora Ajuste”, “Ajuste neles!”… Vamos sair da globalização! Nós não vamos nos adaptar às novas exigências da globalização. Nós vamos sair da globalização. Nós não temos alternativa. Nos parâmetros da situação, a sociedade brasileira fica condenada à barbárie da reversão neocolonial. Então, nossa única alternativa é a ruptura. Nós temos que preparar uma politica econômica de ruptura. Temos de colocar na ordem do dia a necessidade do fim da lei de responsabilidade fiscal, a revogação de todos os ataques aos direitos dos trabalhadores, a centralização do câmbio, a democratização do Banco Central, enfim, o desmonte do arcabouço institucional que garante a reprodução da ordem liberal. O Plano Real precisa ser desmontado. Esse é o desafio de um programa econômico de esquerda.

Qual é nossa solução para a crise de corrupção? Sempre as soluções de esquerda – e aqui entendo esquerda como a busca das causas estruturais dos problemas, como ensina Marx na crítica da Economia Política. A causa última da corrupção política é o controle absoluto do capital sobre o Estado brasileiro. O capital não é a solução que tem que receber uma leniência, ele é a causa do problema. Nós temos que propor, então, a expropriação das empresas corruptas. E eu acho que aí não sobraria, literalmente, nenhuma. Essa é a causa do problema. A Odebrecht continuou roubando com o Marcelo Odebrecht preso. Se fosse para escolher, preferiria deixar o Marcelinho solto e prender a Odebrecht.

A crise do “Fora Todos” é a crise política. Porque o povo quer o “Fora Todos”, a burguesia está respondendo ao que eles querem, ela está dando uma resposta contundente a um problema real – a absoluta promiscuidade entre o público e o privado no Estado. As respostas do capital são radicais. Eu diria até mesmo “revolucionárias”, no sentido de revolver a situação. Só que ela está dando uma resposta reacionária, que põe o Brasil pra trás. A gente tem que propor para a frente. Então, o que precisamos é a refundação profunda da política de baixo pra cima.

Como aproveitar as contradições e tensões dentro do andar de cima para abrir novos horizontes para o trabalhador brasileiro? Precisamos buscar um caminho completamente independente do andar de cima pela crítica do caráter reacionário de suas respostas aos problemas nacionais. O ajuste é contra os trabalhadores e os trabalhadores precisam ter plena consciência disso. Essa é a função da esquerda. Conscientizar a classe. O ajuste é para rebaixar as condições de vida dos brasileiros – tirar direitos, acabar com a aposentadoria, expulsar o homem pobre da terra, liquidar as nações indígenas, oprimir o negro… A crítica tem de mostrar os limites da solução reacionária. Temos que dizer: ora, vocês estão prendendo os políticos corruptos? Ótimo, mas isso não vai resolver nada se não prender o capital. Ou seja, se não expropriar o capital. Temos de colocar os problemas dentro de uma totalidade que indique o sentido das mudanças em curso – a aceleração e o aprofundamento do processo de reversão neocolonial. Nessa empreitada, a esquerda não conta com nenhum possibilidade de aliança com o andar de cima. Aliar com a “Estanca a Sangria”, que defende um sistema político indefensável, historicamente condenado, seria um suicídio. Para fazer uma analogia, seria o equivalente a se juntar com a velha oligarquia na Revolução de 1930, sob a alegação de que Washington Luiz foi vítima de um golpe. O velho vai ser soterrado. Basta ver que das figuras da República Velha, apenas Getúlio sobreviveu ao vendaval do Estado Novo. Bem, a crise da Nova República também não vai deixar pedra sobre pedra. Nós estamos vendo isso: o Aécio, o Serra, o Temer foram destruídos… O Alckmin deve ser um dos próximos a ser comido.

Se você disser: então a gente fecha com a Lava Jato? Socorro, porque o que a Lava Jato está fazendo? Para fazer o ajuste, eles precisam neutralizar os políticos e desmoralizar a política. Mas os políticos, por pior que sejam, precisam de votos e têm de prestar contas de quatro em quatro anos aos eleitores. Mesmo venais, carregam um resíduo de representação da vontade popular. É esse o elemento que está sendo neutralizado. Porque a nova política tem que ter a cara do Joesley, que é a nova burguesia, e não a cara do Antônio Ermírio de Moraes, que é a velha burguesia. Qual o resultado da política de terra arrasada? O que eles vão pôr no lugar da Nova República? Pelo andar da carruagem, a democracia de cooptação será substituída por uma politica ainda mais corrupta e mais mercantilizada. É o que aconteceu na Itália com a Operação Mãos Limpas. Então, é por isso que critico nosso partido quando ele flerta com o Lula.

Mas, afinal, por que caiu Dilma? Quais forças estão por trás da ascensão de Temer?

Primeiro, na minha visão, ao falar de golpes, precisamos ter claro que a burguesia sempre fez política na base do golpe. Golpear o adversário faz parte da tradição política brasileira. O PT não foge à regra. Precisamos ter claro que não tem nenhuma eleição do PT que não seja feita entre golpes e contragolpes. Então, golpes eleitorais, isso faz parte da cultura “democrática” brasileira. Então, teve golpe? Sim, teve golpe. O golpe foi contra a classe trabalhadora brasileira. O primeiro foi dado pela Dilma por meio do estelionato eleitoral que deu início ao ajuste; o segundo, liderado por Temer, dobrou a meta do ajuste. Estes foram os verdadeiros golpes do período recente.

E por que a Dilma caiu? Basicamente, porque ela traiu a confiança do seu eleitor e, ao fazer isso, ela ficou dependendo do serviço que prestava ao capital. Sua absoluta inabilidade para o cargo acelerou sua queda, mas o problema central é que, ao dar as costas para o povo, Dilma perdeu toda autoridade. Então, ela derreteu e ao derreter ela criou um vácuo de poder. Como não existe vácuo de poder, Cunha e Temer ocuparam o espaço. Assim que perceberam que a presidente não daria conta do recado, começaram a conspirar. A burguesia brasileira só deu luz verde ao golpe dos aventureiros quando percebeu que a Dilma já não tinha a menor autoridade e sua permanência no Planalto passava a representar um risco de que as reformas seriam interrompidas. Enquanto Dilma agonizava, os delinquentes do PMDB articularam com os empresários uma agenda truculenta de ajuste – a “Ponte para o Futuro” – viabilizando-se como alternativa de poder. É isso que explica o golpe de Cunha e Temer. Não acho que tenha nada de conspiração internacional. A conspiração internacional aventada pela Marilena Chauí, eu não tenho capacidade de ver [risos].

Como neste artigo recente do Fernando Haddad para a Piauí…

Pois é. O artigo do Haddad é um artigo feito inteirinho para justificar seu fiasco na prefeitura de São Paulo. Ele tem a cara dura de fazer um artigo dizendo que todos erraram menos ele, e foi por isso que ele perdeu. O artigo do Haddad é mais para uma análise de ordem psicanalítica do que qualquer outro tipo de coisa. É uma narrativa egocêntrica pra autojustificar sua derrota em São Paulo.

Em sua opinião, como é possível que o governo de Temer, odiado pelo povo e envolvido em escândalos permanentes, possa levar adiante uma agenda de ataques tão amplos contra direitos sociais historicamente conquistados pela classe trabalhadora brasileira?

Essa é uma ótima pergunta. Toda semana, eu dou uma entrevista para uma rádio uruguaia e, da última vez, eu falava que o governo Temer é um governo desmoralizado desde o início. Então, eles me perguntaram: mas se eles são tão fracos e tão vulneráveis, como eles podem ser tão ousados no ataque aos trabalhadores? A força de Temer tem duas origens: em primeiro lugar, o compromisso com o capital de fazer o serviço sujo contra os trabalhadores; e, em segundo, a extrema fragilidade da esquerda. Então, a premissa do governo Temer é a passividade da classe operária. Assim que qualquer um desses quesitos ficar comprometido, o governo derrete.

Daí a importância da Greve Geral. Foi só a classe mostrar que não estava morta para o governo Temer entrar em crise aberta. A entrada em cena da classe operária provocou uma mudança importante na conjuntura. A partir desse momento, todo o jogo muda e não é coincidência que a permanência de Temer passou a ser questionada em poucos dias depois. Vocês podem dizer que houve a delação do Joesley… Mas Temer desde o início tinha sobre a cabeça uma série de denúncias que a burguesia poderia ativar para derrubá-lo. Não faltavam suspeitas e delações para incriminar Temer. Afinal, é sabido que ele chefia uma quadrilha. A importância da Greve Geral é que, ao romper o cerco da grande mídia, a greve dialoga com as massas e uma parte do grupo do “estanca a sangria”, que depende de voto para sobreviver, começa a perceber que a proximidade com Temer pode contaminá-los. O comprometimento da força parlamentar necessária para passar as mudanças na previdência colocou o governo Temer em xeque. A guerra entre os que lutam para “estancar a sangria” e a turma do “Fora Todos” acirrou. Procurando acelerar o cozimento da pizza, Gilmar Mendes, o braço judicial da turma do “Estanca a Sangria”, mobilizou-se para tirar José Dirceu, Eike Batista, Bumlai e Genu da cadeia. Fachin reagiu revelando a delação de Joesley. O efeito foi devastador. Na minha opinião, Temer já caiu. Pode demorar para chegar ao chão. Na falta de solução para a monumental crise institucional em que estamos metidos, pode eventualmente plainar até 2018. Só o povo na rua garante a sua deposição e uma solução democrática para a grave crise que condena a Nova República.

Como você avalia as respostas da classe trabalhadora, de suas organizações sindicais e políticas e dos movimentos sociais diante do desmanche promovido por Temer? Por onde deve passar a luta contra as reformas trabalhista e da previdência?

A resposta da esquerda está muito aquém da gravidade dos desafios históricos postos em todos os planos. Falta um programa que responda aos problemas do povo brasileiro e força política para torná-lo realidade. Uma coisa está vinculada à outra. O que é um programa? Nós temos que ter uma saída, uma luz no fim do túnel. Precisamos de uma agenda econômica e política que coloque na ordem do dia a necessidade de mudanças estruturais e precisamos de força política para fazer as mudanças estruturais. Esse debate não está posto. A esquerda permanece hegemonizada pelo programa democrático-popular. Não é possível mudar a vida do povo sem mudanças estruturais e não é possível fazer mudanças estruturais sem construir força extrainstitucional. Não vamos sair da encalacrada histórica em que estamos por dentro da ordem. A saída deve ser construída de baixo para cima. É todo o Estado brasileiro que precisa ser refundando para que possamos ter alguma coisa qualitativamente distinta daquela que está acontecendo. A sociedade brasileira não vive uma crise conjuntural, de menor expressão. A crise é muito profunda e precisamos ter propostas de mudanças profundas. Cabe à esquerda colocar na ordem do dia a necessidade histórica da revolução.

Nossa falta de ousadia contrasta com a ousadia da burguesia. A burguesia não hesita em atropelar as instituições ou colocar na ordem do dia mudanças estruturais. A Constituição de 1988 está sendo destruída sem a menor cerimônia. As transformações nas leis trabalhistas, o congelamento por vinte anos da política social, o fim da previdência, o ataque às nações indígenas, o atropelo dos Sem Terra, a franquia da Amazônia para a pilhagem do capital representam uma verdadeira “revolução”. É uma revolução que anda para trás, que nos coloca, por assim dizer, de volta ao século XIX, mas é uma “revolução”. As leis foram suspensas. A burguesia está decidida a fazer tudo o que for necessário na lei ou na marra. O disse Gilmar Mendes no TSE? “Tenho responsabilidade. Não é momento de cumprir a lei. Seria uma imprudência condenar Temer”.

Nosso desafio é ter um programa que esteja à altura dos desafios históricos. Seria uma miopia imaginar que isso seria feito através do calendário eleitoral. Então, toda a ênfase que se dá às eleições é de uma ingenuidade brutal. A história será decidida na luta de classes. Quem tiver mais força ganha. Então, o desafio é acumular força. A força da classe trabalhadora é a sua consciência e organização como classe independente da burguesia. Isso não será alcançado pela dinâmica eleitoral.

A evidente derrota do PT, desmoralizado por suas escolhas e envolvido em denúncias de corrupção em conjunto com os principais partidos do regime, tem levado muitos à conclusão de que há uma crise “da esquerda”? Você concorda com este diagnóstico? Como localizar o PSOL nesse processo e qual deve ser o papel do partido nessa conjuntura?

É preciso diferenciar o que é “a esquerda”. Em qualquer agrupamento sempre haverá uma esquerda e uma direita. O PT é a esquerda da ordem. O PT não questiona o subdesenvolvimento, a dependência, o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a necessidade de ajustes que retirem direitos dos trabalhadores, a inserção subalterna… Mas, dentro da ordem, ele representa, sem dúvida, a agremiação com maior sensibilidade social. Então, seria honesto considerá-lo como um autêntico representante da esquerda da ordem. Outra coisa é questionar a própria ordem. A esquerda contra a ordem vive uma crise existencial de grande proporção. A esquerda socialista não tem um programa que aponte o caminho da luta por mudanças estruturais. Quem não tem programa, acaba absorvendo o programa de quem tem. É o que acontece com o PSOL. Na falta de um caminho próprio, o partido funciona, na prática, como linha auxiliar do PT.

Agora, o que é o programa? Veja que os economistas adoram programa: sentam e fazem o programa. Mas o programa não é um elenco de medidas. O programa é o resultado de uma construção política. Ele deve dar respostas concretas aos problemas concretos da luta de classes. Na ausência de um norte estratégico que oriente o caminho da luta de classes, as respostas concretas aos problemas concretas não acumulam força para as mudanças estruturais. A luz no fim do túnel do impasse histórico que vivemos é a revolução brasileira: as mudanças estruturais. Sem o horizonte de mudanças qualitativas, a política fica presa no fim da história. Sem programa ficamos a reboque do PT. Dou exemplos. A palavra de ordem “Fora Temer” abraçada pelo PSOL é absolutamente insuficiente. A consigna deveria ser “Fora Temer e Fora Ajuste”. Porque quando falamos só “Fora Temer” e não “Fora Ajuste”, nós estamos no programa do PT. O problema não é exatamente Temer, o problema é o ajuste, com Temer, Dilma, Lula, Ciro ou com quem quer que seja. Não temos uma resposta para o problema da corrupção. Por que o partido não levanta a consigna “Expropriação da JBS”? Não temos uma resposta de fato para a crise política. Não basta eleição direta, nem eleições gerais e nem mesmo Constituinte. Nós temos que pedir liberdade de organização política, liberdade de organização sindical, fim da Rede Globo… Se as eleições forem feitas sem uma mudança nas regras do jogo, o resultado será o mesmo. Se o dado é enviesado, o resultado será sempre o mesmo. Sem mostrar as insuficiências do jogo eleitoral, a esquerda acaba vendendo a ilusão de que as eleições resolvem tudo. Seria bom resolver tudo pela eleição, mas, infelizmente, não vai ser desse jeito.

O programa é uma construção coletiva. Precisamos ter um norte estratégico e respostas táticas, articuladas à estratégia, que faça a crítica da política burguesa. O desafio é mostrar, caso a caso, o caráter de classe das respostas burguesas e seus efeitos nefastos sobre a vida do povo, a fim de mostrar a necessidade inescapável de enfrentar as causas dos problemas responsáveis pelas mazelas da população. A esquerda precisa dialogar com os problemas concretos dos trabalhadores e criticar permanentemente as respostas da burguesia. Não é o que estamos fazendo. Nas eleições municipais, o Partido não mencionou a necessidade de revogar a Lei de Responsabilidade Fiscal. Se isso tivesse sido feito, teríamos a possibilidade de mostrar a teia institucional que amarra o Brasil no circuito fechado da ordem global, pois o questionamento da Lei de Responsabilidade Fiscal leva ao questionamento do Plano Real e à necessidade de enfrentar o capitalismo global. É o diálogo pedagógico com a classe e a massa que leva à construção de um programa de luta para enfrentar os desafios da Revolução Brasileira.

Você tem insistido na necessidade de que os socialistas recuperem o debate estratégico sobre a revolução brasileira. Por que houve um recuo da elaboração programática entre os socialistas? Como recuperá-lo?

É uma ótima questão. Quando cheguei ao Chile no início de 1965, o Chile tinha acabado de eleger Eduardo Frei Montalva para a presidência da república. Ele era do PDC [partido democrata-cristão] e pregava a necessidade de um reformismo moderado, mas autêntico. Perto de Lula, Frei seria um verdadeiro revolucionário [risos]… O lema da campanha dele era Revolución con Libertad, quer dizer, naquela época, um reformista moderado sentia-se obrigado a se assumir como tal porque a revolução estava na ordem do dia. Hoje vivemos o fim da história e qualquer proposta de mudança estrutural recebe o veto da burguesia.

Então, a questão estratégica que está posta para esquerda é colocar a necessidade histórica da revolução na agenda nacional. Aí as pessoas dizem que a revolução não está na esquina. Mas ela nunca esteve. Em janeiro de 1917, Lênin não tinha ideia de que ocorreria uma revolução em fevereiro. Então, essa ideia de que a revolução não está próxima e, portanto, não pode e não deve ser colocada em debate, é uma besteira que só serve para reforçar o senso comum de que estamos no fim da história. A burguesia fez “vaca-amarela” e transformou a revolução num anátema. No Brasil a “vaca-amarela” começou em 1964, no Chile em 1973… O domínio das palavras faz parte da dominação. Por exemplo, a burguesia capturou a palavra reforma, que é uma boa palavra. Faz-se uma reforma para melhorar, ninguém faz reforma para piorar. Mas a reforma era uma consigna do campo da revolução brasileira.

A dificuldade de colocar a revolução brasileira na ordem do dia tem uma história. Em 1964, a burguesia derrotou as reformas estruturais. Depois do massacre da luta armada, a esquerda se reorganiza por dentro da ordem através do Programa Democrático-Popular. A ideia era fazer as mudanças dentro das regras do jogo da democracia que surge no fim da ditadura militar. Tratava-se de mobilizar as massas e canalizar toda essa força política para dentro do Estado. A hipótese é que seria possível retomar as mudanças estruturais por dentro do jogo democrático-parlamentar. O PT encarna esta aposta política. Hoje sabemos no que isso deu. A história mostrou de maneira cabal que não existem bases objetivas e subjetivas para a realização do Programa Democrático-Popular. Não existem bases objetivas porque o capitalismo brasileiro é um capitalismo de tipo selvagem, bruto, que depende da pobreza para sobreviver. Logo, não há muito a ceder. E não existem bases subjetivas porque a burguesia brasileira é intolerante em relação à utilização do conflito social como forma legítima de conquista de direitos coletivos. Ou seja, a burguesia brasileira não cede, ela vem de uma tradição autocrática e não democrática.

Então, não há base para esse programa. Aí o PT rebaixou o programa paulatinamente, até convertê-lo numa impostura: a “Carta ao Povo Brasileiro”. Ao longo dos anos noventa, o PT transformou o Programa Democrático-Popular numa espécie de “melhorismo” que, na verdade, é um “piorismo” – ruim com o PT, pior com o PSDB. A derrota da luta pela reforma agrária é emblemática. A luta pela terra foi organizada em torno da ideia do Estatuto da Terra que estabelecia a função social da terra. Não faltou luta, sacrifício organização e força, mas não houve reforma agrária. A reforma agrária não aconteceu, nem acontecerá, porque o latifúndio é uma entidade estratégica para o padrão de acumulação e dominação da burguesia brasileira. Reforma agrária no Brasil só a da “companheira” Kátia Abreu que revitaliza a grilagem de terra no Brasil.

Ao falar em “revolução brasileira”, imediatamente vem à mente a obra de autores, sobre os quais já falamos hoje, como Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Celso Furtado, parte de uma geração de intelectuais do século XX que tinha a preocupação de refletir sobre as particularidades da formação nacional brasileira e suas relações com a luta pelo socialismo. Ainda há atualidade nessas preocupações?

Qual é o problema concreto para o capital? É resolver a crise. Qual é o problema concreto para nós? É a barbárie. Isto nós temos de ter bem claro. A tarefa da esquerda é enfrentar as causas da barbárie. Qual é a cara da barbárie no Brasil? É a reversão neocolonial que traz à tona toda a violência, os antagonismos e as virtualidades inscritas em 500 anos de história mal resolvida. A revolução brasileira é a solução desses problemas. Primeiro, os problemas não resolvidos de nosso passado colonial – a segregação social e o colonialismo que estão em todos os poros da sociedade. Segundo, os problemas do capitalismo contemporâneo, um capitalismo que marcha para a barbárie. Então, a revolução brasileira é uma revolução democrática, anti-imperialista e é uma revolução socialista. A revolução brasileira é uma trincheira da revolução mundial. Isso é inevitável e independe da vontade dos brasileiros. Qualquer revolução em qualquer país do mundo será interpretada pelo capital como uma ameaça a sua sobrevivência. Se a contrarrevolução é internacional, a revolução não tem como ser nacional. Então, é óbvio que a revolução brasileira não é uma revolução que possa se completar em sua dimensão nacional, mas ela começa na trincheira nacional.

Ou seja, ainda hoje há atualidade nessa preocupação com as insuficiências da formação brasileira conjugada com a luta pelo socialismo…

Eu não tenho a menor dúvida da importância da questão nacional. Dou um exemplo. Estava na França quando o Ayrton Senna morreu. Logo em seguida chegou meu pai impressionadíssimo com o enterro do Senna: “Filho, você não tem ideia da comoção!”. E por quê? É porque a questão nacional está muito mal resolvida. O brasileiro vive com a questão nacional engasgada no peito. Não tem um brasileiro que ganhe medalha em competições internacionais e não desabe no choro. O que é isso? É o sentimento generalizado de que não somos nada no mundo e não controlamos o nosso destino como sociedade. Se ignorarmos a questão nacional, estamos liquidados. Aliás, a direita, que é antinacional, faz questão de se apresentar como defensora dos valores nacionais.

Em anos recentes, a crise do capitalismo internacional foi acompanhada pelo surgimento e fortalecimento de alternativas de esquerda em diversos países do mundo. Com suas potencialidades e insuficiências, as experiências como Podemos, Bloco de Esquerda, as campanhas de Bernie Sanders, Jean-Luc Mélenchon e Jeremy Corbyn, entre outras, têm chamado a atenção da militância socialista no Brasil. O que é possível aprender delas? Como conjugar as lutas em nosso país com a resistência internacional aos ataques do capitalismo em crise?

A questão de fundo é que a esquerda no mundo inteiro está em crise. A esquerda é a luz no fim do túnel. É a crise da esquerda que alimenta a ultradireita. Na falta de luz no fim do túnel, os aventureiros acendem um fosforozinho – que é um trem que vai passar por cima da gente – e o povo olha e fala: “bom, vamos por lá”. A classe trabalhadora está sendo violentada e procura um caminho alternativo. A tarefa da esquerda é apontar uma saída para o inferno da globalização. É o que explica a animação da juventude com o Bernie Sanders. Assisti a um debate em que ele diz: “Não é uma questão de me eleger, não é isso… A América precisa de uma revolução!”. Eu achei incrível ele falar isto porque resgata a palavra revolução. Porque hoje só a direita pode fazer “revolução” e está fazendo, agora, no Brasil. Está colocando o Brasil no século XIX. É uma “revolução” reacionária. E nós não temos coragem sequer de colocar a questão em debate. A revolução brasileira é uma necessidade histórica. Temos que olhar a correlação de forças do ponto de vista dinâmico. Se avaliarmos as possibilidades históricas do ponto do vista estático, estamos liquidados. Do ponto de vista dinâmico, o que abre o espaço para a esquerda pensar na revolução é a profunda crise do capitalismo e os antagonismos tectônicos que dela emergem. O desafio da esquerda é como evitar o avanço da barbárie. Se tivermos ousadia de olhar para além dos muros da ordem global, seremos ouvidos. Veja o Corbyn. Eu estive na Inglaterra em 2014. Se falasse que o Partido Trabalhista seria liderado por um reformista, as pessoas iam pensar que eu estava louco. Pois aconteceu porque a classe trabalhadora e a juventude procuram desesperadamente um caminho alternativo para fugir da barbárie. A função da esquerda é abrir este caminho. Qual é a saída? A revolução socialista. Esta é a tarefa que está posta. Se isto for posto, eu acho que vai ter eco. E tenho a meu favor a burguesia porque ela é quem mais acredita no risco da revolução, tanto que não deixa a gente falar nela.

Há quase 3 anos, nos despedíamos do saudoso Plínio de Arruda Sampaio. Em 2010, em sua candidatura a presidente, Plínio insistia na necessidade de reconstruir a esquerda com a participação da juventude. E o Plínio levava uma mensagem de muita esperança, como naquele encerramento com o “Viva o Brasil!” no último debate presidencial. Onde podemos, hoje, encontrar a esperança?

Sou do partido do Gonzaguinha: eu acredito é na rapaziada! Inclusive no nosso partido. Ou a gente atropela a burocracia, de baixo para cima, ou estamos liquidados. Onde está a esperança? A esperança passa pela luta, pela ousadia de abrir horizontes, de abrir novas picadas, de encontrar alternativas. Discuto isto muito com as minhas filhas: nós estamos na barbárie e como nós vamos viver na barbárie? Em tempos de barbárie, o único jeito de dar um sentido existencial à vida é lutando contra a barbárie. A luta contra a barbárie não é só a resistência contra a barbárie, mas é, sobretudo, a superação da barbárie. Na prática, é a superação do capital. Então, a esperança vem, no fundo, da convicção de que a classe trabalhadora reagirá. Mais dias, menos dias, os trabalhadores reagirão e criarão os instrumentos e os homens da revolução socialista.


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Pedro Micussi