Uma breve introdução ao ‘Capitalismo e Escravidão’ de Eric Williams

Em homenagem ao autor e em convite à leitura de seu livro clássico, publicamos abaixo o prefácio escrito pelo coletivo madrilenho Traficantes de Sueños.

Eric Williams 25 set 2017, 17:24

Introdução à edição espanhola mais recente de capitalismo e escravidão de Eric Williams

Uma só ideia percorre este livro: a escravidão, promovida e organizada pelos europeus no hemisfério ocidental entre os séculos XVI e o XIX, não foi um fato acidental da história econômica moderna. Não foi um fenômeno marginal, merecedor de opróbrio e vergonha, mas felizmente superado pela marcha triunfante do capitalismo e do regime contratual do trabalho livre que sempre parece caracterizar as economias moderna. A escravidão foi, antes de tudo, uma peça crucial nos primeiros momentos da formação do capitalismo mundial e do arranque da acumulação na Grã-Bretanha.

Entre meados do século XVI e a abolição em 1888 do tráfico no Brasil, mais de 14 milhões de pessoas, principalmente da África Ocidental e do Golfo da Guiné, foram arrancadas de suas comunidades de origem para ser deportadas às colônias europeias do Caribe, ao sul do que seriam os Estados Unidos e à costa brasileira. Foi precisamente o “gado negro” o que permitiu lavrar e cultivar as terras virgens das Antilhas depois do extermínio dos índios e das crescentes dificuldades para importar mão de obra europeia de forma suficiente. Foi também o trabalho escravo o que impulsionou o que poderíamos chamar a primeira agricultura de exportação: o cultivo de açúcar, mas também de tabaco e de algodão.

As plantações trabalhadas por escravos fizeram crescer o volume do comércio intercontinental, estimularam o desenvolvimento de todo um conjunto de indústrias de transformação (desde o refino de açúcar até as primeiras fábricas de tecido de algodão) e tornaram alguns portos atlânticos em prósperos comerciais. Assim foi como o tráfico co-triangular que da Europa levava para a África as quinquilharias (trapos, bijuteria, folha-de-flandres e espelhos) que depois eram trocadas por escravos, que depois eram vendidos na América e de cujos braços e pernas se extraiam as matérias-primas das primeiras manufaturas europeias, fez o capitalismo europeu, especialmente o capitalismo britânico. Sem as riquezas da América e sem os escravos e o comércio africanos, o crescimento econômico, político e militar dos Estados europeus teria ficado limitado, sem dúvida, a uma escala menor; talvez definitivamente menor. Com eles, o primeiro capitalismo se fez mundial e com toda razão, em Liverpool e em Bristol se dizia que “não há um só ladrilho na cidade que não esteja mesclado com o sangue de um escravo”.

A tese de Capitalismo e Escravidão é, portanto, uma tese radical. Na mesma medida em que apresenta cruamente o violento nascimento do capitalismo mostra o laço indissociável com a escravidão e os primeiros processos de acumulação nas duas orelhas do Atlântico. Do mesmo modo, à luz de sua leitura, a abolição do tráfico e da escravidão na Grã-Bretanha parece menos a obra dos lordes antiabolicionistas ingleses, que dos custos, crescentemente impagáveis, que supunha o monopólio do açúcar das Antilhas Britânicas frente aos novos interesses dos capitalistas industriais. Todo um exercício de materialismo cru, desprovido das tintas idealistas que ainda se utilizam por toda a parte na historiografia mais convencional.

O valor das afirmações deste livro é ainda maior se levado em conta o que foi escrito entre os anos 30 e 40; publicado em 1944, por um antilhano, Eric Williams, que fez parte de seus estudos em Oxford e na Universidade de Howard em Washington, a universidade negra por antonomásia dos EUA. Como não podia ser de outra maneira, Eric Eustace Williams foi também militante e ativista negro, responsável pela independência definitiva de Trinidad e Tobago e primeiro-ministro deste país entre 1956 e 1981.

Apesar do extraordinário desconhecimento desta obra em língua castelhana, publicada numa só ocasião pelas Ediciones Siglo XX em 1973 (Argentina), o trabalho de Eric Williams não é um exemplo isolado. O valor deste livro é també o de um clássico dentro de uma importante escola da historiografia negra. Capitalismo e Escravidão pode e deve ser lido ao lado de outros que em seu momento marcaram sua própria escrita. Em primeiro lugar, a outra grande referência dos radicias antilhanos dos anos 30 e 40 do século passado: C. L. R. James. Na obra maior de James nesses anos, Os jacobinos negros, se recolhe efetivamente a história, ainda surpreendentemente desconhecida, do espelho caribenho das revoluções estadunidense e francesa, a independência do Haiti, através da biografia do principal de seus líderes: Toussaint L’Ouverture. Na metade francesa da antiga Española, os escravos negros não esperaram aos filantropos. Cansados das vacilações da metrópole, imersa em seu próprio processo revolucionário, levaram a cabo a tarefa por seus próprios meios expulsando seus amos brancos da ilha. Durante mais de uma década, os soldados negros de L’Ouverture derrotaram os exércitos franceses e britânicos, em suas tentativas sucessivas e alternas de atá-los de novo com Santo Domingo. Sem dúvida foram as revoltas impulsionadas pelo que Williams chamou de “partido escravo”, e que percorreram todo o Caribe durante o primeiro terço do século XIX, as que acabaram também por fazer da escravidão um “estigma moral” para as nações civilizadas.

A geração seguinte de militantes e intelectuais caribenhos nos deixou os trabalhos de Walter Rodney, assassinado em 1980 em Guiana de origem, provavelmente por ordens da própria polícia. Seu How Europe Underveloped Africa (1962) [Como a Europa subdesenvolveu a África] segue sendo uma excelente demonstração de que a miséria africana tem muito a ver com a histórica prosperidade europeia. A este estudo e a alguns outros seguiu-se toda uma boa coleção de obras sobre a escravidão, o comércio triangular e as revoltas dos escravos, marinheiros e toda a classe de despossuídos no outro lado do Atlântico. Assim resulta impossível não mencionar a monografia já clássica de Eugene Genovese, From Rebellion to Revolution: AfroAmerican

Slave Revolts in the Making of the Modern World (1979) [Da rebelião à revolução: A revolta de escravos nas Américas]; o também clássico, para o caso brasileiro, de Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes (1964); o livro de Paul Gilroy, The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness (1993) [O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência]; ou o trabalho de Peter Linebaugh e Marcus Rediker, The Many-Headed Hydra: Sailors, Slaves, Commoners, and the Hidden History of the Revolutionary Atlantic (2000) [ A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário].

Tomados em conjunto, estes estudos do Atlântico negro, nos remetem a uma história que já não pode ser considerada exótica, objeto preferido de relatos românticos, embora quase sempre terríveis, nos mares cálidos das costas da América, mas diretamente constitutiva do Ocidente capitalista, e o que é mais, da realidade mestiça e pós-colonial da maioria de suas metrópoles. Ao ler Capitalismo e Escravidão deve-se ficar claro que se lê a própria história de um mundo feito global tanto pela evolução do tráfico e do comércio, como por uma longa sequência de migrações e diásporas massivas, mas também de desejos e lutas por liberdade e emancipação.

(Editora alternativa Traficantes de Sueños, Madri, maio de 2011)


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