Notas sobre gênero em “O Capital” de Marx
Uma reconstrução da leitura de Marx sobre a questão de gênero em O Capital, mostrando como os alcances e limites de sua interpretação foram um ponto de partida essencial as feministas.
À medida que o interesse no marxismo e no feminismo se renova, e o olhar de Marx sobre “gênero” recebe nova atenção, surgem novos consensos entre as feministas, que também moldam minha abordagem do tema.1 Em primeiro lugar, enquanto nos primeiros trabalhos de Marx podem ser encontradas denúncias sobre as desigualdades de gênero e o controle patriarcal na família e na sociedade, é de acordo comum que “Marx não tinha muito a dizer sobre gênero e família” (Brown, 2012: 143)2 e que, mesmo em O Capital, seu olhar a este respeito deve ser reconstruído a partir de observações dispersas.
No entanto, o trabalho de Marx tem sido de grande contribuição para o desenvolvimento da teoria feminista, embora não se baseie em sua totalidade em seus pronunciamentos diretos sobre o tema. Não só seu método histórico-materialista ajudou a demonstrar que as hierarquias e identidades genéricas são construções (Holmstrom, 2002a), senão que suas análises sobre a acumulação capitalista e a criação de valor dotaram as feministas da minha geração de ferramentas poderosas para repensar tanto as formas específicas de exploração a que as mulheres foram submetidas na sociedade capitalista quanto a relação entre sexo, raça e classe (James, 1975). Porém, o uso que as feministas fizeram de Marx as conduziram, na melhor das hipóteses, em uma direção diferente daquela que ele traçou.
Escrever sobre gênero em O Capital é reconciliar com dois Marx diferentes e, acrescento, dois pontos de vista diferentes sobre gênero e luta de classes. De acordo com isso, duas partes são observadas abaixo. Na primeira parte, examino a visão de Marx sobre gênero tal como ele a articula no volume 1 em sua análise sobre o emprego das mulheres no trabalho industrial. Também comento seus silêncios, especialmente em relação ao trabalho doméstico, já que são eloquentes sobre as preocupações que estruturavam seu pensamento no momento em que ele escreveu.
Aqui, minha principal ideia é que Marx não teorizou sobre gênero porque, em parte, a “emancipação das mulheres” tinha uma importância periférica em seu trabalho político; de fato, ele naturalizava o trabalho doméstico e, tal como o movimento socialista europeu em seu conjunto, idealizava o trabalho industrial como a forma normativa de produção social e como potencial nivelador das desigualdades sociais. Então, considerava que, eventualmente, as distinções em torno de gênero e idade se dissipariam. Ele não conseguiu apreciar a importância estratégica, tanto para o desenvolvimento do capitalismo como para a luta contra ele, da esfera de atividades e relações pelos quais nossas vidas e a força de trabalho são reproduzidas, começando pela sexualidade, a procriação e, primeiro e principalmente, o trabalho doméstico não remunerado das mulheres.
Esses “descuidos” sobre a importância do trabalho reprodutivo das mulheres implicam que Marx, apesar de sua condenação das relações patriarcais, nos deixou uma análise do capital e da classe a partir de uma perspectiva masculina – a do “homem que trabalha”, o assalariado industrial em cujo nome a Internacional se formou, considerado o portador da aspiração universal à libertação humana.
Da mesma forma, implicam que muitos marxistas se justificaram em tratar o gênero e a raça como questões culturais, dissociando-as da classe, e que o movimento feminista teve que começar com uma crítica de Marx.
Assim, enquanto este artigo enfoca o tratamento sobre gênero no grande texto de Marx, na segunda parte, reviso brevemente a reconstrução das categorias de Marx desenvolvidas pelas feministas na década de 1970, especialmente no “Movimento a favor do Salário para o Trabalho Doméstico”, do qual eu fiz parte. Eu argumento que essas feministas encontraram em Marx o fundamento para uma teoria feminista centrada na luta das mulheres contra o trabalho doméstico não remunerado porque lemos sua análise do capitalismo politicamente, que provinha da experiência pessoal direta, em busca de respostas para o nosso rechaço das relações domésticas. Naquela época, conseguimos levar a teoria de Marx a lugares onde Marx permaneceu oculto. Ao mesmo tempo, ler Marx numa chave política revelou as limitações de seu quadro teórico, o qual demonstrou que uma perspectiva feminista anticapitalista não pode ignorar seu trabalho, pelo menos enquanto o capitalismo seja o modo dominante de produção (Gimenez, 2005: 12), mas deve ir além dele.
1. Marx e o gênero na esfera de produção industrial
Os limites do trabalho de Marx destacam-se de modo claro no volume 1 d’O Capital, uma vez que ali examina pela primeira vez a questão do “gênero” não em relação à subordinação das mulheres dentro da família burguesa, mas em relação às condições do trabalho fabril da mulher na revolução industrial. Esta foi a “querela das mulheres” da época,3 em ambos os lados do canal, contra a qual economistas, políticos e filantropos clamaram pela destruição da vida familiar que produzia, a nova independência que conferia às mulheres, e sua contribuição ao protesto dos trabalhadores, expressa no ascenso dos sindicatos e da caridade.
Portanto, para o momento em que Marx começou a escrever, as reformas já estavam em andamento, e ele contava com abundante literatura sobre o assunto, que consistia em relatórios dos inspetores de fábrica, que na década de 1840, o governo inglês empregava para fosse cumprido o limite imposto de horas de trabalho para mulheres e crianças.4
O volume 1 cita páginas inteiras desses relatórios, especialmente nos capítulos sobre “A jornada de trabalho” e “Máquinas e grande indústria”, que ilustram as tendências estruturais da produção capitalista – as tendências a estender as horas de trabalho ao limite da resistência física dos trabalhadores, a desvalorizar a força de trabalho, a extrair o máximo de trabalho do número mínimo de trabalhadores – e denunciam os horrores aos quais mulheres e crianças eram submetidos em todas as etapas do desenvolvimento industrial.
Eles nos informam sobre as costureiras que morriam por excesso de trabalho e falta de ar e alimento (Marx, 1995: 198), sobre meninas que trabalhavam sem alimentar-se quatorze horas por dia, ou que se arrastavam seminuas nas minas para transportar carvão à superfície, sobre crianças que eram tiradas da cama à meia-noite “e obrigadas a trabalhar para ganhar um mísero sustento” (ibid.: 188): “as crianças eram levadas ao matadouro” (Ibid.: 233 ) [onde] máquinas vampíricas consumiram suas vidas “enquanto existisse um músculo, um tendão, uma gota de sangue para sugar” (ibid.: 241).
É preciso reconhecer que poucos escritores políticos descreveram, sem fazer concessões, como o fez Marx, a brutalidade do sistema capitalista – por fora da escravidão. Particularmente impressionante é sua denúncia da barbaridade da exploração do trabalho infantil, sem paralelo na literatura marxista. Mas, apesar de sua eloqüência, sua explicação é mais descritiva do que analítica, e chama a atenção a ausência da discussão sobre as questões de gênero.
Não nos informa, por exemplo, como o emprego de mulheres e crianças nas fábricas afetou as lutas dos trabalhadores, quais debates motivaram suas organizações ou como afetou as relações entre mulheres e homens. Por outro lado, temos vários comentários moralistas, tais como que o trabalho fabril degradava o “caráter moral” das mulheres ao promover condutas “promíscuas” e as fazia descuidar de seus deveres maternos. Quase nunca as mulheres são retratadas como atoras capazes de lutar por si mesmas.5 Geralmente, aparecem como vítimas, embora seus contemporâneos notassem sua independência, seu comportamento estrondoso e sua capacidade de defender seus interesses contra as tentativas por parte dos donos das fábricas de reformar seus costumes.6
Na explicação de Marx sobre o gênero na esfera de produção também falta uma análise da crise que a extinção do trabalho doméstico nas comunidades proletárias provocou a favor da expansão das relações capitalistas, e o dilema que o capital enfrentou – naquele momento como na atualidade – quanto ao ótimo lugar e do uso do trabalho das mulheres. Esses silêncios são especialmente significativos, já que os capítulos que mencionei são os únicos em que as questões em torno das relações de gênero estão presentes.
As questões de gênero têm um lugar marginal em O Capital. Em um texto de três volumes de milhares de páginas, apenas uma centena se refere à família, à sexualidade, ao trabalho das mulheres, e estas são observações de passagem. Faltam referências ao gênero, mesmo onde elas são mais esperadas, como nos capítulos sobre a divisão social do trabalho ou sobre os salários.
Somente ao final do capítulo “Máquinas e grande indústria”, encontramos algumas pistas sobre políticas de gênero que sabemos que Marx defendia em seu trabalho político, como secretário da Primeira Internacional, em qualidade da qual se opôs às tentativas de excluir as mulheres do trabalho fabril.7 Isso é coerente com a sua convicção de toda a vida de que o capitalismo – apesar de toda a sua violência e brutalidade – era um mal necessário e uma força progressiva, já que o verdadeiro capitalista obriga o […] desenvolvimento das forças sociais produtivas e criar condições materiais de produção que são a única base real para uma forma superior de sociedade cujo princípio fundamental é o pleno e livre desenvolvimento de todos os indivíduos (Marx, 1995: 499, itálico no original).
Aplicado ao gênero, isso significava que, ao “liberar” o trabalho das limitações da especialização e da necessidade da força física, e ao incorporar mulheres e crianças na produção social, o desenvolvimento capitalista e a industrialização em particular suavizavam o caminho para relações de gênero mais igualitárias. Por um lado, liberavam as mulheres e crianças da dependência pessoal e da exploração parental de seus trabalhos – distintivas da indústria nacional; por outro, lhes permitia participar em igualdade de condições com os homens na produção social.
À medida ele expõe ao discutir sobre a introdução da educação básica para as crianças que trabalhavam na fábrica:
E, por mais espantosa e repugnante que nos pareça a dissolução da antiga família dentro do sistema capitalista, não é menos certo que a grande indústria, ao atribuir à mulher, ao jovem e a criança de ambos os sexos um papel nos processos socialmente organizados da produção, arrancando-os com isso [da] órbita doméstica, cria as novas bases econômicas para uma forma superior de família e de relações entre ambos os sexos (ibid.: 410).
Como seria essa nova família, como reconciliaria “produção com reprodução”, não é algo que Marx investiga. Ele apenas acrescentou com cautela que:
a existência de uma mão-de-obra trabalhadora combinada, em que entram indivíduos de ambos os sexos e das mais diversas idades – embora hoje, em sua forma primitiva e brutal, em que o trabalhador existe para o processo de produção e não este para o trabalhador, seja uma fonte podre de corrupção e escravidão -, sob as condições que correspondem a este regime, serão transformadas necessariamente numa fonte de progresso humano (id.).
Para a suposição de Marx de que o deslocamento do doméstico para a grande escala industrial produziria uma sociedade mais humana era chave, sem dúvida, embora não tenha explicitamente articulado a idéia (para a qual ele retornava em várias seções de O Capital) de que o trabalho industrial é mais do que um multiplicador do poder de produção e (suposta) garantia da abundância social. É – potencialmente – o criador de um tipo diferente de associação cooperativa e de um tipo diferente de ser humano, livre da dependência pessoal e não “determinado” para um tipo particular de habilidades, capaz, portanto, de envolver-se em uma ampla variedade de atividades e de assumir o tipo de comportamento exigido por uma organização “racional” do processo de trabalho.
Concomitante com sua concepção de comunismo como o fim da divisão do trabalho, e com sua visão em A ideologia alemã de uma sociedade onde um pescaria e caçaria pela manhã e escreveria poemas pela tarde (Marx e Engels 1974: 34), pode tornar sedutora a idéia de uma sociedade industrial, cooperativa e igualitária, onde (parafraseando um pronunciamento provocativo no Manifesto Comunista)8 as diferenças de gênero perderam toda “validade social” na classe trabalhadora. Não surpreende que essa ideia inspirou gerações de ativistas sociais, incluindo as feministas.
Não obstante, como as feministas descobriram na década de 1970, essa perspectiva tem limitações importantes. Vale a pena mencionar quatro delas, todas com implicações além do gênero, relacionadas ao conceito de Marx em torno da industrialização e do desenvolvimento capitalista como forças emancipadoras e condições para a libertação humana.
Ao celebrar a indústria moderna por libertar as mulheres das cadeias tanto do trabalho doméstico como do regime patriarcal e por tornar possível sua participação na produção social, Marx assumiu que:
a) as mulheres nunca antes estiveram envolvidas na produção social, ou seja, o trabalho reprodutivo não deveria ser considerado um trabalho socialmente necessário; b) o que limitou no passado sua participação no trabalho foi a falta de força física; c) o salto tecnológico é essencial para a igualdade de gênero; d) o que é mais importante, em antecipação ao que os marxistas repetiriam por gerações: o trabalho fabril é a forma paradigmática da produção social, conseqüentemente, a fábrica, e não a comunidade, é o local da luta anticapitalista.
Perguntas devem ser feitas em cada um desses pontos.
Podemos desfazer rapidamente do argumento da “força física” como uma explicação da discriminação baseada em gênero. Basta dizer que a própria descrição de Marx sobre as condições de emprego das fábricas para mulheres e crianças é um contra-argumento, e que os relatórios fabris que ele citou deixam claro que as mulheres eram empregadas para o trabalho industrial, não porque a automação reduzisse a carga de seu trabalho (Marx, 1995: 331), mas porque se pagaria menos a elas, consideradas mais dóceis e mais inclinadas a deixar todas as suas energias em seu posto. Devemos também dissipar a idéia sobre o confinamento de mulheres às tarefas do lar antes do advento da industrialização. A indústria doméstica da qual as mulheres se libertaram empregava uma pequena parte do proletariado feminino, e era em si mesma uma inovação relativamente recente que resultou do colapso dos grupos artesãos.9 Na realidade, antes a revolução industrial, e durante ela, as mulheres desempenharam diferentes trabalhos, desde agricultura até comércio, serviço e trabalho doméstico. Portanto, como Bock e Duden documentaram, não há base histórica para a idéia – a que Marx e outros socialistas subscreveram – que “o desenvolvimento do capitalismo, com seu trabalho cada vez mais industrial (“produtivo”) para as mulheres, libertou-as e as libera da idade dos reinos feudais do trabalho doméstico e da tutela dos homens” (1980: 157).
Marx também minimizou, em sua concepção da indústria em larga escala como um equalizador de distinções biológicas e sociais, o peso das hierarquias sexuais herdadas e reconstruídas que asseguravam que as mulheres experimentariam o trabalho fabril de modos específicos, distinto dos modos dos homens. Ele observou que os pressupostos sobre o gênero permaneceriam sua proeminência no trabalho industrial – usados, por exemplo, para justificar os salários mais baixos das mulheres em comparação com os dos homens – e que as condições de trabalho “promíscuas” poderiam significar uma vulnerabilidade para o abuso sexual, que com frequência resultava na gravidez em idade precoce (Marx, 1995: 591). Mas, como já vimos antes, ele assumiu que esses abusos seriam superados quando os trabalhadores tomassem o poder político e redirecionassem os objetivos da indústria para seu bem-estar. No entanto, após dois séculos de industrialização, podemos ver que, enquanto o fim do capitalismo não está à vista, a igualdade no âmbito do trabalho tem sido um produto das lutas das mulheres e não um presente de máquinas.
Mais crucial, resulta que a identificação de Marx do trabalho industrial com a forma normativa do trabalho e o lugar privilegiado para a produção social não deixa espaço para a consideração das atividades reprodutivas domésticas, que, como afirmou Fortunati, Marx mencionou apenas para notar que o capital as destrói ao se apropriar de todo o tempo das mulheres.10
Existe um contraste interessante com o trabalho de Alfred Marshall, pai da economia neoclássica, no que se refere à abordagem da relação entre a fábrica e o lar. A visão de Marx do trabalho industrial como um tipo de trabalho mais racional lembra a “capacidade geral de trabalho” de Marshall, que ele descreveu como uma nova capacidade com a qual [naquela época] contavam poucos trabalhadores no mundo: “específico não de qualquer ocupação, mas desejada por todos, que permite aos trabalhadores sustentar por um longo período de tempo qualquer tipo de trabalho, ter em conta muitas coisas ao mesmo tempo, se adaptarem rapidamente às mudanças nos detalhes do trabalho realizado, permanecerem estáveis e ser confiável” (Marshall, 1890: 206-207).
Marshall, no entanto, de acordo com os reformistas contemporâneos, acreditava que o principal contribuinte para a produção dessa “habilidade geral” era a vida doméstica e especialmente a influência da mãe (ibid.: 207), pelo que se opunha fortemente ao emprego exterior das mulheres. Marx, ao contrário, dá pouca atenção ao trabalho doméstico. Não há uma discussão a esse respeito em sua análise sobre a divisão social do trabalho, onde ele afirma apenas que a divisão do trabalho na família tem uma base fisiológica.11 Mais surpreendente é o seu silêncio sobre o trabalho doméstico das mulheres em sua análise da reprodução da força de trabalho em seu capítulo “Reprodução simples”.12
Aqui ele apela a uma questão crucial para a compreensão do processo de criação de valor no capitalismo: a força de trabalho, a nossa capacidade de trabalhar, não nos é dada. Consumida todos os dias no processo de trabalho, deve (re)produzir-se constantemente, e essa (re) produção é tão essencial para a valorização do capital como é “a limpeza das máquinas” (Marx, 1995: 481), uma vez que “é produção e reprodução dos meios de produção indispensáveis para o capitalista, do próprio trabalhador” (Id.).
Em outras palavras, como também sugeriu nas notas então publicadas sob o título Teorias sobre a mais-valia13 e em O Capital, Marx indica que a reprodução do trabalhador é parte essencial e condição da acumulação de capital. Não obstante, apenas a concebe sob o aspecto de “consumo” e coloca sua realização somente dentro do circuito da produção de mercadorias. Os trabalhadores – segundo Marx – usam seus salários para comprar as necessidades da vida e, ao consumi-las, se reproduzem. É literalmente a produção de assalariados por meio das mercadorias produzidas pelos assalariados.14 Portanto, “o valor da força de trabalho é o valor dos meios de vida necessários para garantir a subsistência do seu possuidor” (ibid.: 124, ênfase adicionada) e é determinado pelo tempo de trabalho necessário para a produção de mercadorias que os trabalhadores consomem.
Em nenhuma parte de O Capital, Marx reconhece que a reprodução da força de trabalho envolve o trabalho não remunerado das mulheres – preparar comida, lavar a roupa, criar os filhos, fazer amor. Pelo contrário, ele insiste em retratar o assalariado como um reprodutor de si mesmo. Mesmo considerando as necessidades que o trabalhador deve satisfazer, ele o retrata como um comprador de mercadorias auto-suficiente; enumera entre outras necessidades para a vida os alimentos, abrigos, roupas, mas omite estranhamente o sexo, seja obtido dentro da configuração familiar ou comprado, o que sugere que a vida do trabalhador é imaculada enquanto a mulher só é moralmente manchada pelo trabalho industrial (id.). A prostituta é negada como trabalhadora e é relegada a um exemplo da degradação das mulheres; (ibid.: 545), são apenas representadas como pertencentes “aos últimos restos da superpopulação”, esse “lumpen-proletariado” (id.) que em O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte descreveu como “a escória de todas as classes” (1972: 80).
São as poucas passagens em que Marx se aproxima para romper seu silêncio e admitir implicitamente que o que é apresentado como “consumo” ao assalariado pode ser trabalho reprodutivo do ponto de vista de sua contraparte feminina. Em uma nota de rodapé a discussão sobre a determinação do valor da força de trabalho, em “Máquinas e grande indústria”, ele escreve: “basta observar como o capital usurpa em seu próprio benefício, até o trabalho familiar indispensável para o consumo “(Marx, 1995: 324). E ele acrescenta:
Como na família existem certas funções, por exemplo, a de atender e amamentar as crianças, que não podem ser suprimidas radicalmente, as mães confiscadas pelo capital se veem em maior ou menor medida a contratar trabalhadoras para substituí-las. Os trabalhos impostos pelo consumo familiar, como costurar, remendar, etc., são fornecidos comprando produtos prontos. Ao diminuir o investimento de trabalho doméstico, aumenta, como é lógico, o investimento de dinheiro. Portanto, os custos de produção da família trabalhadora crescem e equilibram os rendimentos obtidos com o trabalho. A isso se adiciona o fato de que é impossível para a família trabalhadora ater-se às normas de economia e convivência no consumo e preparação de seus alimentos (id.).
Não obstante, nada mais é dito sobre este trabalho doméstico “que não pode ser suprimido” e que deve ser substituído por bens adquiridos. E além disso nos resta perguntar se o custo da produção aumenta apenas para o trabalhador ou também para o capitalista, supostamente através das lutas que os trabalhadores emprenderiam para obter salários mais altos.
Mesmo quando se refere à reprodução geracional da força de trabalho, Marx não menciona a contribuição das mulheres, e descarta a possibilidade de tomadas de decisão autônomas por parte das mulheres em relação à procriação, que é referida como “o crescimento natural da população “(ibid.: 537). Ele comenta que “o capitalista pode tranquilamente deixar o cumprimento desta condição ao instinto de autopreservação e ao instinto de perpetuação dos trabalhadores” (ibid.: 481-482) – uma contradição com o comentário anteriormente citado sobre o descuido dos deveres maternos por parte das mulheres trabalhadoras das fábricas, o que equivale praticamente ao infanticídio. Ele também sugeriu que o capitalismo não depende da capacidade reprodutiva das mulheres para sua própria expansão, dada a constante criação de excedentes populacionais a partir das revoluções tecnológicas.
Na tentativa de explicar a cegueira de Marx sobre a onipresença do trabalho reprodutivo, que deveria ter sido desdobrada diariamente sob seus olhos em sua própria casa, enfatizei em ensaios anteriores sua ausência nas casas proletárias na época em que ele escreve, uma vez que a fábrica empregava a família inteira do sol ao sol (Federici, 2012: 94). O próprio Marx sugere esta conclusão quando, citando um médico enviado pelo governo inglês para avaliar o estado de saúde dos distritos industriais, observou que o fechamento dos moinhos de algodão causados pela Guerra de Secessão americana tinha pelo menos um benefício. As mulheres dispõe agora de tempo necessário para amamentar seus filhos, em vez de envenená-los com Godfrey’s Cordial (um tipo de narcótico). Elas têm tempo para aprender a cozinhar. Infelizmente, o tempo para dedicar-se às tarefas da cozinha coincidia com momentos em que não tinham o que comer […] A crise a que nos referimos também era usada para ensinar as filhas dos trabalhadores a costurar nas escolas. Foi necessário que uma revolução surgisse na América do Norte, e que uma crise mundial fosse desencadeada, para que algumas garotas trabalhadoras pudessem aprender a costurar, cujo trabalho consistia em fiar para o mundo inteiro! (1995: 324)
Mas a redução abismal do tempo e dos recursos necessários para a reprodução dos trabalhadores que Marx documentou não era uma condição universal. Os funcionários da fábrica eram apenas 20 a 30% da população de mulheres trabalhadoras. Mesmo entre elas, muitas mulheres abandonaram o trabalho de fábrica uma vez que tinham filhos. Além disso, como vimos, o conflito entre o trabalho fabril e os “deveres reprodutivos” das mulheres era um problema-chave na época de Marx, como demonstram os relatórios fabris que ele citou e as reformas que produziram.
Por que, então, essa exclusão sistemática? E por que Marx não poderia perceber que a tendência parlamentar de reduzir o trabalho fabril em mulheres e crianças era uma nova estratégia de classe que mudaria o curso da luta de classes?
Sem dúvida, parte da resposta é que, como os economistas políticos clássicos, Marx não considerava as tarefas domésticas como um tipo de trabalho historicamente determinado com uma história social específica, mas como uma força natural e uma vocação feminina, um desses produtos desse grande armário que a terra, ele argumentou, é para nós. Quando, por exemplo, ele comentou que o trabalho em excesso e a fadiga produziam um “aborrecimento” (ibid.: 327) entre as mulheres trabalhadoras das fábricas e seus filhos, apelou para uma imagem de maternidade que condenava com uma concepção naturalizada dos papéis de gênero. Possivelmente contribuiu para isso que, na primeira fase do desenvolvimento capitalista, o trabalho reprodutivo da mulher estava, segundo a sua terminologia, “formalmente subsumido” na produção capitalista,15 isto é, não tinha sido moldado para se adaptar às necessidades específicas do mercado de trabalho. Sim, um teórico tão poderoso e historicamente orientado como Marx deveria ter percebido que o trabalho doméstico, apesar de ter aparecido como uma atividade do passado, que satisfazia puramente “necessidades naturais”, sua forma era na realidade uma forma de trabalho historicamente específica, produto da separação entre produção e reprodução, trabalho remunerado e não remunerado, que nunca existiram em sociedades pré-capitalistas ou sociedades não reguladas pela lei do valor de câmbio. Depois de ter advertido contra a mistificação produzida pela relação salarial, deveria ter visto que, desde a sua criação, o capitalismo subordina atividades reprodutivas – na forma de trabalho feminino não remunerado – à produção de força de trabalho e, consequentemente, o trabalho não remunerado que os capitalistas extraem dos trabalhadores é muito mais conspícuo do que o extraído durante a jornada de trabalho remunerado, pois inclui as tarefas domésticas não remuneradas das mulheres, até reduzidas ao mínimo.
O silêncio de Marx sobre o trabalho doméstico foi porque, como se sugeriu, “não considerava que as forças sociais fossem capazes de conduzir o trabalho doméstico em uma direção revolucionária”? Esta é uma questão legítima se “lemos Marx politicamente”16 e consideramos que suas teorizações sempre se preocupavam com suas implicações organizacionais e suas potencialidades.17 Abre a possibilidade de que manteve uma reserva sobre a questão das tarefas domésticas porque temia que a atenção ao seu trabalho faria parte das organizações de trabalhadores e dos reformistas burgueses que glorificavam o trabalho doméstico para excluir as mulheres do trabalho fábrica Mas, durante as décadas de 1850 e 1860, as tarefas domésticas e a família estavam durante anos no centro de uma discussão acalorada entre socialistas, anarquistas e um movimento feminista emergente, e se experimentavam reformas no lar e nas tarefas domésticas e domésticas.18
Devemos concluir que seu desinteresse pelo trabalho doméstico tem raízes mais profundas, decorrentes tanto da sua naturalização como da sua desvalorização, o que, aparentemente, o tornou – em comparação com o trabalho de fabricação – uma forma arcaica que em breve seria superada pelo progresso da civilização. Seja como for, a conseqüência da falta de teorização de Marx sobre o trabalho doméstico é que sua explicação da exploração capitalista e sua concepção de comunismo ignoram a atividade mais difundida do planeta e uma das principais causas das divisões dentro da classe trabalhadora.
Há um paralelo aqui com o lugar da “raça” na obra de Marx. Embora reconhecesse que “o trabalho dos brancos não pode emancipar-se onde o trabalho dos negros é escravizado” (ibid.: 239), não dedicou muitas análises ao trabalho escravo e ao uso do racismo para executar e naturalizar uma forma de exploração mais intensa. Seu trabalho, portanto, não podia desafiar a ilusão – dominante no movimento socialista – de que o homem branco assalariado representava os interesses de toda a classe trabalhadora – uma mistificação que, no século XX, levou lutadores anticoloniais a concluir que o marxismo era irrelevante em sua luta.
Mais perto de casa, Marx não antecipou que as formas brutais de exploração que ele tão fervorosamente descreveu logo seriam parte do passado, pelo menos em grande parte da Europa. Ameaçada por um conflito armado entre as classes e a possível extinção da força de trabalho, a classe capitalista, em conspiração com algumas organizações de trabalhadores, iniciaria um novo curso estratégico, aumentando o investimento na reprodução da força de trabalho e o salário dos homens assalariados, enviando as mulheres de volta para casa para fazer tarefas domésticas e, nesse processo, mudando o curso da luta de classes.
Embora Marx fosse consciente do grande desperdício de vida que o sistema capitalista produzia e estivesse convencido de que o movimento de reforma fabril não procedia de inclinações humanitárias, ele não percebeu que o que estava em jogo na “legislação protetora” era mais do que uma reforma do trabalho da fábrica. Reduzir as horas de trabalho das mulheres foi o caminho para uma nova estratégia de classe, que reatribuia às mulheres proletárias ao lar para não produzir bens físicos, senão trabalhadores.
Através desta estratégia, o capital conseguiu dissipar a ameaça de insurgência da classe trabalhadora e criar um novo tipo de trabalhador: mais forte, mais disciplinado, mais resiliente, mais apto a tornar seus os objetivos do sistema; o tipo de trabalhador, de fato, que considera os requisitos da produção capitalista como “as leis naturais mais lógicas” (ibid.: 627). Este foi o tipo de trabalhador que permitiu que o capitalismo britânico e norte-americano na virada do século passasse da indústria leve para a indústria pesada, da indústria têxtil para a indústria siderúrgica, da exploração com base na extensão da jornada de trabalho a uma baseada em intensificação da exploração. Isso implica que a criação da família trabalhadora e da dona de casa proletária em tempo integral foram uma parte essencial e uma condição da transição de um excedente absoluto para um excedente relativo. Nesse processo, as tarefas domésticas passaram por um processo de “subsunção real”, tornando-se pela primeira vez objeto de uma iniciativa estatal específica que as ligou mais fortemente à necessidade do mercado de trabalho e à disciplina do trabalho capitalista.
Em consonância com o auge da expansão imperial britânica (que trouxe muitas riquezas ao país, aumentando os salários dos trabalhadores), essa inovação não pode ser atribuída apenas à pacificação da força de trabalho. Mas foi um acontecimento de época, que inaugurou a estratégia que mais tarde culminou com o fordismo e o New Deal, pelos quais a classe capitalista investiria na reprodução de trabalhadores para adquirir uma força de trabalho mais disciplinada e produtiva. Este foi o deal que se estendeu até a década de 1970, quando o surgimento internacional da luta das mulheres e do movimento feminista o deram um ponto final.
2. Feminismo, Marxismo e a questão da “reprodução”
Enquanto Marx, como propulsor da “emancipação das mulheres” mediante sua participação na produção social entendida como trabalho industrial, inspirou gerações de socialistas, as feministas descobriram na década de 1970 um novo Marx: contra as tarefas domésticas, a domesticidade, a dependência econômica aos homens, apelaram para seu trabalho em busca de uma teoria capaz de explicar as raízes da opressão das mulheres a partir de uma perspectiva de classe. O resultado foi uma revolução teórica que mudou tanto o marxismo quanto o feminismo.
A análise de Mariarosa Dalla Costa sobre o trabalho doméstico como elemento chave na produção da força de trabalho,19 a localização de Selma James da dona de casa em um continuum com os não assalariados do mundo20 – aqueles que, ainda assim, foram centrais no processo de acumulação de capital -, a redefinição de outros ativistas de movimento da relação salarial como instrumento para a naturalização de áreas inteiras de exploração, e a criação de novas hierarquias dentro da proletariado: todos esses desenvolvimentos teóricos e as discussões que eles geraram foram descritos na ocasião como o “debate sobre o lar”, supostamente centrado na questão de saber se as tarefas domésticas são produtivas ou não. Mas esta é uma grande distorção. O que foi redefinido ao perceber-se a centralidade do trabalho não remunerado das mulheres na casa, no que diz respeito a produção da força de trabalho, não era apenas o trabalho doméstico, mas a natureza do capitalismo e a luta contra ele.
Não surpreende que a discussão de Marx sobre a “reprodução simples” foi uma iluminação teórica neste processo, tal como a confirmação de nossa suspeita de que a classe capitalista nunca teria permitido que tanto trabalho doméstico sobrevivesse se não tivesse visto a possibilidade de explorá-lo. Ler que as atividades que reproduzem a força de trabalho são essenciais para a acumulação capitalista trouxe à luz a dimensão de classe de nosso rechaço. Mostrou que este trabalho depreciado, sempre naturalizado, sempre desdenhado pelos socialistas como retrógrado, foi, na realidade, o pilar da organização capitalista do trabalho. Isso resolveu a questão controversa da relação entre gênero e classe, e nos deu ferramentas para conceituar não só a função da família, mas a profundidade do antagonismo de classe nas raízes do capitalismo. Do ponto de vista prático, confirmou que, como mulheres, não precisariamos nos unir aos homens da fábrica para fazer parte da classe trabalhadora e realizar uma luta anticapitalista. Poderíamos lutar autonomamente, começando com o nosso próprio trabalho em casa, como o “centro nervoso” da produção de força de trabalho.21 E a nossa luta tinha que liberar-se primeiro contra os homens das nossas famílias, uma vez que, através dos salários dos homens, do casamento e da ideologia do amor, o capitalismo permitiu que os homens dirigissem nosso trabalho não remunerado e disciplinassem nosso tempo e espaço.
Ironicamente, então, nosso encontro com Marx e nossa apropriação de sua teoria sobre a reprodução da força de trabalho, de alguma maneira consagrando a importância de Marx para o feminismo, também nos deu evidências conclusivas de que devíamos colocar Marx de ponta cabeça e começar nossa análise e nossa luta precisamente a partir da “fábrica social” que ele havia excluído de seu trabalho.
Descobrir a centralidade do trabalho reprodutivo para a acumulação de capital também levou à pergunta de qual seria a história do desenvolvimento do capitalismo se não fosse vista do ponto de vista da formação do homem proletário assalariado, mas do ponto de vista das cozinhas e quartos onde a força de trabalho é produzida diariamente, geração após geração.
A necessidade de uma perspectiva de gênero para a história do capitalismo – para além da “história das mulheres” ou da história do trabalho assalariado – é o que me levou, entre outras coisas, a repensar a explicação de Marx sobre a acumulação originária e para descobrir a caça às bruxas nos séculos XVI e XVII como um momento fundacional na desvalorização do trabalho das mulheres e no surgimento de uma divisão do trabalho sexual especificamente capitalista.22
A percepção simultânea de que, ao contrário da antecipação de Marx, a acumulação originária tornou-se um processo permanente também coloca em questão sua concepção sobre a relação necessária entre capitalismo e comunismo. Ela invalidou a visão de Marx sobre a história em termos de estágios, em que o capitalismo é retratado como o purgatório que precisamos habitar enfrentando o mundo da liberdade e o papel libertador da industrialização.
O surgimento do ecofeminismo, que conectou a desvalorização das mulheres e da reprodução por parte de Marx com sua visão de que a missão histórica da humanidade é o domínio da natureza, fortaleceu nossa posição. Especialmente importantes foram as obras de Maria Mies e Ariel Salleh, que mostraram que o ato de Marx de apagar as atividades reprodutivas não é acidental, contingente das tarefas que ele atribuiu ao O Capital, senão sistemática. Como observa Salleh, tudo em Marx estabelece que o que é criado pelo homem e a tecnologia tem um valor maior: a história começa com o primeiro ato de produção, os seres humanos realizam a si mesmos através do seu trabalho. Uma medida da realização de si é a sua capacidade de dominar a natureza e adaptá-la às necessidades humanas. E todas as atividades transformadoras positivas são concebidas em masculino: o trabalho é descrito como pai, a natureza como mãe, a terra também é concebida como feminina (Salleh, 1997: 72-76). Madame la Terre, a chama Marx, em oposição à Monsieur le Capital.
As ecofeministas demonstraram que existe uma conexão profunda entre o desdém das tarefas domésticas, a desvalorização da natureza e a idealização do que a indústria e a tecnologia humanas produzem.
Este não é o espaço para refletir sobre as raízes do olhar antropocêntrico. Basta dizer que o grande erro de cálculo que Marx e as gerações dos marxistas socialistas têm cometido em relação aos efeitos liberadores da industrialização hoje são muito óbvios. Hoje em dia, ninguém ousaria sonhar, como August Bebel fez em Woman Under Socialism, no dia em que a comida seria produzida quimicamente e em que “todos carregariam uma pequena caixa de produtos químicos no bolso para satisfazer a necessidade de nutrientes de lípidos, gorduras e carboidratos, independentemente da época do ano ou da estação da chuva, da seca, geada, granizo e insetos destrutivos” (1910: 391).
À medida que a industrialização avança sobre a terra e os cientistas ao serviço do desenvolvimento do capitalismo estão brincando com a produção da vida fora dos corpos das mulheres, a idéia de ampliar a industrialização para todas as nossas atividades reprodutivas é um pesadelo pior do que estamos experimentando com a industrialização da agricultura.
Não é surpreendente que, em círculos radicais, tenhamos testemunhado uma “mudança de paradigma”, enquanto a esperança estabelecida na máquina como uma força para o “progresso histórico” é substituída por uma reorientação do trabalho político sobre questões, valores e relacões vinculados com a reprodução de nossas vidas e a vida dos ecossistemas em que vivemos.
Foi-nos dito que, nos últimos anos de sua vida, Marx reconsiderou sua perspectiva histórica e, ao ler sobre as comunidades igualitárias e matrilineares do nordeste da América, começou a reconsiderar sua idealização do desenvolvimento industrial e capitalista e valorizar a força das mulheres.23
Não obstante, o olhar prometeico sobre o desenvolvimento tecnológico promovido por Marx e toda uma tradição marxista, longe de perder o seu apelo, está de volta. Nele, a tecnologia digital desempenha para alguns o mesmo papel emancipador que Marx atribuiu à automação, de modo que o mundo da reprodução e dos trabalhos de cuidado, que as feministas valorizaram como um terreno de transformação e luta, encontra-se novamente o risco de serem privados de importância.
É por isso que, embora Marx tenha dedicado pouco espaço às teorias de gênero em seu trabalho e, supostamente, tenha mudado parte de seu olhar em seus últimos anos, ainda é importante discuti-los e enfatizar, como tentei fazer neste trabalho, que seus silêncios a esse respeito não são descuido, mas o sinal do limite que seu trabalho teórico e político não pode superar, mas que nós devemos fazê-lo.
(Artigo originalmente publicado no site herramienta.com.ar. Tradução de Giovanna Marcelino.)
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Notas da autora
1 As publicações recentes de Heather A. Brown, Marx on Gender and the Family (2012), e Shahrzad Mojabed, Marxism and Feminism (2015) – publicada junto com a conferência sobre o tema organizada pela Fundação Rosa Luxemburg no mesmo ano – são sinais desse novo interesse pela teoria do gênero de Marx.
2 Estas e todas as traduções da bibliografia em inglês pertencem a tradutora.
3 Sobre o debate em torno das conseqüências do trabalho industrial para as mulheres, tais como as “brigas das mulheres” na Inglaterra do século XIX, ver Judy Lown, Women and Industrialization: Gender at Work in Nineteenth-Century England (1990). Sobre os mesmos debates na França, ver, especialmente o capítulo 7 em Gender and the Politics of History, de Joan Wallach Scott (1988).
4 Para a reforma do trabalho de mulheres e crianças na Inglaterra, além do Volume 1 do Capital, veja Judy Lown (1990) e Laura Levin Frader (1987).
5 A única referência à luta das mulheres da fábrica menciona que as tecelãs do tear mecânico realizaram uma greve pelo problema em torno do controle de horas trabalhadas (Marx, 1995: 352).
6 Ver Lown, que fala da oposição das mulheres assalariadas nas leis fabris de 1830 (1990: 214) e da luta das trabalhadoras da seda para “manter o controle sobre aqueles aspectos da vida que sempre foram centrais para a experiência de mulheres trabalhadoras: cuidado das crianças, higiene pessoal e vestimenta” (ibid.: 162). Sobre as meninas nas fábricas “que representam uma independência recém-descobertas e a liberdade para as mulheres”, ver Lown (Id. 43 et seq.) e Seccombe (1986: 121).
7 Ver Brown (2012: 115).
8 Marx acrescenta que, conseqüentemente, “[os] interesses, as condições de vida do proletariado estão se tornando cada vez mais niveladas à medida que a maquinaria apaga as diferenças entre os trabalhos” (2008: 36).
9 Sobre este tema, ver Bock y Duden (1980) y Henninger (2014: 296- 297).
10 Fortunati acrescenta que Marx concebia o trabalho de reprodução das mulheres “a partir da leitura de relatórios governamentais, que há muito perceberam o problema da usurpação do trabalho fabril sobre tarefas domésticas” (1997: 169).
11 “Dentro da família, e mais tarde, à medida que esta se desenvolve dentro da tribo, surge uma divisão natural do trabalho, baseada nas diferenças de idades e sexo, isto é, em causas puramente fisiológicas” (Marx, 1995: 285). -286).
12 Ver o capítulo 23 de a parte 7, do volume 1 de O Capital (Marx, 1995).
13 Na primeira parte das Teorias sobre a Mais-Valia, Marx afirma: “O trabalho produtivo seria aquele que produz mercadorias ou produz, forma e desenvolve diretamente a força de trabalho em si mesma” (1969: 172). Como veremos mais adiante, as feministas tomaram isso para indicar que o trabalho doméstico é “trabalho produtivo” no sentido marxista.
14 A referência aqui é Piero Sraffa e sua Production of Commodities by Means of Commodities (1960).
15 Marx usa o conceito de subsunção formal versus subsunção real para descrever o processo pelo qual o capital na primeira fase da acumulação capitalista se apropria do trabalho “tal como se encontra”, “sem qualquer modificação da natureza real do processo de trabalho” (1021). Pelo contrário, existe uma subsunção real quando o capital molda o trabalho/produção para seus próprios fins.
16 Aqui me refiro ao trabalho de Harry Cleaver, Reading Capital Politically (2000).
17 Sobre isso insiste Negri em Marx Beyond Marx (1991).
18 A esse respeito, ver o trabalho de Dolores Hayden, The Grand Domestic Revolution (1985).
19 Ver “Women and the Subversion of the Community” em The Power of Women and the Subversion of the Community (1975).
20 Ver Sex, Race, and Class (James, 1975).
21 Ver Fortunati (1997).
22 Ver Caliban and the Witch. Women, the Body and Primitive Accumulation (2004).
23 Ver a discussão de Heather Brown sobre The Ethnological Notebooks of Karl Marx (Krader, 1974) em seus capítulos 6 e 7 (2012).