Os bancos não podem rentabilizar a arte e nossas liberdades
O caso do cancelamento da exposição “Queermuseu” expôs o problema da instrumentalização das lutas contra opressões pelo “marketing cultural” do setor privado, especialmente os bancos.
Acompanhamos consternados o cancelamento da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, no espaço Santander Cultural em Porto Alegre. Como fica claro no título, a exposição tematizava as representações da comunidade LGBT na produção artística do país, sobretudo a história de violência contra a qual essa comunidade vem cada vez mais se organizando para combater. Em artigo aqui publicado falamos do ocorrido, especialmente do papel do MBL, que invadiu a mostra com câmeras na mão, alegando que certas obras faziam apologia à zoofilia, pedofilia, prostituição, e vexavam símbolos religiosos. A campanha difamatória assente nas bases do velho discurso conservador da “degeneração das artes” conseguiu o que queria: o cancelamento pelo Santander implicou, na prática, a censura da exposição.
Nos meios das esquerdas, muito já foi dito sobre a ação moralista do MBL, em quixotesca batalha contra as lutas LGBT. Contudo, poucos atentaram para o papel desempenhado pelo banco Santander, que num piscar de olhos passou de promovedor das artes e da diversidade a censor e intolerante. Faltam reflexões sobre o poder das instituições privadas de agirem como censores – ou mesmo influenciarem a justiça em interdições a eventos artísticos, como já ocorreu. Afinal, como disse Lira Neto na Folha neste domingo, “O Santander, que dizia apoiar a diversidade, dobrou-se à intolerância. O marketing pretensamente arejado não resistiu à tática do grito”. De fato, não resistiu; o marketing não se preocupa em enfrentar com crítica e resistência a violência social. Mas, infelizmente, é sob os auspícios dessa lógica frágil do patrocínio que hoje está amparada boa parte da circulação de obras e práticas artísticas. Por trás da falta de reflexões nesse sentido, está a naturalização da centralidade que as empresas e seus departamentos de marketing alcançaram como fomentadores das artes, enquanto o Estado sai de cena. Casos como o do “Queermuseu” expõem com muita nitidez tanto a importância de ampliação das instâncias verdadeiramente públicas de debate cultural e fomento às artes, quanto o risco de dependermos do setor privado, com sua enorme permeabilidade aos interesses mais reacionários da sociedade, para que haja vida artística e cultural no Brasil. Ao mesmo tempo, estes casos expõem o problema da lógica perversa de se instrumentalizar as lutas contra a opressão como estratégia de marketing.
A rentabilização da arte
Segundo o estudo de Eduardo Fragoaz1, as instituições financeiras são o segmento da economia brasileira que mais investe em arte e cultura, desde meados dos anos de 1980. Em recursos captados via Lei de Incentivo, em 2007, por exemplo, estão em primeiro lugar, com mais de R$ 200 milhões, seguidas pelos segmentos petroquímico (no ano referente, quase empatado em valores), de energia elétrica (menos de R$ 100 milhões), mineração, siderurgia, telefonia, automotivo, cartão de crédito (R$ 10 milhões), etc. A contrapartida do mecenato dos bancos gira em torno do marketing institucional e cultural e da participação privilegiada no mercado de arte. Vejamos a seguir algumas características desse mecenato e suas consequências.
Pode-se dizer que alguns dos principais teatros, cinemas e espaços de exposição das grandes capitais do país são mantidos por bancos: Centro Cultural Banco do Brasil (Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo), Caixa Cultural (Brasília, Curitiba, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo), Caixa Belas-Artes (São Paulo), Instituto Itaú Cultural e Espaço Itaú de Cinema (Brasília, Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo), Instituto Moreira Salles (Poços de Calda, Rio de Janeiro, São Paulo), Santander Cultural (Porto Alegre, São Paulo). Isso nos dá bem o tom do mecenato praticado: diferente do modelo clássico, voltado à produção artística em si, os bancos investem em grandes espaços, chamativos pela arquitetura e as dimensões que se destacam na cidade, onde podem exercer a curadoria que melhor encarnará a imagem da instituição. Tal curadoria é feita junto aos departamentos de marketing – onde, no limite, gestam-se as diretrizes das políticas culturais para além das que tocam as leis de financiamento. São os diretores de marketing que, em última instância, detêm a palavra final sobre o tipo de produção que teremos acesso, o que gera consequências nos discursos sobre o que é, ou não, arte. Claro, é inegável que daí se desdobram complexas negociações entre os agentes do campo artístico e das empresas, donde nem sempre prevalecem os padrões curatoriais atentos ao mercado e à ausência de crítica social. Entretanto, o marketing institucional dos bancos e demais empresas se vale justamente da “autonomia” do campo artístico como moeda de troca, cuja face de “desinteresse”, de afastamento do campo econômico, tanto lhe dirime a imagem negativa da busca “interessada” pelo lucro.
Nas artes plásticas, a orientação estética ousada e a lógica da transgressão de obras rotuláveis como “arte contemporânea”, justamente por extraírem sua legitimidade de “desinteressadas” da ostentação do distanciamento dos interesses econômicos, vez por outra tensionam sua convivência com a lógica do marketing. Daí vimos não só o recente caso em questão, mas outros, como as exposições “Erotica” (do Centro Cultural do Banco do Brasil), e a da fotógrafa Nan Goldin (do espaço Oi Futuro Flamengo) — ambas tematizavam sexualidade e gênero, e foram canceladas pelas empresas que as patrocinavam, cedendo à pressão de grupos católicos.
No entanto, muitas vezes a arte não é apenas um instrumento de incremento da imagem negativa dos Bancos; funciona também enquanto opção de investimento financeiro. Não falamos somente dos inúmeros banqueiros que se tornaram grandes colecionadores de peças — quem não se lembra do acervo impressionante do antigo dono do Banco Santos, com sua mansão-museu gigantesca? — mas do aproveitamento comercial do mercado das artes, em que a lógica do patrocínio, isto é, da busca do lucro simbólico está longe de ser a única. Os bancos são peças-chave nos circuitos extremamente mercantilizados da arte, onde especulam sobre a valorização das obras. Por exemplo, o grupo financeiro holandês ING oferece assessoria a seus clientes interessados em começar ou aumentar suas coleções de obras de arte, serviço que envolve política de compras, questões legais e tributárias, contato com especialistas técnicos (conservadores e restauradores), etc.
Os capitalistas não podem ter a custódia de nossas liberdades
Esclarecido o interesse geral que o Santander (e demais bancos) possa ter no “patrocínio” das artes, cabe destacar por que, em um primeiro momento, o banco buscou associar sua imagem especificamente à temática LGBT.
Para tanto, vale retomar o conceito de “neoliberalismo progressista” criado por Nancy Fraser. Em texto que analisa os motivos da vitória de Donald Trump, a intelectual americana argumenta que o neoliberalismo estaria perdendo sua capacidade de afirmar-se como ideologia dominante. A trituração das condições de vida causada pelo desemprego, precarização do trabalho e dos serviços, aumento da desigualdade e da violência, etc. que caracterizem o neoliberalismo surgido no final dos anos 1970 (condições de vida, aliás, agravadas após a crise de 2008), dificulta a legitimação do poder dos políticos tradicionais e grandes empreses. Para resolver esse impasse, estes agentes procurariam colar-se aos assim chamados “movimentos sociais identitários” (movimento negro, LGBT, feminista, etc.) para melhorar sua imagem. No caso americano, o neoliberalismo progressista é, nas palavras da autora:
(…) uma aliança da corrente principal dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBTQ), por um lado; e altos setores empresariais “simbólicos” e de serviços (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood), por outro. Nesta aliança, as forças progressistas estão efetivamente unidas às forças do capitalismo cognitivo, especialmente a financeirização. No entanto, involuntariamente, os primeiros emprestam seu carisma a este último. Ideais como a diversidade e o “empoderamento”, que, em princípio, poderiam servir para fins diferentes, agora lustram políticas que devastaram a indústria e o que antes eram vidas de classe média.
Dessa forma, dos movimentos sociais surgidos na década de 1960 — como o Black Panthers Party, a Segunda Onda do feminismo e a Parada do Orgulho LGBT — seria retirado o conteúdo radical de emancipação de toda a sociedade mantendo-se apenas a estética “libertadora” numa transfiguração em discursos de “empoderamento” individual. Seguindo os trilhos do “capitalismo humanizado”, que esconde o acirramento da espoliação por trás de discursos de “responsabilidade social” das empresas, a negação proforma das opressões torna-se peça de marketing que cria identificação com certos nichos de mercado além de transpor a militância para o “consumo consciente”. Com efeito, perde-se a perspectiva de transformação revolucionária de toda sociedade e reforça-se a visão setorializada; em outras palavras, apaga-se o vínculo inerente entre esses movimentos sociais e o programa histórico da classe trabalhadora. Mais ainda, retornando ao argumento de Fraser, os “movimentos sociais identitários” podem correr o risco de aproximar-se tão completamente das elites neoliberais ao ponto de aparecerem como antagônicos à classe trabalhadora — esta seria, na sua opinião uma das principais razões da vitória de Trump.
Num país em que quase 40% dos adultos estão endividados, é compreensível que um banco procure adotar essa tática. Mas novamente o caso Queermuseu é emblemático não só de como opera o “neoliberalismo progressista” mas de seus limites. O Santander “apoiava” a exposição com temática LGBT apenas na exata medida do cálculo burguês mesquinho. Quando o tom provocador da mostra cruzou este limite — causando choques, reflexões e contestações mais radicais — o banco cedeu à gritaria do moralismo burguês.
É exatamente por isso que nossas liberdades não podem estar sob a custódia dos capitalistas, ainda mais num período em que essas liberdades são constantemente atacadas, como ocorreu recentemente, quando o juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho concedeu decisão liberando o tratamento da homossexualidade como doença. É preciso insurgir-se, romper todos os conservadorismos, desafiar tabus, sem qualquer freio moralista no mesmo espírito de revolta e irreverência da Batalha de Stonewall!2 Mais ainda, ir até a raiz das injustiças e opressões em um projeto que busque revolucionar toda a sociedade, em outras palavras, “reconectar a relação entre as partes e o todo”, como defendemos no texto de Giovanna Marcelino.
A arte e as nossas liberdades devem romper as amarras do cálculo avarento de banqueiros e capitalistas em geral!
Notas dos autores
1 A moeda da arte: A dinâmica dos campos artístico e econômico no patrocínio. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2013.
2 No dia 28 de junho de 1969, frequentadores do bar LGBT Stonewall insurgiram-se contra a violência da polícia homofóbica e racista de Nova York. O ocorrido motivou a organização da primeira Parada do Orgulho LGBT do mundo.