A Revolução Russa e o Movimento Negro Norte-Americano

Neste texto publicado em 1959, o dirigente estadunidense discute a maneira pela qual os socialistas debatiam a problemática da negritude no período.

James P. Cannon 21 nov 2017, 16:03

Durante seus dez primeiros anos, o Partido Comunista dos EUA estava preocupado com a questão do negro, e gradualmente chegou a uma política que era diferente e superior à do radicalismo norte-americano tradicional. Não obstante, nas minhas memórias publicadas relacionadas a este período, a questão do negro não aparece em nenhuma parte como tema de controvérsia interna entre as frações principais. A explicação era que nenhum dos dirigentes norte-americanos colocou nenhuma nova idéia sobre esta questão explosiva por conta própria; e nenhuma das frações propôs nenhuma das mudanças de política, atitude e forma de abordar a questão que se haviam realizado gradualmente quando o partido chegou ao fim de sua primeira década.

As principais discussões sobre a questão do negro ocorreram em Moscou, e a nova forma de ver a questão foi elaborada lá. Já no Segundo Congresso da Comintern(Internacional Comunista), em 1920, “Os Negros na América” foi um ponto na ordem do dia e uma discussão preliminar sobre esta questão foi levada a cabo. As investigações históricas comprovarão decisivamente que a política do PC sobre a questão do negro recebeu seu primeiro impulso de Moscou, e também que todas as seguintes elaborações desta política, incluindo a adoção da palavra-de-ordem de “autodeterminação” em 1928, vieram de Moscou.

Sob a constante pressão e estímulo dos russos na Comintern, o partido começou com o trabalho entre os negros durante seus primeiros dez anos; mas não conseguiu incorporar muitos e sua influência dentro da comunidade negra não chegou a muito. Disto seria fácil tirar a conclusão pragmática de que toda a discussão e preocupação sobre a política com respeito à questão nessa década, desde Nova Iorque até Moscou, era muito barulho sobre nada, e que os resultados da intervenção russa foram completamente negativos.

Esta pode ser a avaliação convencional nestes dias da Guerra Fria, quando a animosidade contra todas as coisas russas é o substituto convencional pela opinião considerada. Porém, está longe de ser a verdade histórica. Os primeiros dez anos do comunismo norte-americano são um período curto demais para permitir uma avaliação definitiva da nova forma de abordar a questão do negro que foi imposta ao partido norte-americano pela Comintern.

A discussão histórica sobre a política e ação do Partido Comunista sobre a questão do negro, e sobre a influência russa na formação das mesmas, durante os primeiros dez anos da existência do partido, por exaustiva que seja, não pode ser suficiente se a investigação não projeta-se até a seguinte década. O jovem partido tomou os primeiros dez anos para fazer um começo neste terreno até então não explorado. As façanhas espetaculares dos anos 30 não podem ser entendidas sem referência a esta década anterior de mudanças e reorientações. As posteriores ações e resultados vieram disto.

Uma análise séria de todo o processo complexo tem que começar com o reconhecimento de que os comunistas norte-americanos na primeira parte dos anos 20, tal como todas as outras organizações radicais deste período e períodos anteriores, não tinham nada com que podiam começar sobre a questão do negro senão uma teoria inadequada, uma atitude falsa ou indiferente e a aderência de alguns indivíduos com tendências radicais ou revolucionárias.

O movimento socialista anterior, do qual o Partido Comunista surgiu, jamais reconheceu a necessidade de um programa especial sobre a questão do negro. Esta era considerada pura e simplesmente um problema econômico, uma parte da luta entre os operários e os capitalistas; a idéia era que não se podia fazer nada sobre os problemas especiais da discriminação e a desigualdade antes da chegada ao socialismo.

Os melhores dos socialistas do período anterior foram representados por Debs,1 que se mostrava simpático a todas as raças e completamente livre de preconceitos. Porém, a limitação do ponto de vista deste grande agitador, sobre esta questão complexa, foi expressada na sua declaração:

“Nós não temos nada especial para oferecer ao negro, e não podemos fazer chamamentos separados a todas as raças. O Partido Socialista é o partido de toda a classe operária, seja qual for a cor – de toda a classe operária de todo o mundo” (Ray Ginger, The Bending Cross).

Esta foi considerada uma colocação muito avançada nesse período, mas não colocou o apoio ativo à exigência especial do negro por um pouco de igualdade aqui e agora, ou no futuro previsível, no caminho rumo ao socialismo.

Inclusive Debs, com a sua fórmula geral que ignorou o ponto principal – a questão ardente da constante discriminação contra os negros em todos os aspectos – era muito superior nesta questão, tal como em todas as outras, a Victor Berger, que era um racista declarado.2 O seguinte é um pronunciamento de um editorial de Berger no seu jornal na cidade de Milwaukee, o Social Democratic Herald:

“Não há dúvida de que os negros e mulatos constituem uma raça inferior”.

Esta foi a colocação do “socialismo de Milwaukee” sobre a questão negra, como foi expressada por seu ignorante e insolente líder e chefe. Um negro perseguido e atacado jamais conseguiria digerir tal posição com uma simples cerveja de Milwaukee, inclusive se tivesse cinco centavos e pudesse encontrar uma cantina dos brancos onde pudesse beber um copo de cerveja, na parte dos fundos do bar.

O chauvinismo declarado de Berger nunca foi a posição oficial do Partido Socialista. Havia outros socialistas, tais como William English Walling, que foi partidário da igualdade de direitos para os negros e um dos fundadores da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP – Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor) em 1909. Mas tais indivíduos foram uma pequena minoria entre os socialistas e radicais antes da Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa.

A insuficiência da política socialista tradicional sobre a questão do negro tem sido amplamente documentada pelos historiadores do movimento, Ira Kipnis e David Shannon. Shannon resume a atitude geral que prevalecia no Partido Socialista sobre os negros da seguinte forma:

“Não eram importantes no partido, o partido não fazia nenhum esforço especial para atrair militantes negros, e se o partido não era realmente hostil ao esforço dos negros para melhorar sua posição dentro da sociedade capitalista norte-americana, este esforço geralmente não lhe interessava.”

E mais adiante:

“O partido mantinha que a única salvação do negro era a mesma que a única salvação do branco: ‘o socialismo’.”

Esta foi a posição tradicional que o Partido Comunista dos primeiros anos herdou do movimento socialista anterior, do qual havia surgido. A política e a prática do movimento sindical era ainda pior. A organização IWW (Industrial Workers of the World – Trabalhadores Industriais do Mundo) não excluia ninguém da militância pela sua “raça, cor nem credo”. Mas os sindicatos predominantes da AFL (American Federation of Labor – Federação Norte-Americana do Trabalho), com só umas poucas exceções, eram compostos exclusivamente pelos brancos da aristocracia operária. Estes também não tinham nada especial que oferecer aos negros; na realidade, não tinham absolutamente nada que oferecer-lhes.

A diferença – e foi uma diferença profunda – entre o Partido Comunista dos anos 20 e os seus antecessores socialistas e radicais, foi mostrada pela sua ruptura com esta tradição. Os comunistas norte-americanos dos primeiros anos, sob a influência e pressão dos russos na Comintern, estavam aprendendo lenta e dolorosamente a mudar sua atitude; a assimilar a nova teoria da questão negra como uma questão especial de gente duplamente explorada e posta na situação de cidadãos de segunda classe, o que requeria um programa de reivindicações especiais como parte do programa geral – e a começar a fazer algo sobre esta questão.

A verdadeira importância desta mudança profunda, em todas suas dimensões, não pode ser medida adequadamente pelos resultados que ocorreram nos anos 20. É necessário considerar os primeiros dez anos principalmente como o período preliminar de reconsideração e discussão, e de mudança na atitude e política sobre a questão dos negros – como preparação para a atividade futura neste terreno.

Os efeitos desta mudança e esta preparação nos anos 20, produzidos pela intervenção russa, manifestaram-se explosivamente na década posterior. As condições muito favoráveis para a agitação e organização entre os negros, produzidas pela Grande Depressão, encontraram o Partido Comunista preparado para atuar neste terreno como nenhuma outra organização radical havia feito neste país.

Tudo de novo e progressista sobre a questão do negro veio de Moscou depois da revolução de 1917, e como resultado da revolução – não só para os comunistas norte-americanos, que responderam diretamente, mas também para todos os que se interessavam na questão.

Sozinhos, os comunistas norte-americanos nunca inventaram nada novo ou diferente da posição tradicional do radicalismo norte-americano sobre a questão negra. Essa posição, como mostram as citações anteriores das histórias de Kipnis e Shannon, foi bastante fraca na teoria e ainda mais fraca na prática. A fórmula simplista de que a questão dos negros era meramente econômica, uma parte da questão do capital contra o trabalho, jamais inspirou os negros, que sabiam que não era assim, mesmo se não o dissessem abertamente; eles tinham que viver com a discriminação brutal, cada hora de cada dia.

Esta discriminação não era sutil nem dissimulada. Todo mundo sabia que ao negro se dava o pior em todo momento, mas quase ninguém estava interessado ou queria fazer algo para procurar moderar ou mudar esta situação. A maioria branca da sociedade norte-americana, que constituia [nesse período] 90% da população, incluindo seu setor operário, no Norte como no Sul, estava saturada com preconceitos contra o negro; e o movimento socialista refletia bastante este preconceito – embora, para não contradizer o ideal da irmandade humana, esta atitude dos socialistas era oculta e tomava a forma de evasiva. A velha teoria do radicalismo norte-americano mostrou na prática ser uma fórmula para a falta de ação sobre a questão dos negros e, incidentalmente, uma cobertura conveniente para os latentes preconceitos raciais dos radicais brancos.

A intervenção russa transformou tudo isto, drasticamente e num sentido benéfico. Ainda antes da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, Lenin e os bolcheviques se distinguiam de todas as outras tendências no movimento socialista e operário internacional por sua preocupação com os problemas das nações e minorias nacionais oprimidas, e seu apoio positivo às lutas destas pela liberdade, a independência e o direito da autodeterminação. Os bolcheviques davam este apoio a toda a “gente sem igualdade de direitos”, de uma forma sincera e honesta, mas não havia nada “filantrópico” nesta posição. Reconheciam também o grande potencial revolucionário na situação dos povos e nações oprimidos, e os viam como aliados importantes da classe operária internacional na luta revolucionária contra o capitalismo.

Depois de novembro de 1917, esta nova doutrina, com ênfase especial nos negros, começou a ser transmitida ao movimento comunista norte-americano com a autoridade da Revolução Russa. Os russos na Comintern começaram a enfrentar os comunistas norte-americanos com a exigência brusca e insistente de que abandonassem seus próprios preconceitos não declarados, que dessem atenção aos problemas e queixas especiais dos negros norte-americanos, que trabalhassem entre eles e que se convertessem em campeões de sua causa dentro da população branca.

Para os norte-americanos, que tinham sido educados numa tradição diferente, levou tempo para assimilar a nova doutrina leninista. Mas os russos seguiam, ano após ano, montando os argumentos e aumentando a pressão sobre os comunistas norte-americanos até que estes finalmente aprenderam, mudaram e começaram a trabalhar a sério. E a mudança na atitude dos comunistas norte-americanos, que se efetuou gradualmente nos anos 20, exerceria uma influência profunda em círculos muito mais amplos durante os anos posteriores.

A ruptura do Partido Comunista com a posição tradicional do radicalismo norte-americano sobre a questão negra coincidiu com mudanças profundas que estavam ocorrendo entre a população negra. A migração em grande escala das regiões agrícolas do Sul dos Estados Unidos para os centros industriais do Norte se acelerou muito durante a Primeira Guerra Mundial, e continuou nos anos posteriores. Isto produziu algumas melhorias em suas condições de vida em comparação com o que haviam conhecido no Sul (“Deep South”),3 mas não foram suficientes para compensar o desencanto de encontrar-se relegados aos guetos e submetidos ainda à discriminação por todos os lados.

O movimento negro, tal como era então, apoiou patrioticamente a Primeira Guerra Mundial “para tornar o mundo seguro para a democracia”; e 400.000 negros serviram nas forças armadas. Quando regressaram aos Estados Unidos, buscaram um pouquinho de democracia para eles mesmos, mas não puderam encontrar muito em nenhum lado. O seu novo espírito de reclamar algo para si mesmos foi contestado com cada vez mais linchamentos e uma série de distúrbios raciais em todo o país, tanto no Norte como no Sul.

Tudo isto – as esperanças e as decepções, o novo espírito de decisão e as represálias bestiais – contribuiu para o surgimento de um novo movimento negro. Rompendo decididamente com a tradição de Booker T. Washington4 de acomodação a uma posição de inferioridade no mundo do homem branco, uma nova geração de negros começou a impulsar suas exigências de igualdade.

O que o novo movimento emergente dos negros norte-americanos – uma minoria de 10% da população dos Estados Unidos – mais necessitava, e que carecia quase por completo, era de apoio efetivo dentro da comunidade branca em geral e, em particular, dentro do movimento operário, seu aliado necessário. O Partido Comunista, defendendo vigorosamente a causa dos negros e propondo uma aliança do povo negro e o movimento operário combativo, entrou na nova situação como um agente catalizador no momento preciso.

Foi o Partido Comunista, e nenhum outro, que converteu os casos de Herndon e Scottsboro5 em questões conhecidas nacional e internacionalmente, e que pôs os grupos de linchamento legal dos “Dixiecratas” (políticos racistas sulistas do Partido Democrata) na defensiva pela primeira vez desde a derrubada da Reconstrução.6 Os militantes do partido dirigiram as lutas e as manifestações para conseguir consideração justa para os negros desempregados nos postos de ajuda, e para colocar novamente nos seus apartamentos os móveis dos negros jogados na rua pelos donos das casas. Foi o Partido Comunista que de forma demonstrativa apresentou um negro como candidato a vice-presidente em 1932 – algo que nenhum outro partido radical ou socialista jamais havia contemplado.

Por meio deste tipo de ação e agitação nos anos 30, o partido sacudiu todos os círculos mais ou menos liberais e progressistas da maioria branca, e começou a produzir uma mudança radical na atitude sobre a questão negra. Ao mesmo tempo, o partido se coverteu num verdadeiro fator entre os negros, que avançaram em seu status e sua confiança em si mesmos – em parte como resultado da vigorosa agitação do Partido Comunista sobre a questão.

Não se pode descartar esta realidade dizendo que “os comunistas atuaram assim porque tinham um interesse por trás disto”. Toda agitação a favor dos direitos dos negros favorece o movimento negro; e a agitação dos comunistas foi muito mais enérgica e eficaz que qualquer outra naquele período.

Estes novos acontecimentos parecem conter um aspecto contraditório, e este, que conheço, jamais tem sido confrontado ou explicado. A expansão da influência comunista dentro do movimento negro durante os anos 30 ocorreu apesar do fato de que uma das novas palavras-de-ordem impostas ao partido pela Comintern nunca pareceu adequar-se à situação real. Esta foi a palavra-de-ordem da “autodeterminação”, sobre a qual se fez o maior alvoroço e se escreveu o maior número de teses e resoluções, sendo inclusive apregoada como a palavra-de-ordem principal.7 A palavra-de-ordem da “autodeterminação” teve pouca ou nenhuma aceitação na comunidade negra. Depois do colapso do movimento separatista dirigido por Garvey,8 a tendência dos negros foi principalmente em direção à integração racial, com igualdade de direitos.

Na prática o PC passou por cima desta contradição. Quando o partido adotou a palavra-de-ordem da “autodeterminação”, não abandonou sua vigorosa agitação a favor da igualdade e os direitos dos negros em todas as frentes. Ao contrário, intensificou e estendeu esta agitação. Isto era o que os negros desejavam ouvir, e isso é o que fez a diferença. A agitação e ação do PC sobre esta última palavra-de-ordem foi o que produziu resultados, sem a ajuda e provavelmente apesar da impopular palavra-de-ordem da “autodeterminação” e todas as teses escritas para justificá-la.

Durante o “Terceiro Período” de ultra-radicalismo [da Comintern], os comunistas convertidos em stalinistas realizaram sua atividade entre os negros com toda a desonesta demagogia, os exageros e distorsões que lhes são próprias e das quais eles são inseparáveis. Apesar disto, a reivindicação principal em torno da igualdade de direitos foi ouvida e encontrou eco na comunidade negra. Pela primeira vez desde a época dos abolicionistas,9 os negros viram um grupo enérgico, dinâmico e combativo de gente branca que defendia sua causa. Desta vez não foram uns quantos filantropos e liberais tímidos, mas sim os pertinazes stalinistas dos anos 30, que estavam à frente de um movimento radical de grande alcance que, gerado pela depressão, estava em ascensão. Havia uma energia em seus esforços naqueles anos e esta foi sentida em muitas esferas da vida norte-americana.

A resposta inicial de muitos negros foi favorável, e a reputação do partido como uma organização revolucionária identificada com a União Soviética provavelmente era mais ajuda que obstáculo. A camada superior dos negros, buscando respeitabilidade, tendia a distanciar-se de todo o radical; porém as bases, os mais pobres entre os pobres que não tinham nada que perder, não tinham medo. O partido incorporou milhares de militantes negros nos anos 30 e se converteu, por um tempo, em uma força real dentro da comunidade negra. A causa principal disto era sua política sobre a questão da igualdade de direitos, sua atitude geral – a qual havia aprendido dos russos – e sua atividade em torno da nova linha.

Nos anos 30, a influência e a ação do Partido Comunista não se restringia à questão dos “direitos civis” em geral. Também atuava poderosamente para dar nova forma ao movimento operário e auxiliar os operários negros a conseguir neste movimento o lugar que anteriormente lhes havia sido negado. Os mesmos operários negros, que haviam contribuido nas grandes lutas para criar os novos sindicatos, pressionavam a favor de suas próprias reivindicações mais vigorosamente que em nenhum período anterior.10 Mas necessitavam de ajuda, necessitavam de aliados.

Os militantes do Partido Comunista começaram a desempenhar este papel no momento crítico dos dias formativos dos novos sindicatos. A política e a agitação do Partido Comunista neste período fizeram mais, dez vezes mais, que qualquer outra força para ajudar os operários negros a assumir um novo status de, pelo menos, semi-cidadania dentro do novo movimento sindical criado nos anos 30 sob a bandeira do CIO.

É freqüente atribuir o progresso do movimento negro, e a mudança da opinião pública a favor de suas reivindicações, às mudanças produzidas pela Primeira Guerra Mundial. Mas o resultado mais importante da Primeira Guerra Mundial, o acontecimento que mudou tudo, incluindo as perspectivas para os negros norte-americanos, foi a Revolução Russa. A influência de Lenin e da Revolução Russa – apesar de ser degradada e distorcida como foi posteriormente por Stalin, e depois filtrada através das atividades do Partido Comunista dos Estados Unidos – contribuiu, mais que qualquer outra influência, de qualquer fonte, para o reconhecimento, e a aceitação mais ou menos geral, da questão negra como um problema especial da sociedade norte-americana; um problema que não pode ser colocado simplesmente sob o cabeçalho do conflito entre capital e trabalho, como fazia o movimento radical pré-comunista.

Se acrescenta algo, mas não muito, ao dizer que o Partido Socialista, os liberais e os dirigentes sindicais mais ou menos progressistas aceitaram a nova definição e outorgaram algum apoio às reivindicações dos negros. Isso é exatamente o que fizeram: aceitaram. Não tinham nenhuma teoria nem política independente desenvolvidas por eles mesmos. De onde iam tirá-las? De suas próprias cabeças? De nenhuma maneira. Todos iam atrás o PC sobre esta questão nos anos 30.

Os trotskistas e outros grupos radicais dissidentes – que também tinham aprendido dos russos – contribuiram com o que puderam para a luta pelos direitos dos negros; mas os stalinistas, dominando o movimento radical, dominavam também os novos acontecimentos no terreno da questão negra.

Tudo o que havia de novo sobre a questão negra veio de Moscou, depois que começava a ressoar em todo o mundo a exigência da Revolução Russa pela liberdade e a igualdade para todos os povos subjugados e todas as raças, para todos os desprezados e rechaçados do mundo. O estrondo continua ressoando, mais forte que nunca, como atestam as manchetes diárias dos jornais.

Os comunistas norte-americanos responderam primeiro, e mais enfaticamente, à nova doutrina que veio da Rússia. Mas o povo negro, e setores significativos da sociedade branca norte-americana, responderam indiretamente, e seguem respondendo, mesmo não reconhecendo isto.

Os atuais líderes oficiais do movimento pelos “direitos civis” dos negros norte-americanos, mais que um pouco surpreendidos frente à crescente combatividade do movimento e o apoio que está conseguindo na população branca do país, pouco suspeitam o quanto o ascendente movimento deve à Revolução Russa que todos eles patrioticamente rechaçam.

O Reverendo Martin Luther King afirmou, ao tempo da batalha do boicote em Montgomery, que o seu movimento fazia parte da luta mundial dos povos de cor pela independência e a igualdade.11 Deveria haver acrescentado que as revoluções coloniais, que efetivamente são um poderoso aliado do movimento negro nos Estados Unidos, conseguiram seu impulso inicial da Revolução Russa – e são estimuladas e fortalecidas dia a dia pela contínua existência desta revolução na forma da União Soviética e da nova China, que o imperialismo branco subitamente “perdeu”.

Indiretamente, mas de uma forma ainda mais convincente, os mais raivosos anti-soviéticos, entre eles os políticos liberais e os dirigentes sindicais oficiais, testemunham isto quando dizem: O escândalo de Little Rock e coisas do mesmo tipo não devem acontecer porque favorecem a propaganda comunista entre os povos coloniais não-brancos.12 Seu temor à “propaganda comunista”, tal como o temor de outras pessoas a Deus, lhes faz virtuosas.

Agora tornou-se convencional, para os líderes sindicais e os liberais do Norte, simpatizar com a luta dos negros por alguns poucos direitos elementares como seres humanos. É “O Que Se Deve Fazer”, um símbolo da inteligência civilizada. Até os ex-radicais convertidos em uma espécie de “liberais” anti-comunistas – uma espécie muito fraca – são agora orgulhosamente “corretos” em seu apoio formal aos “direitos civis” e em sua oposição à segregação dos negros e outras formas de discriminação. Mas como chegaram a isso?

Os liberais de hoje jamais perguntam-se por quê – salvo algumas notáveis exceções – nunca ocorreu a seus similares de uma geração anterior esta nova e mais esclarecida atitude sobre os negros antes que Lenin e a Revolução Russa puseram de pernas pro ar à velha, bem estabelecida e complacentemente aceitada doutrina de que as raças deviam ser “separadas e desiguais”.13 Os liberais e líderes sindicais anti-comunistas norte-americanos não sabem, mas algo da influência russa que odeiam e temem tanto lhes contagiou.

Como todo mundo sabe, finalmente os stalinistas atrapalharam a questão negra, assim como atrapalharam todas as demais questões. Traíram a luta pelos direitos dos negros durante a Segunda Guerra Mundial, em serviço à política exterior de Stalin – do mesmo modo, e pelo mesmo motivo fundamental, que trairam os operários grevistas norte-americanos e aplaudiram os representantes do governo quando pela primeira vez se utilizou a Lei Smith, no julgamento contra os trotskistas em Minneapolis em 1941.14

Agora todo mundo o sabe. Ao final se colheu o que se semeou, e os stalinistas mesmos têm-se visto obrigados a confessar publicamente algumas de suas traições e ações vergonhosas. Mas nem o suposto arrependimento por crimes que não podem ser ocultados nem os alardes sobre virtudes passadas que outros estão pouco dispostos a recordar, parecem servir-lhes de nada. O Partido Comunista, ou melhor, o que fica disso, é tão desprestigiado e desprezado que hoje se reconhece pouco ou nada de seu trabalho na questão dos negros durante aqueles anos anteriores, quando teve conseqüências extensas que em sua maior parte foram progressistas.

Não é meu dever nem meu propósito prestar ajuda aos stalinistas. O único objetivo desta descrição resumida é esclarecer alguns fatos acerca da primeira época do movimento comunista norte-americano para o benefício dos estudiosos de uma nova geração, que desejam conhecer toda a verdade, sem temor nem favor, e aprender algo dela.

A nova política sobre a questão negra, aprendida dos russos durante os primeiros dez anos do comunismo norte-americano, deu ao Partido Comunista a capacidade de avançar a causa do povo negro nos anos 30; e de estender sua própria influência entre os negros em uma escala da qual nenhum movimento radical tinha-se aproximado até então. Estes são os fatos históricos, não somente da história do comunismo norte-americano, mas também da história da luta pela emancipação dos negros.

Para aqueles que olham para o futuro estes fatos são importantes, uma antecipação das coisas por vir. Através de sua atividade combativa durantes os anos anteriores, os stalinistas deram um grande ímpeto ao novo movimento negro. Posteriormente, sua traição à causa dos negros durante a Segunda Guerra Mundial preparou o caminho para os gradualistas que têm sido os dirigentes incontestados do movimento desde esse período.

A política do gradualismo, de prometer liberdade ao negro dentro do marco do sistema social que o subordina e degrada, não está dando resultado. Não vai à raíz do problema. Grandes são as aspirações do povo negro e grandes também as energias e emoções em sua luta. Porém as conquistas concretas de sua luta até agora são lastimosamente escassas. Têm avançado alguns milímetros, mas a meta da verdadeira igualdade se encontra a muitos, muitos quilômetros de distância.

O direito de ocupar um banco vazio em um ônibus; a integração de um punhado de meninos negros em algumas escolas públicas; algumas vagas abertas para indivíduos negros na administração pública e algumas profissões; direitos de emprego iguais no papel, mas não na prática; o direito à igualdade, formal e legalmente reconhecido mas negado na prática a cada momento: este é o estado de coisas na atualidade, 96 anos depois da Proclamação da Emancipação.

Tem havido uma grande mudança na perspectiva e nas reivindicações dos negros desde a época de Booker T. Washington, mas nenhuma mudança fundamental em sua situação real. O crescimento desta contradição está levando a uma nova explosão e uma nova mudança de política e liderança. Na próxima etapa do seu desenvolvimento, o movimento negro norte-americano se verá obrigado a orientar-se a uma política mais combativa que a do gradualismo e buscar aliados mais confiáveis que os políticos capitalistas do Norte, que estão vinculados com os “dixiecratas” do Sul. Os negros, mais que ninguém neste país, têm motivo – e direito – para ser revolucionários.

Um partido operário honesto da nova geração reconhecerá este potencial revolucionário da luta dos negros e proporá uma aliança combativa do povo negro e o movimento operário em uma luta revolucionária comum contra o sistema social existente.

As reformas e as concessões, muito mais importantes e significativas que as obtidas até agora, serão subprodutos desta aliança revolucionária. Em cada fase da luta se lutará a seu favor e elas serão conseguidas. Porém o novo movimento não se deterá com reformas, não será satisfeito com concessões. O movimento do povo negro e o movimento operário combativo, unificados e coordenados por um partido revolucionário, resolverão a questão dos negros da única maneira em que pode ser resolvida: mediante uma revolucão social.

Os primeiros esforços do Partido Comunista nesta questão, durante a geração passada, serão reconhecidas e assimiladas. Nem sequer a experiência da traição stalinista será desperdiçada. A lembrança desta traição será uma das razões porque os stalinistas não serão os dirigentes na próxima vez.

Los Angeles
8 de maio de 1959

Extraído de marxist.org


Notas dos tradutores

1 Eugene V. Debs (1855-1926) foi dirigente de uma importante greve dos ferroviários e depois do Partido Socialista dos Estados Unidos. Foi encarcerado por sua oposição à Primeira Guerra Mundial. Embora tenha declarado sua simpatia pela Revolução Bolchevique, não uniu-se ao Partido Comunista.

2 Victor Berger: um dirigente da ala direita do Partido Socialista.

3 Nos Estados Unidos, a região do Sudeste que foi o coração da confederação escravocrata durante a Guerra Civil (1860-65) é conhecida como o “Deep South”.

4 Booker T. Washington (1856-1915) foi um dirigente negro que colocou a “auto-melhoria” da população negra e se opôs às lutas diretas contra a opressão.

5 Angelo Herndon foi um jovem comunista negro perseguido por um embuste da polícia em Atlanta, Georgia em 1932 e acusado de “incitar à insurreição”. Os acusados de Scottsboro, Alabama foram oito jovens negros vítimas de um embuste racista nos anos 30. Foram condenados à morte mas logo foram perdoados como resultado da campanha em sua defesa.

6 A Reconstrução (1865-77) foi o período depois da derrota da Confederação escravocrata na Guerra Civil norte-americana, quando, sob a proteção de tropas do Norte, foram concedidos direitos de cidadania aos antigos escravos e se desmantelou uma parte do poder dos latifundiários (antigos escravistas) do Sul. Em várias partes do Sul foram eleitos governos locais compostos em grande parte de negros, junto com radicais brancos do Norte. A Reconstrução foi traída pela burguesia do Norte no seu Compromisso de 1877 com os políticos racistas do Sul; as tropas federais foram retiradas e o terror racista esmagou os direitos básicos dos negros.

7 A palavra-de-ordem da autodeterminação dos negros na “faixa negra” formada por várias áreas do Sul dos Estados Unidos foi promulgada pelo Sexto Congresso da Internacional Comunista (1928). Já então essa “faixa negra” era semi-fictícia, devido à migração de grande parte da população negra às cidades industriais do Norte e centro do país, Califórnia, e outras áreas. Na realidade, o povo negro (que entre outras coisas não tinha um território em comum) não era uma nação mas sim uma “casta de cor e raça”, integrada na economia capitalista mas segregada nos níveis inferiores da mesma. A palavra-de-ordem da autodeterminação encontrou resistência da maioria dos dirigentes negros do PC dos Estados Unidos. Porém, a Comintern stalinizada insistiu e se começou a propagar a palavra-de-ordem mais energicamente em 1930.

8 Marcus Garvey (1887-1940) dirigiu o movimento pelo “retorno à África”.

9 Os abolicionistas foram os que agitaram a favor da abolição da escravidão nos Estados Unidos antes da emancipação dos escravos em 1863, proclamada por Abraham Lincoln durante a Guerra Civil.

10 Com o impulso das três greves gerais de 1934 (as de Minneapolis, dirigida pelos trotskistas; Toledo, dirigida pelo American Workers Party, que pouco depois se unificou com os trotskistas; e São Francisco, dirigida pelos stalinistas), em 1935 se formou uma nova agrupação sindical: o Congress of Industrial Organizations (CIO – Congresso de Organizações Industriais). O CIO rompeu com a velha e conservadora confederação, a American Federation of Labor (AFL – Federação Norte-Americana do Trabalho), cujos sindicatos, organizados por profissões, geralmente haviam agrupado somente os operários mais qualificados. Os novos sindicatos do CIO foram “industriais”, quer dizer, baseados na organização de todos os trabalhadores de uma indústria em um só sindicato. Em 1953 a AFL e o CIO se fundiram para formar a AFL-CIO, que na atualidade é a única confederação sindical nos Estados Unidos.

11 Em 1955, o movimento pelos direitos civis chegou à atenção nacional nos Estados Unidos quando a população negra de Montgomery, Alabama, realizou, durante todo um ano, um boicote dos ônibus municipais, que eram racialmente segregados.

12 Em Little Rock, Arkansas, em setembro de 1957, racistas brancos atacaram estudantes negros que, sob um mandado judicial contra a segregação racial, freqüentaram pela primeira vez uma escola secundária que anteriormente havia sido reservada para os brancos. Quando a população negra mobilizou-se para defender-se, o presidente Eisenhower enviou tropas para ocupar a cidade e impedir este esforço de auto-defesa dos negros.

13 “Separadas e desiguais”: referência irönica à doutrina da primeira metade do século XX de que os negros iam ser “separados” (quer dizer, segregados) dos brancos, mas “iguais” aos mesmos. Esta doutrina havia sido avalizada também por alguns “líderes” negros.

14 Pregando a “união anti-fascista” com o presidente Roosevelt na Segunda Guerra Mundial, o Partido Comunista stalinizado se opôs raivosamente tanto às greves como aos protestos contra a segregação racial. A Lei Smith contra a “subversão” foi usada para encarcerar 18 trotskistas, entre eles Cannon e dirigentes do sindicato dos caminhoneiros de Minneapolis, devido a sua oposição revolucionária à Segunda Guerra Mundial imperialista. Logo, sob o macartismo, a mesma lei foi usada para encarcerar muitos dirigentes do Partido Comunista.


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Autores

Pedro Micussi