A classe média brasileira e sua relação com o povo e a burguesia

Sobre o papel da classe média, média e alta, “classe” B e extrato inferior da “classe” A, nas mobilizações que levaram ao impeachment da Dilma em 2016.

Gilvandro Antunes 19 out 2017, 13:47

Ainda nos indagamos sobre os processos ocorridos no Brasil em junho de 2013 e março e abril de 2016. Talvez sigamos falando e escrevendo de forma ainda inconclusa sobre essas duas expressões de massas ocorridas após muito tempo na sociedade brasileira. Colocadas de forma diametralmente opostas, junho de 2013 e março e abril de 2016 se alicerçaram na crise de representação das instituições brasileiras expressada na corrupção e no desmantelamento da economia. Aliás, a crise em suas mais variadas expressões acaba por evidenciar os extremos. Nesse singelo artigo, buscaremos centrar nossa análise naquilo que chamamos de forma bastante ampla de “Mobilização da Classe Média” (dirigida pela burguesia). Ou seja, as mobilizações de março e abril de 2016 que apoiaram o golpe parlamentar contra o governo Dilma Roussef. Todavia, aqui, não nos proporemos a fazer a análise em forma de narrativas dos fatos, mas de um processo mais complexo de estudo histórico-sociológico, econômico e psicológico daquilo que, de forma bastante ampla, podemos chamar de “Mobilização da Classe Média”. Assim, com indagações do tipo, o que estamos entendendo por classe média? Por que a classe média foi às ruas da forma que foi vista em 2016? Qual o papel da classe média nos processos históricos brasileiros? E assim por diante.

A tarefa de definir o que é classe média enquanto uma classe social dentro do modo capitalista de produção é algo extremamente difícil. Ora, o que se tem de mais preciso por agora, é que a classe média é tão gelatinosa que não pode ser classificada como classe social, mas um conjunto de extratos sociais que vão desde setores proletários com maiores salários até setores aburguesados devido aos altos rendimentos auferidos. Ou seja, vai do extrato superior da classe C, abarca toda a classe B e pega a parte inferior da classe A. Vejamos, pois, que entre a parte de cima da classe C e a parte inferior da classe A há uma porção de diferenças que histórica e sociologicamente elas não possuem a mesma origem, que economicamente não detêm da mesma fatia da renda nacional e psicologicamente não compartilham os mesmos afetos. Na manifestação do dia 13 de março de 2016, se reuniram cerca de 1,4 milhão de pessoas na avenida Paulista em uma gigantesca manifestação pró-impeachment. Nessa ocasião o Instituto Datafolha traçou um perfil dos manifestantes com as seguintes conclusões:

“Com 2.262 entrevistas feitas durante a manifestação de domingo contra o governo Dilma Rousseff em São Paulo, que reuniu 1,4 milhão de pessoas conforme a polícia e 2,5 milhões segundo os organizadores, o Datafolha apontou dados que mostram a elitização deste público. Conforme o instituto, 77% dos manifestantes possuem Ensino Superior completo, sendo que no comparativo com a capital paulista o mesmo índice é de apenas 28%. Entre os demais manifestantes, 18% informaram ter o Ensino Médio e somente 4% disseram ter estudado até o Ensino Fundamental.

Segundo o jornal Folha de S.Paulo, os resultados são praticamente os mesmos dos colhidos nos protestos anteriores. Quanto à renda, 50% dos entrevistados informaram receber de cinco a 20 salários mínimos mensais, sendo que na cidade de São Paulo este mesmo índice é de 23%.

Além disso, a pesquisa apontou que a maioria dos participantes do ato foi composta por homens (57% contra 43% de mulheres) com mais de 36 anos de idade (73%). Dos manifestantes, 12% relataram ser empresários. Na população total de São Paulo, apenas 2% têm a mesma ocupação. Outro dado do Datafolha é de que 77% dos entrevistados declararam ser de cor branca e 94% disseram não integrar os movimentos responsáveis pela organização do ato. (Jornal Zero Hora versão digital 12/03/2016)”.

Note-se que o perfil era tipicamente de classe média, uma vez que os índices médios de renda, escolaridade e cor se encontraram a cima da capital paulista como um todo. Aqui é preciso destacar que na mesma pesquisa o Datafolha verificou que havia semelhança no perfil de renda entre os manifestantes pró e contra o impeachment localizados em mobilizações diferentes na avenida Paulista e na Praça da Sé. A semelhança detectada diz respeito à renda e a diferença diz respeito ao tipo de ocupação, enquanto na Sé o destaque era para servidores públicos, na Paulista era para auto declarados empresários e profissionais liberais. Note-se, ademais, que essa semelhança econômica e diferença ideológica no interior da classe média é vista com maior clareza ainda em um país como a França. Portanto, não é uma peculiaridade brasileira. Mas a maior diferença é que as manifestações pró impeachment foram de longe muito maiores, por diversos fatores que já são de domínio das pessoas que, por ventura, estão lendo o presente artigo.

Mas sem perdermos o foco é preciso que, mesmo com tanta dificuldade de definição, recortemos o extrato que estará em análise. Assim, para tanto, é preciso que, a partir dos cruzamentos dos dados quantitativos do Datafolha e de uma análise sociológica dos dados qualitativos das manifestações, tracemos um Tipo Ideal daquilo que podemos definir como o “extrato social dirigente” (exceto a própria burguesia, que de fato foi a classe dirigente do golpe parlamentar) das manifestações de março e abril de 2016. De forma que é possível dizer que ele é branco, homem, tem renda superior a 10 salários mínimos é profissional da iniciativa privada. A partir desse perfil, podemos dizer, considerando as variações, que este é o extrato social, traduzido em Tipo Ideal, que representa da melhor forma o conjunto de uma multidão pró impeachment presente nas mobilizações de 2016.

A Análise Histórico-Sociológica: a classe média se aparta da massa popular através da “raça” e pela “Via Prussiana”

A classe média brasileira, em sua origem, está ligada às primeiras formações urbanas do país ainda no século XIX. Através de profissionais liberais, muitos deles anti-monarquistas e abolicionistas, como já é sabido em vastas informações históricas já estudadas e publicadas, fez da classe média um setor avançado dentro de um Estado rural economicamente e tradicional politicamente. Entretanto, esta classe média, assim como a burguesia e o proletariado brasileiros, sofreram inúmeras metamorfoses ao logo de mais de 120 anos.

No Brasil a diferenciação de classe passa também pela diferenciação de cor ou “raça”. Uma vez assinada a abolição da escravidão em 13 de maio de 1888, o país entra formalmente para a sociedade aberta de classes e sai da sociedade de classes alicerçada nas castas e no trabalho compulsório, onde a cor da pele era determinante para se ter liberdade ou não. Dizemos que se tratou de uma liberdade meramente formal porque é mais do que sabido que a situação dos negros libertos passou de um estado de escravidão para um estado de anomia social no pós-abolição, como nos indica Florestan Fernandes:

“A emergência da ordem social competitiva e a expansão urbana da cidade de São Paulo constituem processos histórico-sociais coincidentes. (…) a rapidez com que se consolidou a ordem competitiva pôs cobro, praticamente, às possibilidades de absorção imediata do negro a papéis econômicos ativos e compensadores. (…) Em Consequência, viveram dentro da cidade, mas não progrediram com ela e através dela. Constituíram uma congérie social, dispersa pelos bairros, e só partilhavam em comum uma existência árdua, obscura e muitas vezes deletéria. Nessa situação, agravou-se, em lugar de corrigir-se, o estado de anomia social do transplantado do cativeiro” (Florestan Fernandes, A Integração do Negro na Sociedade de Classes: o legado da raça branca, Dominus Editora, São Paulo, 1965, páginas 70-71).

Mas onde entra a classe média nisso tudo? Por dois fatores explicados pela exclusão do negro dentro da sociedade aberta de classes. Em uma sociedade permeada pela concentração da propriedade em grandes latifúndios, separada pela “raça”, tem-se como consequência a pouca mobilidade social, excluída de qualquer perspectiva real dessa mobilidade a “raça” negra não atinge postos que a alcem como classe média. Além disso, tanto na cafeicultura, quanto na incipiente industrialização os negros ficaram excluídos uma vez que a mão-de-obra imigrante foi utilizada em larga escala para o preenchimento das vagas nos setores que apresentavam maior dinamismo à época. A isso chamamos de embranquecimento da mão-de-obra brasileira gestada por políticas eugenistas que via no embranquecimento a possibilidade de o Brasil tornar-se um país desenvolvido a exemplo dos Estados Unidos. É sabido que a classe média em São Paulo era composta por brancos descendentes de portugueses num primeiro momento e num segundo momento desses primeiros com os filhos e netos dos primeiros imigrantes, sobretudo italianos, que com o acesso à educação ascenderam à condição de classe média, sobretudo como pequena burguesia e profissionais liberais. Assim, o que se percebe é que, mesmo com o fim da escravidão, com raríssimas exceções, além da separação econômica, há uma separação racial entre a classe média e a massa pobre preta e parda do país. Isso, por seu turno, nos dá a primeira separação da classe média mais tradicional dos interesses da massa popular, uma vez que com o fim da escravidão esvazia o movimento abolicionista liderado pela classe média urbana incipiente. É na condição de anomia social enfrentada por negros e mulatos que se cria a depreciação destes em detrimento da valorização da classe média branca que representaria o futuro de uma nação desenvolvida, ao passo que os outros representariam um passado atrasado e não desenvolvido. Quando nos referimos a isso estamos ainda tratando de entender o presente e ver que ainda persiste essa realidade, ainda que com menor rigidez. Dessa maneira, é possível concluir que a classe média a que nos referimos e que se localiza entre a faixa B e o extrato inferior da A nunca esteve integrada subjetivamente, porque esteve de forma objetiva apartada, dos anseios de inclusão de parte significativa do povo brasileiro de forma plena e consistente. É claro que aqui será possível descrever inúmeras pessoas ou até movimentos de contradigam tal análise, pois como advertimos a classe média é muito heterogênea. Mas o que se quer aqui é desmistificar o papel da classe média brasileira enquanto vanguarda das lutas democráticas ao longo da história. Porém, também é verdade que todos os movimentos de transformações sociais positivas no país contaram com o importante apoio da classe média.

Outra questão importante é que no Brasil o ciclo da revolução burguesa, como escrevera Octávio Ianni, se deu em mudanças continuadas por contra-revoluções de modo que processos como a independência, proclamação da república, revolução de 30, industrialização, etc. se deram pelo alto, sem expressiva participação popular. Isso, por seu lado, nos levou a um déficit de aglutinação de massa no que toca às grandes transformações do ciclo da revolução burguesa. De forma que independência, república e desenvolvimento econômico foram tutelados como revoluções mescladas de contra-revoluções burguesas, ou seja, movimentos que combinavam mudanças com continuidades, justamente para abortar as insatisfações latentes do povo brasileiro. Assim, a classe média além de não protagonizar as mudanças estruturais esteve apartada das reivindicações populares do campo, como dos posseiros, dos seringueiros, dos sertanejos, dos meeiros, dos sem-terras e também urbanas protagonizadas pelo proletariado fabril e o lúmpen-proletariado e suas reivindicações sociais, tais como moradia.

Vejamos Otávio Ianni:

“Sob vários aspectos, o que revela essa história é o desenrolar de uma espécie de contra-revolução burguesa permanente. Diante dos frequentes movimentos de ascenso popular, na cidade e no campo, as classes dominantes respondem com a violência. Nem as conquistas democráticas básicas são preservadas. Nesse sentido, há uma contra-revolução burguesa que atravessa a história” (Octávio Ianni, O Ciclo da Revolução Burguesa, Editora Vozes, Petrópolis, 1984, páginas 20-21).

Mais adiante Ianni arremata:

“Para ele (Carlos Nelson Coutinho), trata-se de caracterizar a feição ‘prussiana’, isto é, autoritária, adquirida pela revolução burguesa no Brasil. (…)‘Todas as grandes alternativas concretas vividas pelo nosso país, direta ou indiretamente ligadas àquela transição (Independência, Abolição, República, modificação do bloco de poder em 30 e 37, passagem para um novo patamar de acumulação em 64), encontraram uma resposta à “prussiana”; uma resposta na qual a conciliação “pelo alto” não escondeu jamais a intenção explícita de manter marginalizadas ou reprimidas – de qualquer modo, fora do âmbito das decisões – as classes e camadas sociais de baixo’” (Idem, página 31).

Em suma, a classe média brasileira esteve por um lado, também como “vítima”, alijada das grandes decisões que mudaram estruturalmente o país, bem como apartada das reivindicações da massa brasileira pauperizada. E é exatamente por isso que nas lutas contra a corrupção ela seguiu o caminho inverso das manifestações de junho de 2013, mesmo sendo atingida, ainda que de forma diferenciada, pela crise econômica e a corrupção desde sempre existente no Brasil. Cabe ressaltar que Ianni adverte para não cometermos exageros, outrora cometidos, de caracterizar o povo brasileiro como uma massa amorfa e sem força. Muito pelo contrário, a via prussiana, ou contra-revolução permanente da burguesia brasileira, demonstra que só assim, esta classe pode manter seu desenvolvimento com características subdesenvolvidas e concentrada, diante de uma massa que, com o próprio desenvolvimento das forças produtivas, estabelece relações de produção cada vez menos como massa e cada vez mais como classe contra a burguesia. Assim, a classe média se constitui como extrato social apartada da massa negra e mulata brasileira através falta de mobilidade social a que forma submetidos os ex-escravos ou libertos mulatos e se aparta das lutas essenciais do povo porque ficou presa à via prussiana burguesa de transformações estruturais pelo alto. Talvez o tenentismo tenha sido uma expressão da classe média dentro do exército que tenha furado a barreira da via prussiana. Todavia, não se trata de uma expressão de classe média como um todo, tampouco popular de massa.

A Análise Econômica: a classe média se aparta da massa popular através do consumo na economia monopolista e dependente

A industrialização brasileira de maneira planejada se dá com a crise da economia mundial de 1929 que atingiu em cheio o principal produto de exportação nacional, qual seja o café. Além de que a troca de produtos agrícolas por produtos industrializados já trazia em si uma desigualdade comercial de valor, a dependência do café para a captação de divisas internacionais ficava a mercê do bom desempenho das economia importadoras, sobretudo da Europa e Estados Unidos. É sabido que o deslocamento de poder ocorrido na Revolução de 1930, reduzindo consideravelmente o participação da oligarquia de São Paulo e Minas Gerais, propiciou que o eixo político e econômico não girasse mais exclusivamente em torno da economia cafeeira. A aliança varguista com outras oligarquias, setores urbanos (tenentes e operários) e a incipiente burguesia industrial, grosso modo, engendrou a possibilidade do que mais tarde se chamaria de Plano de substituição de Importações. Maria da Conceição Tavares pode-nos ilustrar com maior precisão o que estamos afirmando aqui:

“O início do processo está historicamente vinculado à grande depressão mundial dos anos trinta, mas para fins analíticos poder-se-ia considerar como ponto de partida qualquer situação de desequilíbrio externo duradouro que rompesse o ajuste entre demanda e produção internas descrito no modelo tradicional. Na sua primeira fase, trata-se, portanto, de satisfazer a demanda interna existente, não afetada pela crise do setor exportador e/ou defendida pelo governo. As possibilidades de expansão da oferta interna residem em três frentes, a saber: a maior utilização da capacidade produtiva já instalada, a produção de bens de serviços relativamente independentes do setor externo (por exemplo, serviços governamentais) e a instalação de unidades produtivas substituidoras de bens anteriormente importados. A primeira alternativa termina com a saturação da capacidade existente na economia. Uma parte da segunda e a última passam a estar intimamente relacionadas, e constituem a espinha dorsal do processo de desenvolvimento ‘para dentro’ a que demos o nome de substituição de importações” (Maria da Conceição Tavares, Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1975, página 42).

Vejamos em Celso Furtado o mesmo raciocínio:

“O colapso da capacidade para importar, a contração do setor exportador e sua baixa rentabilidade, a obstrução dos canais de financiamento internacional, provocados pela crise de 1929, modificaram profundamente o processo evolutivo das economias latino-americanas, particularmente daquelas que se haviam iniciado a industrialização. A contração do setor externo deu lugar a dois tipos de reação, em conformidade com o grau de diversificação alcançado pela economia em causa: a) retorno de fatores de produção ao setor pré-capitalista – agricultura de subsistência e artesanato – num processo de atrofiamento da economia monetária; b) expansão do setor industrial ligado ao mercado interno, num esforço de substituição total ou parcial de bens que anteriormente vinham sendo adquiridos no exterior. O segundo caso se configura o que se convencionou chamar de processo de substituição de importações” (Celso Furtado, A Economia Latino-Americana, Companhia das Letras, São Paulo, página 188).

Sabe-se que a o Plano de Substituição de Importações passou, como apontam as obras de Conceição Tavares e Furtado, pela substituição de bens de consumo não duráveis para a produção de bens de consumo duráveis, tendo o Estado como fomentador deste “novo” tipo de capitalismo no Brasil, através da instalação da indústria de base, taxa de câmbio favorável e de endividamento externo. Aliás, a passagem para a produção de bens de consumo duráveis será fundamental para a análise da classe média enquanto tal, como veremos adiante.

Não caberá aqui fazermos uma análise pormenorizada do Plano de Substituição de Importações no Brasil. Mas se sabe que que a industrialização brasileira e latino-americana levou ao que chamamos de subdesenvolvimento capitalista, e é nesse contexto de subdesenvolvimento que se insere a classe média brasileira, onde parte de sua ação política se explica enquanto extrato social localizado em determinada posição dentro do que chamamos de economia dependente, inserida no modelo brasileiro. Para isso, vamos caracterizar o que entendemos, amparados novamente na maestria de Celso Furtado, por subdesenvolvimento:

“(…) consideramos o subdesenvolvimento como uma criação do desenvolvimento, isto é, como consequência do impacto, em grande número de sociedades, de processos técnicos e de formas de divisão do trabalho irradiados do pequeno número de sociedades que haviam na revolução industrial em sua fase inicial, ou seja, até os fins do século XIX. As relações que se estabelecem entre esses dois tipos de sociedades envolvem formas de dependência que tendem a autoperpetuar-se. Essa dependência apoiou-se, inicialmente, num sistema de divisão internacional do trabalho que reserva para os centros dominantes atividades produtivas em que se concentrava o progresso tecnológico. Em sua fase subsequente, a dependência resultou do controle exercido por grupos da economia dominantes sobre as atividades que, nas economias dependentes, mais assimilavam novas técnicas. Sendo assim, infere-se que o subdesenvolvimento não pode ser efetuado como uma ‘fase’ do processo de desenvolvimento, fase que tenderia a ser superada sempre que atuassem conjuntamente certos fatores. Pelo fato mesmo de que são coetâneas das economias desenvolvidas, das quais, de uma ou outra forma, dependem, as economias subdesenvolvidas, não pode reproduzir a experiência daquelas. Em síntese: desenvolvimento e subdesenvolvimento devem ser considerados como dois aspectos de um mesmo processo histórico ligado à criação e à forma de difusão da tecnologia moderna” (Celso Furtado, Raízes do Subdesenvolvimento, editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003, página 88).

Desse modo, o subdesenvolvimento traz consigo um tipo de desenvolvimento incompleto por natureza, dual, porém não contraditório, onde uma parte se desenvolve e outra permanece atrasada. Na mesma economia nacional encontram-se a escala industrial avançada e a economia agrícola atrasada, arcaica. Isso, por sua vez, pauperiza a remuneração do trabalho, uma vez que, de acordo com Celso Furtado, a grande oferta de mão-de-obra aliada ao atraso da agricultura, pressiona o preço da força de trabalho para baixo como um todo. Dessa maneira, ocorre dois problemas: a) o subconsumo comparado à capacidade instalada; b) a dificuldade de diversificação e de complexificação da economia de características industriais. Ora, se o atraso da economia agrícola pressiona o preço da mão-de-obra urbana para baixo, como assinalou Furtado em vasta obra, há que se optar por algumas saídas contra tal estrangulamento estrutural. Furtado aponta para a necessidade de se fazer uma ampla reforma agrária, aumentando a produtividade do campo e a renda do trabalhador rural, de modo que isso tivesse impacto imediato no preço da mão-de-obra urbano industrial e urbana como um todo, já que a opção de Furtado não era a socialista. Outra opção de Furtado era que a inovação tecnológica se desse de acordo com a expansão não só da economia, mas do emprego que pressionaria a inovação, via inversões de capital, para o incremento da mais-valia relativa através dos ganhos de produtividade associados ao aumento dos salários na mesma ou quase na mesma proporção (embora Celso Furtado não usasse o conceito de mais-valia). Todavia, é sabido que em um processo de acumulação dependente como o brasileiro, o padrão de consumo não é autônomo. Assim, o a transição do processo substitutivo de importações para a fase de bens de consumo duráveis (basicamente eletro domésticos e setor automotivo) se deu em associação entre o capital externo e o Estado, tendo a burguesia brasileira como associada. Mas como introduzir produtos duráveis em uma economia dada ao subconsumo? Bem, o padrão capitalista vem de cima para baixo, ou mais precisamente do centro para a periferia, a substituição de importações vai da fase da produção de bens não duráveis para duráveis e de certa maneira para a produção de bens de capital, para que isso ocorresse foi necessário que houvesse exportação de capital do centro para a periferia, seja na forma de investimentos diretos ou na forma de endividamento externo ou na forma de aquisição de bens de capital (sobretudo maquinário importado).

Dessa maneira, é preciso que haja um mercado interno compatível para o consumo dessas mercadorias produzidas com maior incremento de valor desde a cadeia de insumos, passando pelo capital variável e pelo capital constante, tudo em grande escala, pois o subconsumo de maneira prolongada afetaria irremediavelmente a taxa de lucro das empresas. Diante do que está posto, há algumas opões: 1- fazer com que o conjunto de trabalhadores tenham acesso aos bens duráveis; 2- transferir na forma de exportação (oferta) para os países vizinhos parte da demanda; 3- concentrar a renda em parte da população através do achatamento salarial da maioria. O ponto um foi descartado no Brasil e no conjunto dos países da América Latina por diversas razões que estão na própria raiz do subdesenvolvimento (que em outra oportunidade merece uma análise à parte). O ponto dois foi utilizado em países como Brasil, México e em menor grau pela Argentina, naquilo que Ruy Mauro Marini, caracteriza como um dos aspectos do subimperialismo. Já o ponto três foi a principal política utilizada e é aí que voltaremos novamente em falar na classe média.

Vamos ver o que Celso Furtado tem a nos dizer:

“Simplificando: a estrutura industrial brasileira teve de adaptar-se, desde o início, a um perfil de demanda caracterizado por um desnível considerável entre os padrões de consumo da massa e os de uma minoria; em razão da oferta totalmente elástica de mão-de-obra. Os incrementos de produtividade engendrados pelo progresso técnico e pelas economias de escala puseram em funcionamento um mecanismo adicional de concentração de renda; como o poder de compra realmente em expansão era o dos grupos de altas rendas, o desenvolvimento tendeu a assumir a forma de introdução de novos produtos e diversificação do consumo; a concentração de renda, ao entorpecer o processo de difusão, em benefício do de diversificação, tende a repercutir negativamente na taxa de crescimento. (…) Em um país de baixo nível de renda per capta, mas de grande população, a minoria de rendas altas pode ser suficiente para que se obtenham economias de escala na produção de certos bens duráveis” (Celso Furtado, A Análise do Modelo Brasileiro, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, páginas 30-31).

Ou seja, a falta de autonomia para a escolha do desenvolvimento a ser trilhado, uma burguesia associada de forma dependente ao capital internacional e um Estado burguês construído na via prussiana deu contornos de subdesenvolvimento com grande concentração de renda. Foi no aumento da exploração dos trabalhadores que a expansão concentrada teve seu eixo central. Vejamos em Francisco de Oliveira essa indicação:

“A outra vertente pela qual ocorrerá o esforço de acumulação é a do aumento da taxa de exploração da força de trabalho, que fornecerá os excedentes internos para acumulação. (…) podem-se perceber três fases no comportamento do salário mínimo real: a primeira, entre os anos de 1944 e 1951, reduz pela metade o poder aquisitivo do salário; a segunda entre os anos 1952 e 1957, mostra recuperação e declínios alternando-se na medida do poder político dos trabalhadores: é a fase do segundo governo Vargas, que se prolonga até o primeiro ano do governo Kubitschek; a terceira, iniciando-se no ano de 1958, é marcada pela deteriorização do salário mínimo real, numa tendência que se agrava pós-anos 1964, com apenas um ano de reação, em 1961, que coincide com o início do governo Goulart” (Francisco de Oliveira, Crítica à Razão Dualista: o ornitorrinco, Editora Boitempo, São Paulo, página 78).

Dessa maneira, tira-se do trabalhador, através do aumento da mais-valia, e dá-se para a burguesia e extratos mais altos da classe média, seja na forma de aumento dos lucros, aumento da remuneração real, seja na facilitação de crédito, seja na aplicação de impostos regressivos. A ditadura militar fez tudo isso adicionando o componente da repressão policial que resultou em prisões, torturas, fechamento de sindicatos, proibição de partidos fora da ordem estabelecida e exílios forçados de políticos com tendências populares. Não é à toa que a burguesia, as Forças Armadas e o imperialismo gestaram o golpe de 1964 e a classe média o chancelou. Assim, a classe média, mais precisamente seu extrato superior se aparta de forma econômica da classe trabalhadora através de uma política de consumo concentrado e isso, indubitavelmente, teve sua influência nas mobilizações da direita em 2016.

A Análise Psicológica: a classe média se aparta da massa popular pela falta de identificação de afetos

“Topologia da segregação: ao entrar em um desses modernos condomínios, projetados com a mais tenra engenharia urbanística, temos o sentimento pacificador de que enfim encontramos alguma ordem e segurança. Rapidamente nos damos conta que há ali uma forma de vida na qual a precariedade, o risco e a indeterminação teriam sido abolidos. O espaço é homogêneo, conforme certas regras de estilo. Dentro dele os lugares são bem distribuídos, as posições estão confortavelmente ocupadas. A polícia parece realmente presente, apesar de particular. As ruas estão bem pavimentadas e sinalizadas (…). A imagem dessa ilha de serenidade captura ilusões de um sonho brasileiro de consumo” (Christian Dunker, Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma, Editora Boitempo, São Paulo, página 48).

Note-se que nessa passagem de Dunker podemos, a partir da definição de Freud sobre angústia, perceber como a classe média se aparta do povo através de uma patologia social:

“Três espécies de angústia correspondem a tais perigos, pois a angústia é a expressão de um recuo ante o perigo” (Sigmund Freud, O Eu e o Id, Obras Completas, volume 16, Editora Companhia das Letras, São Paulo, página 70)

A vida em condomínio tão almejada pela classe média é a expressão de uma angústia, manifestada por uma série de sintomas. Na verdade há a angústia ante um perigo real, a violência, por exemplo, e há a angústia neurótica, que como nos indica Freud na obra Inibição, Sintoma e Angústia, trata-se de um perigo não real, qual seja o risco de “contaminação” através do contato com o diferente, daí a busca pela segurança advinda da homogeneização. Na verdade, como a violência epidêmica é tão real, fica difícil de traçar uma linha divisória entre a angústia ante um perigo real e a angústia neurótica. No caso da formação do sintoma, sabemos que parte deste se dá na repressão malograda, onde o Eu, para evitar o perigo, retornado após mal reprimido, manifesta seu desprazer com o Id (impulso) ou o Super-eu (moral, por exemplo) através do sintoma. Ou seja, a vida em condomínio é uma angústia que se manifesta através de sintomas como a obsessão por segurança, por organização, por homogeneização. Mas a angústia permanece, uma vez que a vida tem de sair do condomínio. Daí, a classe média acaba por não se sentir segura (assim como nenhuma classe social se sente, por isso o mal-estar não é uma particularidade da classe média), não se sente dentro de uma ordem e não se vê homogênea em um mundo hostil fora dos muros. Assim, temos o sintoma da repressão malograda, advinda do desejo de eliminação dos diferentes (não realizada), mais precisamente da massa popular, que sua demasiadamente, fala alto, ouve música brega, etc. Através da angústia e da formação de sintomas a classe média deteriora ainda mais suas relações de afeto já corroídas pela dimensão histórica e pela dimensão econômica.

Dado o quadro diagnóstico vamos à ação política de 2016 que resultou em gigantescas passeatas a favor do impeachment. A classe média, tal como o povo, está saturada da corrupção, da violência e da falta do retorno de seus impostos na forma de serviços públicos de qualidade. E tal como o povo, ela vê nos políticos a causa de suas angústias, demonstrando lógica e miopia ao mesmo tempo. Ocorre que, estando submersa em uma sociedade em anomia, a classe média sai às ruas com dois tipos de características psicopatológicas: 1- na forma de sintomas, 2- na forma de cinismo. O sintoma manifestado pelo ódio e o rancor contra tudo o que significa de esquerda e popular, como cotas, bolsa-família, minha casa minha vida, etc. O PT é parte constitutiva fundamental da corrupção, mas não é a causa de todo o mal. Aliás o governo Temer demostrou isso e as pessoas perceberam. O cinismo foi manifestado na forma de governo Temer com apoio inicial da classe média e Dória como gestor do novo rumo. Ora, nada mais cínico do que o que assistimos na televisão, a classe média elitizada, da classe B e do extrato inferior da A com suas soluções trágico-risíveis, uma vez que nem a mesma acreditava que aquilo era algum tipo de solução, do tipo “minha bandeira é verde amarela e não vermelha”. Vladmir Safatle atenta para o fato de que o cinismo é uma racionalidade a serviço da estabilização da anomia. Não é preciso ir a fundo do problema da corrupção, qual seja, a concentração de renda. É preciso culpar parte das vítimas dessa concentração pelo problema da corrupção, ou seja, os pobres. Corretamente, porém em parte, havia indignação contra o PT, mas cinicamente o antipetismo tinha como antídoto o alijamento dos movimentos sociais e populares de qualquer participação política para debater os rumos da crise instaurada no país. O leitor mais atento notará que muito do que se denota como sintoma pode se caracterizar como ideologia, afinal, para preconceitos racial e de classe ou ser contrário à democracia não é necessário estar em estado patológico. Todavia, o que afirmamos aqui é que as crises econômicas e políticas cada vez mais imprevisíveis e mais frequentes causam uma crise na modernidade como um todo, e isso, por seu passo, geram efeitos patológicos advindos de uma maior incerteza quanto aos rumos da sociedade e, consequentemente, de cada indivíduo. De modo que, a dominação é ideológica, mas os efeitos são patológicos, pois estamos falando em patologia social ou de acordo com os estudos freudianos de patologias do social. O estado de anomia desencadeia com maior intensidade estados patológicos nos indivíduos como um todo, independentemente de classe social. O que estamos a fazer aqui é focar nossa análise nos distúrbios patológicos do extrato social a que se destina esse artigo.

Mas se a crise brasileira não só continua, bem como se aprofunda por que a manifestação legítima, não obstante, sintomática da classe média não persiste? Bem, em primeiro lugar é muito difícil se manter mobilizações por períodos tão prolongados. Logo após a queda da Dilma o regime conseguiu alguma estabilidade. Não porque as pessoas achavam que realmente as coisas iriam mudar substantivamente no Brasil. Entretanto, acreditaram que parte de sua vida iria melhorar com o fim do bolivarianismo brasileiro, então causa de todos os males como propagandeava a grande imprensa todos os dias. Como as investigações da lava-jato prosseguiram, colocando até o principal artífice do golpe, Eduardo Cunha, na prisão e toda a corte de ministros de Temer e ele próprio enfrentando duras acusações com provas, o regime não se estabilizou. Mas o fato é que as mobilizações contra o governo Temer, que não tem apoio social de ninguém, só da burguesia, que mesmo assim está rachada, não existiram por parte da classe média é porque, sendo as mobilizações de março e abril de 2016 cínicas e até patológicas, viram na queda do PT um certo tipo de vingança. E quando dizemos vingança, não afirmamos, de modo algum, que não tinham nenhum tipo de legitimidade. A questão é que mesmo a classe média, média e alta, não apoiando o governo Temer, elas, por ideologia e por posição social privilegiada, mas também por patologia, não pensam num Brasil tão diferente assim de Michel Temer ou dos tucanos. Esse extrato social quer Reforma Trabalhista quer corte nas áreas sociais mais populares, quer restringir a participação popular, etc. Não que a classe média não queira saúde, educação, segurança de qualidade. Todavia, não quer que isso custe sua posição dentro da fatia de consumo do mercado. Como diz o dito popular: “não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos”. Não obstante, é isso que quer a classe média. E por isso foi cínico seu pedido de mudança. A classe média foi às ruas não para mudar o Brasil, mas para, através de uma certa satisfação sádica, portanto narcísica, manifestar politicamente suas angústias enquanto classe e não enquanto povo, massa popular ou qualquer outra denotação que a coloque muito abaixo da burguesia.

Em síntese, as mobilizações de 2016 não poderiam ser as mesmas de 2013. Nesse, sentido a formulação de Roberto Robaina que afirma que 2016 se tratou de um “simulacro” de 2013 é bastante correta. Simulacro porque não corroborava 2013 e simulacro porque não era popular, tampouco seu conteúdo, pois pode haver conteúdo popular em uma mobilização com outra classe social liderando, mas não foi o caso das agitações pró-impeachment. Justamente pelo fato de que a classe média (repito: seu extrato social superior) ter se apartado do povo no campo econômico, social e psicológico. Porém, essa é uma análise de conteúdo sociológico. Não se trata de um julgamento. Politicamente, enquanto partido, cabe-nos tentar incidir em todas as esferas da mobilização social, com exceção das de cunho fascista, que não era o caso integral de março e abril de 2016. Afinal, nem todo o conservadorismo é fascista, embora o contrário o seja. Por outro lado, também é preciso que não vejamos toda e qualquer mobilização de massas como algo positivo em si. A linha é tênue, mas o estudo e a ação política nos dão a práxis necessária para seguirmos em frente com a melhor atuação política possível.


Bibliografia

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FURTADO, Celso, A Análise do Modelo Brasileiro, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.

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OLIVEIRA, Francisco de, Crítica à Razão Dualista: o ornitorrinco, Editora Boitempo, São Paulo.

TAVARES, Maria da Conceição, Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1975.


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Pedro Micussi