Não seremos a província do atraso
A exposição Queermuseu, que colhe referências de diversidade e representações da comunidade LGBT na arte brasileira, suscitou a revolta de grupos de ódio.
O que a interdição de uma exposição após críticas distorcidas e ideologicamente dirigidas na internet revela sobre nosso estado? A exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi encerrada pelo Santander Cultural por conta de ação orientada pelo Movimento Brasil Livre (MBL) nas redes sociais.
A exposição colhe referências de diversidade e representações da comunidade LGBT na arte brasileira. O exército de ignorantes motivados do MBL espalhou a mentira de que se trata de apologia à pedofilia e à zoofilia. Associar homossexuais à bestialidade e pedofilia é uma antiga tática de difamação promovida por grupos de ódio.
Em entrevista à Rádio Guaíba, o próprio promotor da Infância e Juventude de Porto Alegre, Júlio Almeida, disse que não há nenhuma referência à pedofilia na exposição Queermuseu. “Pedofilia, por definição legal, é a utilização de criança e adolescente em cena de sexo explícito, reprodução de sexo explícito ou simulação de sexo explícito, ou ainda a exposição de genitália de criança e adolescente. Isso não existe na exposição. Pedofilia não acontece”, afirmou, após visitar o local.
Durante 26 dias a sociedade gaúcha não viu nenhum problema deste tipo com a exposição Queermuseu. Mais de 20 mil pessoas circularam pela exposição.
Um dos quadros alvo de repúdio é o “Cena de interior II”. Trata-se de um trabalho de Adriana Varejão que denuncia a violência e as atrocidades do período colonial brasileiro. A obra faz parte do conjunto “História às margens” e já esteve exposta durante meses no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 2012 – sem gerar absolutamente nenhum alarde. Adriana Varejão é uma artista mundialmente reconhecida. Em 2011, uma de suas telas, “Parede com incisões à Fontana”, foi arrematada por R$ 3 milhões num leilão em Londres.
Mas bastou chegar no Rio Grande do Sul e cair nas mãos dos brutamontes do MBL para que seu trabalho passasse a ser divulgado como “apologia à zoofilia”. Bastou a ação midiática orquestrada do MBL para que seus seguidores saíssem do breu intelectual em que se escondem, erguendo tochas e foices exigindo o linchamento de artistas.
Uma prática semelhante à adotada por regimes nazistas e fascistas. Em 2015, uma exposição na Bélgica exibiu ao público obras que o nazismo baniu da Alemanha por considerar “arte degenerada”. Nomes como Picasso e Marc Chagall estavam na lista.
A cena de membros do MBL intimidando frequentadores da exposição remete a imagens da época da ditadura, quando o Comando de Caça aos Comunistas atacou a peça Roda Viva. Os entusiastas da interdição artística em nome da “moral cristã” causam inveja a Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, e ao CCC.
Aliás, a própria ideia de que uma expressão artística com a qual não se concorde deva ser banida agrada muito aos criminosos do autoproclamado Estado Islâmico, que destroem obras históricas em nome de uma cruzada moral.
O que fará em seguida o MBL? Irá propor a interdição do Museu do Prado, em Madri, por exibir O Jardim das Delícias Terrenas, de H. Bosch? Boicotará todas as representações do mito grego de Leda e o Cisne, reproduzidas por pintores como Leonardo Da Vinci e Paolo Veronese – que mostram o acasalamento da rainha de Esparta com Zeus, sob a forma de um animal?
O MBL encarna o espírito atrasado dos liberais na economia e medievais nos costumes. É absolutamente lamentável que o Santander Cultural tenha cedido a este tipo de pressão. Nenhum centro cultural sério em qualquer lugar do mundo teria interditado uma exposição por críticas de segmentos reacionários. Mas, como bem lembrou o vereador Roberto Robaina, não se poderia esperar muito, afinal os bancos também cederam ao nazismo.
O escândalo que significou o encerramento da exposição virou notícia nacional e internacional. A reação da classe artística e da população LGBT foi rápida e aguerrida. Um ato organizado às pressas conseguiu reunir quase 2 mil pessoas em frente ao Santander Cultural na tarde de terça-feira (12/09). Toda a vanguarda do movimento LGBT gaúcho estava presente. As centrais sindicais também divulgaram uma nota unitária em apoio à exposição.
O ato resistiu bravamente a todas as tentativas de provocação do MBL e de seus satélites. E foram muitas. O YouTuber Arthur do Val, provocador maior da direita, foi girado de São Paulo especialmente para tumultuar a manifestação. Com a firmeza que o combate ao fascismo exige, mas sem baderna generalizada, os provocadores foram expulsos do ato.
Infelizmente, ao final do protesto, a ação articulada dos capangas do MBL conseguiu tumultuar um ato que já estava dispersando. Com a covardia que lhes é característica, foram provocar os manifestantes para em seguida se refugiar atrás de um cordão policial.
O batalhão de choque da Brigada Militar se enfileirou para proteger os milicianos da direita, jogando bombas de gás contra toda a população e transformando a Praça da Alfândega num cenário de guerra. Duas pessoas foram detidas: um morador de rua, cuja identidade não foi revelada, e o jornalista Douglas Freitas. Além disso, uma fotógrafa do jornal Zero Hora foi atingida diretamente com spray de pimenta no rosto e em sua câmera ao registrar as prisões. Uma cena que remete a junho de 2013, quando nem mesmo a imprensa foi poupada da repressão.
Felizmente o ato não se resume à provocação do MBL. Foi um forte recado de luta e resistência contra os comensais da Idade Média e pelo direito a uma cultura livre. Livre de qualquer dogma religioso.
Centros culturais de São Paulo e Belo Horizonte já manifestaram interesse em receber a exposição interditada. Não nos submeteremos aos censores da província do atraso. O movimento LGBT e a classe artística estão mobilizados na defesa da liberdade e da cultura. Viva o Queermuseu!