Os “eco-guerreiros” de Lênin

A despeito do que significou o stalinismo em termos de destruição do meio ambiente, Lênin já no início do século passado apontava a necessidade da preservação ambiental.

Fred Strebeigh 15 ago 2017, 12:11

No inverno passado, no topo de um penhasco de granito na Sibéria, fiquei olhando pasmado para o que se tornou, há 100 anos, a primeira no maior sistema das mais protegidas reservas naturais do mundo. Para o meu oeste, o Lago Baikal brilhava profundamente. Para o leste, levantavam-se montanhas nevadas, incluindo uma que me lembrou a Half Dome, um ícone do Parque Nacional Yosemite dos Estados Unidos. Eu estava olhando através de Barguzinsky Zapovednik, uma área de conservação protegendo mais de 600,000 hectares, tão livre de impacto humano que visitantes não podem entrar.

Barguzinsky iniciou uma cadeia de 103 zapovedniks, ou reservas naturais, que protegem 68 milhões de acres da Rússia. A maioria dos zapovedniks data da era soviética e fornece o maior nível de proteção do mundo para a maioria das terras dentro de qualquer nação, sob a designação da União Internacional por Conservação da Natureza de “reservas naturais estritas”.

Como a Rússia — dificilmente considerada um berço do ambientalismo, dado o programa de industrialização de Joseph Stalin — se tornou uma pioneira global em conservação?

A resposta em grande medida começa com Vladimir Ilyich Lênin. Em 1919, um jovem agrônomo chamado Nikolai Podyapolski viajou do norte do delta do rio Volga, onde a caça quase eliminou muitas espécies, para Moscou, onde conheceu Lênin. Chegando ao escritório do líder bolchevique para buscar aprovação para um novo zapovednik, Podyapolski sentiu-se “preocupado”, disse ele, “como antes de um exame no colegial”. Mas Lênin, um entusiasta de longa data de caminhadas e acampamentos, concordou que proteger a natureza tinha “valor urgente”.

Dois anos depois, Lênin assinou uma legislação ordenando que as “áreas significativas da natureza” em todo o continente fossem protegidas. Dentro de três décadas, cerca de 30 milhões de acres (equivalente em área a cerca de 40 estados do Rhode Island) dos picos europeus do Cáucaso aos vulcões do Pacífico de Kamchatka foram preservados em um sistema de 128 reservas.

As raízes dos zapovedniks eram sagradas. Durante anos padres santificaram florestas proclamando um zapoved, ou mandamento: não cortarás. No início do século 20, o sagrado estava ressoando com o científico: a humanidade estava exterminando a “natureza primordial”, disse um professor de biologia de Moscou, Grigorii Kozhevnikov, em 1908. Ele argumentou que o domínio antropogênico logo deixaria a humanidade incapaz de ver a natureza, exceto através da imitação feita pelo homem, “obscurecendo a imagem do passado desaparecido”.

Ele propôs que a Rússia preservasse vastas terras onde “a natureza deve ser deixada em paz”. Cada uma delas deveria servir não como um “terreno de prazer” para as pessoas (as palavras da lei que criaram o primeiro dos parques nacionais dos Estados Unidos, sobre os quais os russos estavam cientes), mas como um patamar estabelecido pela observação de sistemas naturais desprovidos de pessoas.

No início da década de 1920, o zoológico de Moscou começou a treinar um “círculo de jovens biólogos”, muitos dos quais se tornaram líderes no movimento comunista de conservação, estabelecendo zapovedniks tão distantes quanto a reserva costeira do Pacífico criada em 1935 para salvar o tigre siberiano.

Joseph Stalin, no entanto, não era um que obedecia ordens de outras pessoas. Na década de 1940, ele iniciou uma “grande transformação da natureza” na URSS. Para abrir o país para uma enorme expansão da agricultura, exploração madeireira, mineração e caça, ele cortou em 89% o sistema zapovednik em 1951, deixando apenas 40 reservas compostas por aproximadamente 3,5 milhões de acres.

Depois que Stalin morreu, em 1953, cientistas corajosos retornaram à luta em defesa das reservas. Em 1961, o sistema havia se recuperado para 93 zapovedniks em 15,7 milhões de acres, com algumas adições e muitas restaurações.

O sucessor de Stalin, Nikita Khrushchev, não era amigo da conservação, mas os defensores estavam se organizando. As reservas devem sua sobrevivência, em parte, a uma lei de 1960 que convidava a “participação de organizações não governamentais na proteção da natureza”. Em poucos dias, um grupo de estudantes de biologia da Universidade Estadual de Moscou assumiu o desafio. Eles chamaram o movimento deles de Druzhina, em homenagem aos guerreiros medievais que defendiam sua pátria contra invasores que procuravam destruir a fé cristã da Rússia, e começaram a lutar contra caçadores furtivos e criar reservas naturais.

O lema dos alunos repercutiu com romantismo irônico: “Em favor do sucesso de uma causa sem esperança!”. Na década de 1980, cerca de 140 brigadas do Druzhina surgiram em todo o país. Com o passar dos anos, os ativistas do Druzhina se tornaram líderes em faculdades das universidades, e em organizações ambientais e no Ministério dos Recursos Naturais da Rússia.

Na minha escalada pela costa íngreme que fica logo na parte de fora da vastidão protegida de Barguzinsky Zapovednik, o pesquisador que me conduzia era uma Druzhina chamada Irina Kurkina. Esta reserva foi a primeira da Rússia, criada em janeiro de 1917, antes que os bolcheviques tomassem o poder (o zapovednik de Volga delta proposto para Lênin pelo jovem agronomista foi o segundo a começar). A Sra. Kurkina veio até aqui em 1986, fugindo de uma fazenda avícola para a qual o sistema soviético a enviou para trabalhar, direto do colégio. Ela mora nessa parte remota do sul da Rússia muito além do alcance de qualquer estrada.

“Eu não faria este trabalho, seria esse tipo de pessoa”, ela me disse, se não fosse pela inspiração de colegas na Druzhina de Moscou, cujos nomes ela recitava enquanto subíamos.

O ativismo deles carregava riscos. Para combater a caça furtiva, as equipes Druzhina ganharam autoridade legal para fazer prisões de cidadãos. Pelo menos três Druzhina foram mortos a tiros por caçadores furtivos em diferentes regiões — perto do Mar Negro, das Montanhas Urais e do Lago Baikal — entre o início da década de 1970 e meados da década de 1980.

Quando a ameaça não era física, poderia ser política. Um líder das equipes anti-caça furtiva, Vsevolod Stepanitskiy, me contou há alguns anos sobre uma época em que ele e seus colegas de universidade, em patrulha perto de Moscou, pegaram alguns caçadores ilegais de patos. Um deles, eles tomaram conhecimento, era um “vice-ministro das Finanças”. Preocupados com a forma como o relato deles seria recebido, os alunos apresentaram suas evidências ao Partido Comunista.

O ministro fugiu com uma advertência, lembrou o Sr. Stepanitskiy. Mas os estudantes ficaram impunes, e sentiram-se vitoriosos. Druzhina tornou-se, nas palavras de outro guerreiro que mais tarde se juntou à faculdade de biologia do Estado de Moscou, “um protótipo de iniciativas civis” e, como disse, “um sinal de democratização em condições de totalitarismo”.

Como muitos Druzhina, depois de se formar, o Sr. Stepanitskiy tornou-se um pesquisador zapovednik, começando em 1982 na costa do Pacífico da Rússia. No final de 1991, quando a U.R.S.S. se dissolveu, o próprio Sr. Stepanitskiy encontrou-se encabeçando a administração Zapovedniks para a nova Federação Russa. Apesar dos tempos econômicos difíceis, ele e seus colegas aproveitaram a iniciativa e criaram 18 novas reservas em quatro anos, incluindo as espetaculares Ilhas Comandantes, as Aleutianas da Rússia no Pacífico.

A conservação da natureza na Rússia continua a ser desafiadora. O Sr. Stepanitskiy renunciou três vezes nas duas primeiras décadas de sua liderança pós-soviética para expressar sua oposição a problemas gerenciais, incluindo esforços para transformar recursos protegidos em recursos financeiros. Sua segunda renúncia ocorreu em 2002, quando um oficial do Ministério dos Recursos Naturais ordenou aos diretores zapovednik que começassem a ganhar dinheiro cortando as florestas em suas reservas. “Ir ao trabalho”, anunciou o Sr. Stepanitskiy, tornou-se algo “como ir atrás das linhas inimigas”.

Cada uma das vezes, o Sr. Stepanitskiy foi trabalhar fora do governo, ajudando as organizações ambientais e prestando apoio aos conservacionistas. Mas, cada vez, aparentemente no reconhecimento tácito do julgamento e da liderança do Sr. Stepanitskiy, o governo russo convidou-o a voltar a dirigir o sistema zapovednik.

Em 2015, o presidente Vladimir Putin, que famosamente aprecia oportunidades fotográficas na natureza com tigres, ursos e baleias, anunciou que o ano do centenário dos zapodneviks da Rússia, 2017, seria o “Ano das Áreas Protegidas”. Seu governo prometeu aumentar a área protegida da Rússia em 18% nos próximos oito anos.

Mas nuvens de tempestade se acumularam. Os salários de guardas, que o Sr. Stepanitskiy lutou para aumentar, são apenas cerca de US$ 4.300 por ano. Novos resorts de esqui, apoiados por corporações ricas que os grupos de conservação russos acreditam terem pressionado o governo, parecem ameaçar o Zapovednik Cáucaso. Enquanto o Sr. Stepanitskiy incentivou o turismo educacional em pequenas seções das reservas naturais, ele criticou a construção de esqui como um “não eco-turismo” e como algo que possivelmente põe em risco o projeto de reintrodução de leopardo que teve o apoio do Sr. Putin.

O primeiro zapovednik da Rússia no Ártico, Wrangell Island, é ameaçado por uma nova base militar. Depois que os ursos polares foram alimentados ilegalmente, um trabalhador de construção jogou em direção a um urso um dispositivo explosivo que detonou em sua boca, um horror mostrado pela TV russa. A legislação proposta autorizaria o presidente da Rússia a tirar a proteção dos zapovedniks por qualquer motivo, incluindo o de “garantir a segurança do estado”.

Em abril, o Sr. Stepanitskiy renunciou pela quarta vez. Os conservacionistas de toda a Rússia estão seguindo seus comentários agora desenfreados, incluindo o de que o ministério vê a reserva natural da Rússia como “um recurso que pode ser usado para recreação e entretenimento pessoal”. Ele atacou o governo por não sustentar a “sagrada idéia” secular do sistema.

Por enquanto, pelo menos, o legado de Lênin é preservado e a Rússia continua a ser a líder mundial, à frente do Brasil e da Austrália, na proteção da maioria das terras no mais alto nível. Os naturalistas russos continuam a avançar a sua causa ainda-não-sem esperança de manter livres algumas vastas paisagens neste planeta, onde os humanos não pisam.

(Artigo originalmente publicado pelo The New York Times. Tradução de Giovanna Marcelino.)


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