O menino perdido na intempérie
Artigo de 1990 sobre a vigência do sonho socialista depois das experiências burocratizadas do século XX e do pesadelo concreto representado pelo capitalismo em sua fase mais decadente e criminosa.
Artigo publicado no El País, em 28 de março de 1990, um mês depois dos sandinistas perderam a eleição na Nicarágua. Posteriormente, Daniel Ortega voltaria, pelas urnas em 2006, ao governo nicaraguense, para reproduzir os mesmos vícios burocráticos da fraude stalinista denunciada por Eduardo Galeano neste texto.
Em Bucareste, uma grua leva a estátua de Lenin. Em Moscou, uma multidão ávida faz fila nas portas do McDonald’s. O abominável muro de Berlim é vendido em pedacinhos; Berlim Oriental confirma que está localizada à direita de Berlim Ocidental. Em Varsóvia e Budapeste, os ministros de Economia falam igualzinho a Margaret Thatcher. Em Pequim também, onde os tanques reprimem os estudantes. O Partido Comunista Italiano, o mais numeroso do Ocidente, anuncia seu próximo suicídio. É reduzida a ajuda a Etiópia e o coronel Mengistu descobre, subitamente, que o capitalismo é bom. Os sandinistas, protagonistas da revolução mais linda do mundo, perdem as eleições: «Cai a revolução em Nicarágua», intitulam os diários.
Parece que já não há lugar para as revoluções, a não ser nas vitrines do Museu Arqueológico, não há lugar para a esquerda, exceto para a esquerda arrependida que aceita sentar-se à direita dos banqueiros. Estamos todos convidados ao enterro mundial do socialismo. O cortejo fúnebre abarca, segundo dizem, à humanidade inteira.
Eu confesso que não creio nisso. Estes funerais equivocaram-se de morto.
Na Nicarágua os justos pagam por pecadores
A perestroika e paixão pela liberdade que ela desatou fizeram saltar por todas as partes as costuras de uma asfixiante camisa de força. Tudo explode. A uma taxa vertiginosa, multiplicam-se as mudanças, a partir da certeza de que a justiça social não tem por que ser inimiga da liberdade nem da eficiência. Uma urgência, uma necessidade coletiva: o povo já não aguentava mais, o povo estava farto de uma burocracia tão poderosa como inútil, que em nome de Marx proibia-o de dizer o que pensava e viver o que sentia. Toda espontaneidade era acusada de traição ou loucura.
Socialismo, comunismo? Ou tudo isso era, melhor definido, uma fraude histórica? Eu escrevo a partir de um ponto de vista latino-americano, e me pergunto: se assim foi, se assim fosse, por que nós vamos pagar o preço dessa fraude? Nesse espelho nossa cara nunca esteve.
Nas recentes eleições da Nicarágua, a dignidade nacional perdeu a batalha. Fui vencida pela fome e pela guerra; mas também foi vencida pelos ventos internacionais, que estão soprando contra a esquerda com mais força que nunca. Injustamente, os justos pagaram pelos pecadores. Os sandinistas não são responsáveis pela guerra, nem pela fome; nem cabe atribuir-lhes a menor cota de culpa pelo que ocorria no Leste. Paradoxo de paradoxos: esta revolução democrática, pluralista, independente, que não copiou os soviéticos, nem os chineses, nem os cubanos, nem ninguém, pagou os pratos que outros quebraram, enquanto o partido comunista local votava por Violeta Chamorro.
Os autores da guerra e da fome celebra, agora, o resultado das eleições, que castiga às vítimas. No dia seguinte, o governo dos Estados Unidos anunciou o fim do embargo econômico contra a Nicarágua. O mesmo havia ocorrido, anos atrás, na ocasião do golpe militar em Chile. No dia seguinte à morte do presidente Allende, o preço internacional do cobre subiu por arte da magia.
Na realidade, a revolução que derrubou a ditadura da família Somoza não teve, nestes dez longos anos, nem um minuto de trégua. Foi invadida todos os dias por uma potência estrangeira e seus criminosos de aluguel, e foi submetida a um incessante estado de sítio pelos banqueiros e mercadores donos do mundo. Mesmo assim, tudo se encaminhou para ser uma revolução mais civilizada que a francesa, porque não guilhotinou nem fuzilou ninguém, e mais tolerante que a norte-americana, que em plena guerra permitiu, com algumas restrições, a livre expressão dos porta-vozes locais do amo colonial.
Os sandinistas alfabetizaram a Nicarágua, abateram consideravelmente a mortalidade infantil e deram terra aos camponeses. Mas a guerra fez sangrar o país. Os danos da guerra equivalem a uma vez e meia ao Produto Interno Bruto, o que significa que Nicarágua foi destruída uma vez e meia. Os juízes do Tribunal Internacional de Haia ditaram uma sentença contra a agressão norte-americana, e isso de nada serviu. Tampouco serviram para nada as felicitações dos organismos das Nações Unidas especializados em educação, alimentação e saúde. Os aplausos não se comem.
Os invasores rara vez atacaram objetivos militares. Seus alvos preferidos foram as cooperativas agrárias. Quantos milhares de nicaraguenses foram mortos ou feridos, nesta década, por ordem do governo dos Estados Unidos? Em proporção, equivaleriam a três milhões de norte-americanos. E, contudo, nestes anos muitos milhares de norte-americanos visitaram a Nicarágua e foram sempre bem-recebidos, e a nenhum passou algo. Somente um morreu. Foi morto pela contra. (Era muito jovem,era engenheiro e era palhaço. Caminhava perseguido por um enxame de crianças. Organizou na Nicarágua a primeira Escola de Clowns. A contra o matou enquanto media a água de um lago para fazer uma represa. Chamava-se Ben Linder.)
A trágica solidão de Cuba
Mas, e Cuba? Não ocorreu ali também, como ocorria no Leste, um divórcio entre o poder e o povo? Não está o povo, também ali, farto do partido único, da imprensa única e da verdade única?
«Se eu sou Stalin, meus mortos gozam de boa saúde», disse Fidel Castro, e por certo que não é esta a única diferença. Cuba não importou desde Moscou um modelo pré-fabricado de poder vertical, mas que foi obrigada a converter-se numa fortaleza para que seu todo-poderoso inimigo não a almoçasse com garfa e faca. E foi nessas condições que este pequeno país subdesenvolvido conseguiu algumas façanhas assombrosas: hoje por hoje, Cuba tem menos analfabetismo e menos mortalidade infantil que os Estados Unidos. Ademais, à diferença de vários países do Leste, o socialismo cubano não foi ortopedicamente imposto desde cima e desde fora, mas que nasceu desde muito dentro e cresceu desde muito abaixo. Os muitos cubanos que morreram em Angola ou deram o melhor de si por Nicarágua em troca de nada, não estiveram cumprindo de modo submisso, e contra seus corações, as ordens de um estado policial. Se assim tivesse sido, seria inexplicável: nunca houve deserções e sempre sobrou fervor.
Agora Cuba está vivendo horas de trágica solidão. Horas perigosas: a invasão do Panamá e a desintegração do chamado campo socialista influenciam da pior maneira, temo, sobre o processo interno, favorecendo o fechamento burocrático, a rigidez ideológica e a militarização da sociedade.
Cara e cruz dos novos tempos.
Ante o Panamá, Nicarágua ou Cuba, o governo dos Estados Unidos invoca a democracia como os governos do Leste invocavam o socialismo: como um álibi. Ao longo deste século, a América Latina foi invadida mais de cem vezes pelos Estados Unidos. Sempre em nome da democracia, e sempre para impor ditaduras militares ou governos títeres colocaram a salvo o dinheiro ameaçado. O sistema imperial de poder não quer países democráticos. Quer países humilhados.
A invasão do Panamá foi escandalosa, com seus sete mil vítimas entre os escombros dos bairros pobres arrasados pelos bombardeios; mas mais escandalosa que a invasão foi a impunidade com que se realizou. A impunidade, que induz à repetição do delito, estimula ao delinquente. Ante este crime de soberania, o presidente Miterrand fez soar seu discreto aplauso e o mundo inteiro cruzou os braços, depois de pagar o impostinho de uma ou outra declaração.
Neste sentido, resulta eloquente o silêncio, e até a mal dissimulada complacência, de alguns países do Leste. A liberação do Leste implica luz verde para a opressão do Oeste? Eu nunca compartilhei da atitude dos que condenam o imperialismo no mar Caribe, mas aplaudiam ou se calavam quando a soberania nacional era pisoteada na Hungria, Polônia, Tchecoslováquia ou Afeganistão. Posso dizer isso, porque não tenho rabo de palha: o direito à autodeterminação dos povos é sagrado, em todos os lugares e em todos os momentos. Bem dizem por aí que as reformas democráticas de Gorbachev foram possíveis porque a União Soviética não corria o risco de ser invadida pela União Soviética. E simetricamente, bem dizem por aí que os Estados Unidos estão a salvo de quarteladas e ditaduras militares, porque nos Estados Unidos não há embaixada dos Estados Unidos.
Sem sombra de dúvida, a liberdade sempre é uma boa notícia. Para o Leste, que está protagonizando-a com justo júbilo, e para todo o mundo. Mas, em contrapartida, são uma boa notícia os elogios ao dinheiro e às virtudes do mercado? A idolatria do american way of life? As cândidas ilusões de ingresso ao Clube Internacional dos Ricos? A burocracia, que só é ágil para acomodar-se, está se adaptando aceleradamente à nova situação, e os velhos burocratas começam a se tornar novos burgueses.
É preciso reconhecer, desde o ponto de vista latino-americano e do chamado Terceiro Mundo, que o defunto bloco soviético tinha, ao menos, uma virtude essencial: não se alimentava da pobreza dos pobres, não participava do saque no mercado internacional capitalista e, em troca, ajudava a financiar a justiça em Cuba, na Nicarágua e em muitos outros países.E suspeito que isto será, daqui a pouco, recordado com nostalgia.
Um pesadelo realizado.
Para nós, o capitalismo não é um sonho a realizar, mas um pesadelo realizado. Nosso desafio não consiste em privatizar o estado, mas em desprivatizá-lo. Nossos estados foram comprados, a preço de barganha, pelos donos da terra e pelos bancos. E o mercado não é, para nós, mais que uma nave de piratas: quanto mais livre, pior. O mercado local, e o internacional. O mercado internacional nos rouba com os dois braços. O braço comercial nos vende cada vez mais caro e nos compra cada vez mais barato. O braço financeiro, que nos empresta nosso próprio dinheiro, nos paga cada vez menos e nos cobra cada vez mais.
Vivemos numa região de preços europeus e salários africanos, onde o capitalismo atua como aquele bom homem que dizia: «Gosto tanto dos pobres, que sempre me parece que não há suficiente quantidade». Só no Brasil, citemos de passagem, o sistema mata mil crianças por dia de enfermidade ou de fome. Na América Latina, o capitalismo é antidemocrático, com ou sem eleições: a maioria da gente está presa da necessidade e está condenada à solidão e à violência. A fome mente, a violência mente: dizem pertencer à natureza, simulam fazer parte da ordem natural das coisas. Quando essa «ordem natural» se desordena, os militares entram em cena, encapuzados ou com a cara descoberta. Como dizem na Colômbia: «O costo da vida sobe e sobe, e o valor da vida baixa e baixa».
As eleições da Nicarágua foram um golpe muito duro. Um golpe como do ódio de Deus, que dizia o poeta. Quando soube o resultado, eu fui, e ainda sou, um menino perdido na intempérie. Um menino perdido, digo, mas não só. Somos muitos. Em todo o mundo, somos muitos.
Às vezes sinto que nos roubaram até as palavras. A palavra socialismo é usada, no Oeste, para maquiar a injustiça; no Leste, evoca ao purgatório, ou quiçá ao inferno. A palavra imperialismo está fora de moda e já não existe no dicionário político dominante, ainda que o imperialismo, sim, exista, despoje e mate. E a palavra militância? E o fato mesmo da paixão militante? Para os teóricos do desencanto, é uma antiqualha ridícula. Para os arrependidos, um estorvo da memória.
Em poucos meses, temos assistido ao naufrágio estrepitoso de um sistema usurpador do socialismo, que tratava o povo como a um eterno menor de idade e o levava pela orelha. Mas há três ou quatro séculos, os inquisidores caluniavam Deus quando diziam que cumpriam suas ordens; e eu creio que o cristianismo não é a Santa Inquisição. Em nosso tempo, os burocratas desprestigiaram a esperança e sujaram a mais bela das aventuras humanas; mas eu também creio que o socialismo não é o stalinismo.
Agora, é preciso voltar a começar. Passo a passo, sem mais escudos que os nascidos de nossos próprios corpos. É preciso descobrir, criar, imaginar. No discurso que Jesse Jackson pronunciou pouco depois de sua derrota, nos Estados Unidos, ele reivindicou o direito de sonhar: «Vamos defender esse direito —disse-—. Não vamos permitir que ninguém nos arrebate esse direito». E hoje, mais do que nunca, é preciso sonhar. Sonhar, juntos, sonhos que se ‘desensonhem’ e em matéria mortal encarnem, como dizia, como queria, outro poeta. Lutando por esse direito, vivem meus melhores amigos; e por ele alguns deram a vida.
Este é o meu testemunho. Confissão de um dinossauro? Talvez. Em todo o caso, é o testemunho de alguém que crê que a condição humana não está condenada ao egoísmo e à obscena caça do dinheiro, e que o socialismo não morreu, porque ainda não era: que hoje é o primeiro dia da longa vida que tem por viver.
Maio de 1990