Reforma política: mudar as regras para nada mudar

A farsesca reforma política em tramitação no Congresso Nacional faz lembrar a velha máxima de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Algo deve mudar para que tudo continue como está”.

Dante Peixoto 10 ago 2017, 19:19

Com a grave crise de representatividade que atinge em cheio o coração do sistema político brasileiro, a hegemonia dos principais agentes do regime está posta em xeque. O país passa por um período obscuro em que, desde a eclosão da crise econômica, se agudizaram processos que levam a população a cada vez menos se sentir representada por agentes políticos e instituições.

Além do fato de que no parlamento não está, nem de longe, a cara da sociedade brasileira, estão por trás dessa crise fatos como o impeachment de Dilma, com a promessa mentirosa de melhoria econômica, as reformas antipovo levadas a ferro e fogo por Temer e votadas com total subserviência no Congresso, e as intermináveis revelações da Operação Lava Jato, demonstrando o favorecimento evidente de uma minoria em detrimento da maioria da população, num claro balcão de negócios entre partidos, políticos e empresários corruptos.

A última ação da Câmara dos Deputados absolvendo Temer, com declarações vergonhosas, diante de um escândalo gravado e posto a público para o país inteiro foi a cereja do bolo do processo de deslegitimação pública dos nossos parlamentares. As pesquisas de opinião são claras em mostrar o rechaço e a desconfiança da população em relação aos políticos, partidos e instituições.

Além disso, com a proibição do financiamento empresarial de campanhas pelo Supremo Tribunal Federal[3], as eleições, que são em grande parte animadas por verdadeiras máquinas de marketing, com elevados gastos, expuseram os partidos e políticos tradicionais a um risco de não se reeleger.

Em meio a toda essa falta de legitimidade e rechaço popular, todos estes parlamentares e políticos têm um encontro marcado com as eleições em 2018. Temer não se importa muito. É um agente descartável no baralho político para o ano que vem, mas vários outros, sobretudo os deputado estarão desesperadamente concorrendo à reeleição. Por conta disso, há uma movimentação que vem sendo chamado de “reforma política” dentro do Congresso Nacional.

Seria bom se fosse verdade, afinal sempre defendemos uma reforma política, mas o que está sendo operado no Congresso, em reuniões de comissões especiais e nos já conhecidos encontros não tão republicanos assim (em casas de senadores, deputados e agentes políticos), é na verdade uma deformação do sistema político brasileiro que já é péssimo.

Entender a proposta não é tarefa simples, pois há diversos projetos de leis e propostas de emenda à Constituição que formam o conjunto do que está sendo chamado de “reforma política”. Entretanto, duas dessas propostas se destacam e definem bem o que está por trás dessa mudança. A primeira delas é a Comissão Especial de Reforma Política que é presidida pelo Deputado Federal Vicente Cândido (PT-SP) e que foi alvo da mídia recentemente ao trazer uma proposta de imunidade aos pré candidatos 8 meses antes das eleições[4]. Esta proposta realmente está no texto do relatório que deverá ir a voto em breve, mas não há que se desviar por esse “bode na sala”.

A principal proposta desse projeto de lei, e que conta com apoio esmagador entre os deputados, é a criação do Fundo Especial de Financiamento da Democracia. Nome até bonito, mas que não tem nada a ver com democracia, pelo menos na sua proposta de distribuição dos recursos.

Segundo o previsto no relatório, será destinado 0,5% da receita corrente líquida apurada em junho de 2017. Apesar de meio porcento parecer ser um valor pequeno, observando os dados da Fazenda Nacional, esse valor se apurado hoje injetaria 3,6 bilhões de reais nas campanhas eleitorais de 2018.

Porém, como tudo no sistema eleitoral brasileiro, a injustiça está na distribuição. Apenas 2% do valor será distribuído igualmente entre os partidos e 98% seria distribuído proporcionalmente ao número de parlamentares em cada uma das siglas. Há ainda um debate se devem se considerar apenas os deputados federais ou os senadores também nessa conta.

Desses 3,6 bilhões de reais, o PMDB (com o número de parlamentares que possui hoje) ficaria com aproximadamente 435 milhões de reais para suas campanhas. O PT seria o segundo com cerca de 400 milhões e o PSDB em terceiro com 318 milhões. Ou seja, dos 3,6 bilhões de reais distribuídos aos partidos, mais de 30% se concentrará nas mãos dos partidos que desde sempre estiveram no poder em nosso país.

Quando se observa o número de partidos menores, mas ideológicos e que por isso costumam lançar candidaturas próprias a presidência, como é o caso do PSOL, PCB e PSTU, os três partidos juntos não atingiriam 50 milhões de recursos, sendo que o PSOL (por possuir 6 deputados) ficaria com pouco mais de 40 milhões e os outros dois receberiam apenas 2 milhões de reais cada.

Nessa seara, a Rede, de Marina Silva, tida por alguns como uma “outsider” nas eleições, também entrará no processo com um valor muito menor do que o de seus tradicionais concorrentes, recebendo cerca de 29 milhões de reais.

Vale lembrar que esses recursos são os totais que cada partido disporia para as eleições contemplando todos os deputados federais, estaduais, senadores, governadores e presidente da república e que os cálculos aqui apresentados tomaram apenas os números de deputados federais de cada legenda hoje. O que está por trás da proposta de fundo, na verdade, não é um fortalecimento das instituições democráticas, ou a possibilidade real que a reforma política aumente a representatividade dos anseios populares nos postos oficiais, mas sim a continuidade dos mesmos partidos de sempre no poder. Afinal, não precisa ser um especialista no assunto para perceber que uma campanha de 400 milhões tem muito mais visibilidade do que uma de 40.

A segunda proposta a destacar é uma emenda à PEC 77/2003, que institui o voto majoritário para os cargos legislativos no país inteiro a partir de 2018. Em outras palavras, isso significa que um candidato a deputado concorreria diretamente com os demais e os mais votados entram. Assim, acabaria o chamado “efeito Tiririca”, em que se vota no candidato, mas acaba se elegendo outro. Bom, não? Definitivamente não!

No cenário atual, tudo que os parlamentares mais temem é justamente não serem reeleitos. Em um sistema como esse, corremos seriamente o risco não termos opções. Com o chamado “Fundo de Financiamento da Democracia” distribuindo dinheiro proporcionalmente ao número de deputados, as decisões dentro dos partidos serão feitas com peso ainda maior de quem hoje já é parlamentar, afinal, caso contrário eles vão embora e o partido perde seus recursos.

Pensando assim, com uma eleição onde os candidatos não precisam somar votos de sua chapa para se eleger, por que lançariam mais candidatos do que os que já são deputados? A resposta é: não lançariam. Então teríamos basicamente como candidatos os mesmos deputados que já temos hoje, fazendo campanha com uma fatia escandalosa de dinheiro público injetadas quase que diretamente em pessoas e não em projetos de país.

Dessa forma, avança-se uma casa a mais na operação de salvação dos que estão implicados até o pescoço em tudo de ruim e de pior que temos visto. Seja nas reformas, na Lava Jato, na votação a favor de Temer, entre outras. A possibilidade de surgimento de alternativas políticas fica cada vez mais difícil dentro desse sistema que está sendo proposto e, consequentemente, a chance da vontade popular por mudanças se expressar nas urnas corre sério risco de não ocorrer. Isso tudo sem falar na cláusula de barreira, que pode definitivamente acabar com os partidos ideológicos, impondo a restrição de acesso ao fundo partidário.

A violência com que o regime político se articula para se sustentar de pé é a mesma com que retira os direitos dos trabalhadores. Ambos os movimentos inclusive são faces da mesma moeda, se aprovam essa “deforma política”, ficam mais tranquilos para acabar com nossa aposentadoria, entre outras maldades.

A bandeira de uma reforma política de verdade, feita com uma constituinte soberana e verdadeiramente democrática se faz ainda mais necessária no momento, e nós não podemos deixar isso passar batido.


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Pedro Micussi