O rap, a verdadeira força política do Gabão?

No Gabão, como em outros países africanos, o rap se tornou a alavanca para construções identitárias e da relação com o político.

Alice Aterianus-Owanga 24 out 2017, 20:02

Quinta-feira, 17 de agosto de 2017, na borda do mar adjacente à sede da presidência, o Gabão celebrava seus 57 anos de independência através de um grande concerto popular.

Estrelas do hip-hop tinham sido convidadas para atrair a juventude: Ba’Ponga, Tris, Tina e Ndoman do lado rap; Unknown Dimension e Scorpion do lado dos grupos de dança hip-hop; Shan do RnB e do afro-pop. A exibição era sedutora.

Porque a festa se revestia esse ano de uma questão e de um sentido particular. Um outro aniversário, menos festivo, se aproximava na verdade. Em 27 de gosto de 2016, este país onde “nunca se acontece nada” se afundou numa crise sociopolítica de rara violência após a vitória contestada de Ali Bongo.

Mais de um anos depois, as consequências sociais, políticas e econômicas ainda se ressentem. E elas são sutilmente difundidas através da cena rap.

Com efeito, há três décadas, ela se tornou no Gabão como em outros Estados do continente africano, a alavanca de construções identitárias e de maiores reconfigurações nas relações com o político.

Desvio histórico

Nos anos 1990, violentas manifestações e uma greve generalizada em todos os setores do país conduziram a um bloqueio da administração, empurrando o ditador Omar Bongo, no poder desde 1967, a organizar uma conferência nacional que permitiria reestabelecer o multipartidarismo e novas liberdades de expressão.

“African revolution” é um dos primeiros hits da dupla V2A4, que aborda claramente as práticas de malversação dos fundos públicos.

É neste contexto de inflamação popular que os jovens de Libreville se apoderaram da música rap, se inspirando nos estadunidenses Public Enemy e N.W.A, ou ainda nos franceses NTM e Assassin para exprimir sua necessidade de evasão, de liberdade e de mudança, ignorando a censura que prevalecia até então.

Si’Ya Po’Ossi X descreve com crueldade o cotidiano dos mapanes, zonas urbanas pobres onde crescem a maioria dos habitantes.

De todo modo, essa cena marginal e subversiva não rompe totalmente com as lógicas de interpenetração entre música e politica que ocorrem desde os anos 1960, período das independências africanas.

Assim, certos grupos de rap contestatários se provaram apegados ao “sistema” por laços de parentesco com as elites políticas. O V2A4 reúne, por exemplo, o filho do ministro do interior, parente próximo do presidente Omar Bongo, e um filho de um homem de negócios locais, os dois estudando na França e beneficiários das generosidades financeiras do “sistema”.

Esse compromisso é denunciado por Si’Ya Po’Ossi X, que reivindica sua missão de defesa das classes populares, notavelmente no título “Fogo sobre a concorrência”. Essa clivagem a respeito das relações com a política estruturará a cena rap depois disso, se amplificando nos anos 2000.

Bling-bling gabonês.

A partir dos anos 2000, o vôo do rap gangsta nos Estados Unidos e na França infla novas aspirações: os clips expõem agora mais correntes de ouro, cilindradas, jovens mulheres em posturas lascivas e demonstrações de masculinidade viril.

Kôba é o rapper emblemático do bling-bling gabonês.

A partir dos anos 2000, essa nova geração levada por Kôba produz textos desviando-se do engajamento político dos pioneiros. Essa tendência é então apoiada pelo lançamento de novos selos próximos do poder e de elites que reforçam as interpenetrações entre música e política.

Em 2005, o selo EBEN lança o título “Bouge ton vote”, a fim de incitar os jovens a ir votar. O título é vivamente criticado pelos rappers contestatários, já que é considerado como uma aproximação com o poder, o que certos rappers do selo defenderam então.

Instrumentalização e controle

A eleição de 2009 marca o apogeu desse encontro entre música e política. Ali Bongo, candidato presidencial, decide utilizar o capital social e o carisma dos rappers para adquirir a aprovação da juventude e criar uma imagem de ruptura em relação a seu pai Omar falecido em junho de 2009.

Ali Bongo se presta a uma performance de rap, cercado de estrelas do rap do grupo Hay’one, que apoiam sua campanha.

Após sua eleição em 2009, o candidato promovido pelos rappers dá lugar em seu governo a novos rostos políticos vindos do movimento hip-hop.

Por causa desses acontecimentos, os mecanismos de controle do regime semi-autoritário tornam-se ainda mais aplicados às cenas hip-hop, pelo ângulo das mídias notavelmente. Elas atingiram o seu clímax esses últimos anos, constrangendo os artistas “undergrounds” e contestatários a implementaar repertórios de ação política desviados.

Um mandato de sete anos de contestação

Logo após sua eleição presidencial em 2009, o mandato de sete anos de Ali Bongo é marcado por uma deterioração das condições de vida, das infraestruturas sociais, uma estagnação do desemprego (mais de 20% da população, e 35% entre os jovens – números do Banco Mundial), enquanto que as despesas de sua família atingem somas indecentes.

Ao mesmo tempo, as técnicas de censura, de cooptação e amordaçamento das contestações se multiplicam, constrangendo os raros artistas hip-hop contestatários a empregar outros modos de difusão.

Assim, é principalmente a partir do exterior que os rappers conseguem fazer ser ouvido um discurso subversivo. Tendo partido para estudos ou para se afastar de um regime hostil aos opositores, muitos rappers gaboneses de renome residem agora na China, na África do Sul, nos Estados Unidos e na França – como a dupla Movaizhaleine-, onde eles continuam suas atividades musicais

Eles recriam redes fortemente politizadas e ativas na denúncia da má governança de seu país e títulos que circulam graças às redes sociais até as ruas de Libreville, onde eles se tornam alavancas de moblização e de discussão política.

https://www.youtube.com/watch?v=LKcndEmtgxA

“Mister Zéro”, do raper Saik’1ry desenha a partir da região francesa de Aix-en-Provence o balanço catastrófico de Ali Bongo, e se tornou um leitmotiv dos encontros da oposição.

No local, os artistas continuam, apesar da censura, o combate. Em 2015, antes mesmo que uma oposição aberta se organizasse, o raper Keurtyce E, conhecido por sua virulência, foi o primeiro a publicar a canção mais explicitamente engajada contra o regime no poder.

No título “On va tourner la page”, Keutryce E ameaça diretamente o presidente.

Fora os conteúdos discursivos desses trechos, os artistas gaboneses manuseiam com brio a subversão através dos próprios instrumentos.

Bom uso do sampling.

O trabalho realizado pelos beatmakers ao redor do sampling, técnica de corte e de looping de trechos sonoros de músicas preexistentes foi um terreno muito rico que permitiu aos artistas conferir um toque local a suas músicas, por exemplo, incluindo samples de instrumentos ou de pedaços famosos de músicas locais.

Alicerce tecnológico, essa prática reveste também uma dimensão política, uma vez que os artistas retomam as letras, os trechos musicais ou os slogans de músicos engajados dos quais eles se afirmam como herdeiros das ideologias.

É o caso com o cantor Pierre-Claver Akendengué, intérprete gabonês do pan-africanismo nos anos 1960 e da crítica contra o regime autoritário durante o partido único. Ele representa ainda hoje uma das maiores fontes de inspiração dos músicos gaboneses contemporâneos.

https://www.youtube.com/watch?v=MEwxWBLH_ao

“Auc choeses du pays”, cujo o refrão é uma adaptação de Akendengué pelo grupo Movaizhaleine.

O rapper Lord Ekomy Ndong ofereceu recentemente um outro exemplo desse principio de subversão fazendo aparecer um beat em que ele sampleia extratos de um discurso do presidente Ali Bongo confrontando-o com o discurso de ativistas nas redes sociais para denunciar a corrupção e a malversação dos fundos públicos.

Modos menores, impactos maiores

Seja através desses modos “menores” da subversão como escreveu o filósofo Christian Béthune, ou pelos ataques frontais, as expressões musicais da contestação política explodiram ao longo de 2016, colocando em evidência a erosão das mecânicas do consentimento popular sob Ali Bongo.

No momento da eleição, a cena rap se dividiu violentamente entre os defensores e os detratores de Ali Bongo: os enfrentamentos via redes sociais e os trechos interpostos se ligam, e a cisão iniciada durante o mandato se confirma.

De um lado, os rappers ligados ao clan Bongo, implicados em reuniões e canções de apoio ao partido no poder.

De outro, uma coprodução entre os defensores do rap contestatório que denunciam a corrupção e a pilhagem dos recursos públicos e o empobrecimento crescente desde a chegada ao poder de Ali Bongo.

Uma mudança é esperada já que, em 2016, os rappers que haviam anteriormente cooperado com o presidente Ali Bongo se juntam aos movimentos de oposição para exprimir sua decepção em relação aos fracassos do mandato. E essa reviravolta dos rappers se confirma na divulgação dos resultados, os exércitos de Ali Bongo atiram nos manifestantes para acabar com a manifestação, deixando vários mortos e inúmeros desaparecidos.

Somente dois meses depois dessa repressão pós-eleitoral, Kôba – antes considerado como um artista integrado aos nichos do sistema – lança online o treço “Odjuku”. Com esse título de referência ao suposto genitor nigeriano de Ali Bongo, ele relança a polêmica ao redor da filiação do presidente, e clama por sua voz em alto e bom som: “A gente não te segue”.

Um ano mais tarde, como agora nesse concerto do 17 de agosto, o Estado tenta fazer esquecer o marasmo em que pena para sair

Contudo, as coisas mudaram e para fora das cenas oficiais a mobilização segue viva: nos ministérios em greve e na Universidade de Libreville, as manifestações continuam; nas ruas de Paris e de Nova York, a diáspora ainda se reúne; em suas canções, enfim, os rappers celebram à sua maneira o triste aniversário da repressão de 2016:

Artigo originalmente publicado no site The Convesation. Tradução de Pedro Micussi da versão publicada no jornal Le Monde.  


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