Ciclones, mudança climática e especulação imobiliária: o caso Harvey

O autor conecta as mudanças climáticas com a ocorrência cada vez mais frequente de ciclones avassaladores, cujos efeitos são desigualmente sentidos tanto geográfica quanto socialmente.

Daniel Tanuro 10 set 2017, 14:49

O condado Harris no Texas com 4,5 milhões de habitantes. Um terço de sua superfície está afundada nas águas como consequência da passagem do ciclone Harvey. A cidade de Houston parece um arquipélago de ilhotas em meio a um imenso pântano de água cheia de barro. Em alguns bairros, as águas chegaram até o primeiro andar das casas. É preciso lamentar 22 mortes, mas este número não será definitivo enquanto as águas não se retirarem. Dezenas de milhares de pessoas estão sem abrigo. Os danos materiais são enormes, muita gente se arruinou, sobretudo entre as camadas modestas.

Violência crescente dos ciclones

Os ciclones são formados no oceano nas regiões tropicais. Sua força, a velocidade a que cresce esta força e a quantidade de água que carregam são três variáveis que estão em função da evaporação da superfície do mar, portanto, da temperatura da água. No Golfo do México, nos finais do verão, a água está mais de um grau Celsius mais quente hoje do que há trinta anos. Os ciclones tendem portanto a ser mais violentos e a se reforçar mais rapidamente. Bem, quanto mais violentos são, mais capazes são de realizar a sucção de grandes quantidades de água e transportá-las à atmosfera (que também está mais úmida devido ao aquecimento).

Harvey ilustra desgraçadamente a tendência ao reforço dos ciclones. A velocidade de seus pontos de vento tem aumentado ao menos 55 km/h num período de 24 horas (Harvey é portanto um ciclone de força 4 na escala de Saffir-Simpson, que chega até 5). Na sexta-feira, passou rapidamente de 96 a 193 km/h antes de alcançar os 210 km/h. A quantidade de água lançada é aterradora: mais de 120 centímetros água caíram em alguns dias sobre a região de Houston. E não acabou. Agora a região afetada é Luisiana.

Uma vez que um ciclone chega a terra, sua força tende a se debilitar e se transforma em tempestade tropical. No caso de Harvey, a amplitude da catástrofe tem aumentado devido a que esta tempestade permanecera praticamente imóvel: estava presa entre duas zonas de alta pressão que a empurravam em direções opostas. (Alguns climatólogos pensam que este tipo de situação também tem a ver com a mudança climática, mas isso segue sendo uma hipótese). Como consequência, as trombas d’água caíram sobre o condado de Harris durante dias. Graças à ausência de movimento, tem ocorrido inclusive um fenômeno de retroação positiva: ao contato com o solo quente, a chuva tem se evaporado e tem realimentado ao céu em reservas de água…

Um efeito da mudança climática

A gravidade da catástrofe casa perfeitamente com as projeções científicas sobre os efeitos da mudança climática. Kerry Emanuel, um professor de ciências da atmosfera no Massachusetts Institute of Technology, tem comparado a evolução de 6000 tempestades simuladas, respectivamente nas condições do século XX e nas condições do final do XXI se as emissões de gás de efeito estufa continuarem aumentando. Sua conclusão é a seguinte: nos anos 1900, a probabilidade de ver um ciclone ganhar mais 55 km/h durante as 24 horas precedentes a sua chegada a terra era de uma por século; nas décadas a vir, este tipo de fenômeno poderia ser observado a cada dez anos.

Outro investigador, Michael Wehner, do departamento de Energia do Laurence Berkeley National Laboratory, estima que a subida da temperatura em decorrência da mudança climática antrópica provoca ao menos entre 10% e 15% de aumento das precipitações ligadas aos ciclones. Mas o aumento poderia ser muito mais importante se o aquecimento antrópico se combinasse com outros fatores, atribuíveis à variabilidade natural do clima. Neste caso, diz, as precipitações poderiam aumentar cerca de 50%, inclusive mais 1

As projeções sobre a frequência dos ciclones violentos estão confirmadas pelas observações. Segundo os critérios do serviço encarregado do controle das inundações no condado Harris, a região conheceu oito tempestades excepcionais entre 1998 e 2016. Cinco delas estavam consideradas como das que têm uma oportunidade sobre cem de se produzir num ano. As outras três eram ainda menos prováveis. Em 2016, Houston tem sofrido inundações inclusive duas vezes: por uma tempestade do primeiro tipo de maio, e outra do segundo tipo de abril…2

Trump, um bombeiro piromaníaco

Donald Trump tentou aproveitar-se de Harvey para desviar a atenção de seus problemas: as consequências de Charlottesville, suas perigosas fanfarronices frente a Kim Jung Un, etc., etc. Antes da chegada do ciclone, desde a Casa Branca, multiplicou as declarações e as promessas de apoio. Na terça-feira, 29 de agosto, acudiu aos lugares da catástrofe com sua esposa e ao menos seis membros de seu governo (entre eles o general Kelly, seu chefe de gabinete). Para se fazer notar, não para reconfortar as vítimas: nem sequer as visitou!

Trump nos lugares de uma catástrofe climática é algo como um piromaníaco que contempla seu incêndio. Megalomaníaco narcisista, o presidente nacional-populista quer entrar na História por sua resposta exemplar (na sua opinião!) à catástrofe de Houston, que qualifica como “natural”. “Queremos fazer isso melhor do que nunca antes”, declarou, “Queremos que nos olhem em cinco, dez anos, como um modelo do que é preciso fazer”3.

É evidente que, ao contrário, é como um modelo do que não se deve fazer que entrará Trump na História. Primeiro, porque nega a realidade da mudança climática. Porque tem denunciado o Acordo de Paris sobre o clima (ainda que totalmente insuficiente, este acordo tem a vantagem de fixar um objetivo:um teto de 2º de aquecimento e “continuar os esforços para não superar o 1,5ºC”). Porque faz tudo o que pode para relançar a exploração de carvão e apoiar as areias betuminosas do Canadá (relançamento dos oleodutos Keystone XL e Dakota). Porque quer cortar o financiamento público aos pesquisadores que trabalham sobre o aquecimento. Porque enfatiza Houston, porém pouco lhe importam as catástrofes climáticas ao menos tão graves quanto esta nos países do Sul, como nas Filipinas (que não têm praticamente nenhuma responsabilidade no aquecimento global).

O setor imobiliário, nem tocar

Mas a catástrofe de Houston ilumina uma segunda razão pela qual Trump é o contrário de um modelo: o apetite de lucro dos patrões do setor imobiliário, do qual faz parte. A especulação e o cimento funcionam em conjunto no condado Harris, como na maior parte das regiões costeiras. Entre 1992 e 2010, construiu-se cerca de 25% entre 1996 e 20114. Os biotipos capazes de absorver as precipitações foram, em grande parte, absorvidos; as águas pluviais aumentam transbordando a capacidade dos sistemas de evacuação e inundando os bairros.

Seria necessária uma regulação estrita para impedir – na medida do possível – que o agravamento das catástrofes resultasse num agravamento dos efeitos, tanto mais perigoso quanto que a está região está cheia de fábricas petroquímicas muito contaminantes! Porém, o Departamento de controle de inundações de Harris County não quer ouvir nada: seus responsáveis negam a tendência ao agravamento dos ciclones. Denunciam a “agenda antidesenvolvimento” dos cientistas assim como as associações conservacionistas do meio ambiente. Estranha cegueira. É preciso dizer que as somas de dinheiro em jogo são astronômicas e suscetíveis, quem sabe, de corromper muitos funcionários…

Em junho de 2001, a tempestade tropical Allison fez cair cerca de um metro de água sobre Houston em cinco dias, com 73 000 casas inundadas. Mais da metade se encontravam em zonas nas quais a probabilidade de inundação era inferior a 1/100 por ano. Vinte e duas pessoas morreram e os danos alcançaram os 5 bilhões de dólares. Era uma advertência. Não foi ouvida: os projetos imobiliários continuam se desenvolvendo como cogumelos… em particular nas zoans devastadas por Allison. Para o maior benefício dos vampiros a la Trump, que negam a mudança climática e maldizem as “regulações destruidoras de emprego”.

Alguém disse luta de classes?

Cada catástrofe tem por efeito a queda temporal dos preços nas zonas afetadas. E os promotores se precipitam para fazer bons negócios. Evidentemente, apostam que o mercado não tarde em se recuperar, o que lhe assegurará grandiosas mais-valias. É um ciclo infernal, pois cada uma destas ondas de investimento imobiliário tem significado ao mesmo tempo um aumento da segregação social (contra trabalhadores, negros e mulheres), e um aumento das superfícies impermeabilizadas, com um aumento da sensibilidade da região à violência crescente dos ciclones e, portanto, uma multiplicação das catástrofes.

Cedo ou tarde, este encadeamento desembocará num afundamento duradouro do mercado nas zonas costeiras mais expostas. O que farão então os promotores e as seguradoras? Mudarão de terreno de jogo para responder à demanda dos ricos de viver seguros em terras mais elevadas… Em Houston, trata-se de bairros como Little Haiti e Liberty City, habitados pelos assalariados de rendas baixas, com uma forte proporção de negros e mulheres 5. Como em New Orleans depois do Katrina, as pessoas pobres pagarão o pato. Alguém disse luta de classes?

31/08/2017

(Artigo originalmente publicado no site LCR La Gauche.)


Notas do autor

1 How Climate Change Likely Heightened Harvey’s Fury, National Geographic, 28/8/2017.

2 Boomtown, Flood Town, The Texas Tribune and ProPublica, 6/12/2016.

3 Trump vows vigorous response after viewing Harvey’s devastation, The Hill, 29/8/2017.

4 Boomtown, Flood Town, The Texas Tribune and ProPublica, 6/12/2016

5 How climate change could turn US real estate prices upside down, The Guardian, 29/8/2017


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