Algumas notas sobre os dez meses de governo Trump e a situação dos EUA

Trump aumenta a crise política e polarização social e acelera a decadência de hegemonia mundial dos EUA.

Pedro Fuentes 3 nov 2017, 20:01

No centro da conjuntura mundial está a luta democrática independentista catalã. Ela demonstra uma vez mais a importância que adquiriram as rebeliões democráticas populares como resposta ao cada vez maior autoritarismo dos regimes, seja o do governo Trump, o da Venezuela, o do Brasil, que embora sejam diferentes nenhuma escapa ao fato objetivo do aumento do autoritarismo. Este curso é consequência da incapacidade e da crise dos regimes democrático-burgueses baseado no partidarismo incapazes de responder às necessidades e aspirações do movimento de massas. Catalunha mostra também que o curso autoritário é rechaçado por esse movimento, e esse também sucede nos EUA.

Trump aumenta a crise política e polarização social e acelera a decadência de hegemonia mundial dos EUA.

1. Seria errado pensar que Trump é só um palhaço caricaturesco. Assim tenha muito disso, é mais que isso. Não foi fruto de uma casualidade nem é um fenômeno isolado, mas como consequência da crise dos regimes democráticos burgueses que apontávamos mais acima e que tocou os EUA.

Trump expressa a polarização da sociedade americana e estimula essa polarização. A característica “peculiar” de governar e seus subordinados mostram a crise do regime bipartidário e aceleram a crise do mesmo. No entanto, não atua no ar; todas suas medidas têm um claro lado de classe; governa para a minoria do grande capital financeiro americano e os grandes ricos dos EUA. Para fazê-lo, apoia-se num setor da população que girou à direita, que gosta de seus discursos machistas e seus ataques vulgares.

Esta política não atua no ar, responde ao direitismo dominante do Partido Republicano que concorda com o que Trump faz embora tenha contradições. Esta política está destruindo a seguridade social e o que havia com o “Obamacare”, limita e reprime aos imigrantes. Está preparando uma reforma impositiva ainda mais a serviço dos ricos já é hoje, e que condenará com mais força à classe média e aos pobres do país. A seguridade social e a maior transferência de impostos aos pobres são a marca registrada da política de Trump nos próximos meses.

2. Qual está sendo a resistência a esta política? As grandes mobilizações que se iniciaram com seu mandato e que tiveram seu ponto mais alto na marcha das mulheres a Washington, baixaram em intensidade. Os companheiros socialistas também nos explicam que destas grandes mobilizações não surgiram organizações para que as mesmas tivessem permanência. Mas isso não significa que o povo esteja derrotado e aceitando Trump. A prova contundente que não é assim foi com as manifestações supremacistas iniciadas em Charlottesville. A esquerda e os setores democráticos ganharam claramente nas ruas. A ultradireita que se alimenta da política de Trump foi enfrentada pela esquerda e sofreu uma derrota aplastante em Boston quando cinquenta mil manifestantes disseram não ao punhado de supremacistas reunidos na cidade.

Por outro lado, embora não haja ainda uma grande resistência nas ruas à política destrutiva da seguridade social, a extensa vanguarda americana tomou como consigna central o “Medicare para todos”, que está entrando com força nos grandes setores sociais ameaçados pela falta de mínimos planos de saída aos quais poderiam apelar.

E por outro lado cresce a consciência social. Pode ser que como no restante do mundo prime centralmente a negação à afirmação de uma alternativa. Mas seguramente a cabeça do povo americano está se abrindo e não fechando. O fato concreto em que este se expressa é que Sanders segue sendo uma alternativa política para um setor da sociedade. Não morreu depois de sua derrota nas internas democratas; pelo contrário, está vivo e é um polo de esperança para o povo pobre incluindo o setor dos afro-americanos.

O discurso de Trump consolida com ele a um setor da população que é aproximadamente cerca de 30% e frente a isso está do outro lado Bernie Sanders e seu discurso de taxar os ricos, defender o Medicare para todos e a revolução política que significa especialmente terminar com o atual sistema de subvenção aos partidos pelas grandes corporações.

3. A crise do regime está expressa numa interessante pesquisa do Washington Post. A mesma diz que na questão política e os partidos a maioria da população pensa que há uma situação similar a que havia nos tempos de Vietnã. “A pesquisa de Washington Post-Universidad de Maryland — realizada nove meses depois da tumultuosa presidência de Trump — revela uma visão claramente pessimista da política estadunidense, desconfiança generalizada dos líderes políticos da nação e sua capacidade de compromisso, e uma erosão do orgulho pela forma em que funciona a democracia”.

Segundo esta pesquisa 71% dos entrevistados pensa que há hoje tantos ou mais altos perigos como nos maiores momentos de perigo (Vietnã) e 40% que pensa que isso já é uma situação normal e não-episódica.

A crise abraça aos dois partidos. A pesquisa diz que quase dois terços dos que veem aos Democratas como a oposição creem que estão “ferindo os princípios básicos do país”, enquanto que uma porcentagem levemente menor no Partido Republicano sente uma ameaça fundamental. Entre os que se opõem a Trump, mais de 75% afirmam que está desrespeitando os princípios básicos da nação.

4. Esta crise padece ser cada vez mais estrutural. No entanto, não necessariamente significa que por este fato possa ocorrer uma mudança na correlação de forças entre as classes. Isso dependerá de que surja nos próximos anos um movimento social forte e se fortaleça uma alternativa política com a qual expressa Sanders.

Um elemento que beneficia por ora a Trump é a melhoria na situação econômica que significa nos EUA um baixo nível de desocupados. Esta melhoria é coincidente com certa recuperação global que ocorreu graças aos violentos planos de ajuste que se aplicaram em todo o mundo. Mas no caso dos EUA não significa seja uma recuperação de seu poder econômico a escala mundial. Parece que está ocorrendo o contrário e parte disso tem a ver com a política internacional de Trump. Sua política internacional global e em particular protecionista que teve como ponto importante a retirada do TTP favoreceu a China que cada vez mais disputa com seu poder econômico com os EUA; na medida em que EUA perde espaço a China avança sobre Ásia, África e América Latina. E esta situação a mais longo ou curto prazo vai a repercutir inevitavelmente sobre a economia americana e a situação social do país.

Há uma situação aberta para construir um programa de transição que enfrenta a crise e construa uma alternativa de poder.

1. A irrupção do socialista independente Bernie Sanders como um polo político é consequência desta situação que está sendo desenvolvida no país do Norte. Nos parece que os socialistas temos que prestar grande atenção a este fenômeno como ao de Corbyn na Inglaterra. Neste país o processo aberto a partir do triunfo de Corbyn no partido trabalhista é mais nítido e contundente que no caso dos EUA. Corbyn é já uma alternativa de poder na Inglaterra e possivelmente ganhe as próximas eleições o que significará uma mudança importante a nível mundial do qual teremos que ver o alcance que tem.

No caso dos EUA uma possibilidade tão concreta não está colocada ainda, ainda que está gestando. É um processo em construção, e o papel que podem cumprir as novas camadas de militantes que apoiaram Sanders e defenderam seu programa pode ser muito importante. E em particular aquele que joga neste processo o DSA (Democratic Socialists of America) que já alcançou os 30 mil militantes depois de sua vitoriosa convenção de agosto em Chicago.

2. As condições objetivas estabeleceram a possibilidade de que a política dos socialistas deixe de ser somente de uma propaganda geral do socialismo, como fizeram durante muito tempo, para converter-se numa política que chegue às massas.

A crise do capitalismo existe nos EUA, mas isso não significa que esteja posto para a agitação o socialismo como sistema alternativo ao capitalismo. Tampouco significa que, como estão fazendo grupos socialistas, seja preciso ter um programa de ação baseado numa consigna prática (na atualidade, Medicare para todos) e como saída o socialismo; ou seja, que no socialismo tudo vai ser distinto e esperar que os trabalhadores e o povo se convençam disso.

É necessário uma política ou um programa de ação e para isso vale a pena recordar o que dizia Trotsky em 1938 numa situação na qual há alguns pontos em comum com a que vivemos agora. No Programa de Transição escreveu que: “A social-democracia clássica, que desenvolveu sua ação numa época em que o capitalismo era progressista, dividia seu programa em duas partes independentes uma da outra: o programa mínimo, que se limitava a reformas no quadro da sociedade burguesa, e o programa máximo, que prometia para um futuro indeterminado a substituição do capitalismo pelo socialismo. Entre o Programa mínimo e o Programa máximo não havia qualquer mediação. A social-democracia não tem necessidade desta ponte porque de socialismo ela só fala nos dias de festa.”

E mais adiante agregava: a IV Internacional não rechaça as do velho programa “mínimo” na medida em que elas conservaram alguma força vital. Defende incansavelmente os direitos democráticos dos trabalhadores e suas conquistas sociais, mas realiza este trabalho no quadro de uma perspectiva correta, real, vale dizer, revolucionária. À proporção que as reivindicações parciais – mínimas – das massas entrem em conflito com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente – e isso ocorre a cada passo, a IV Internacional auspicia um sistema de reivindicações transitórias, cujo sentido é o de dirigir-se cada vez mais aberta e resolutamente contra as bases do regime burguês. O velho “programa mínimo” é constantemente superado pelo programa de transição cujo objetivo consiste numa mobilização sistemática das massas para a revolução proletária.

3. No atual período, nos EUA e na grande maioria dos países não está colocado como tarefa a revolução proletária, já que não vivemos uma situação pré-revolucionária ou revolucionária. No entanto, é um período no qual, embora não se possa ganhar o poder, pode-se ganhar um setor de massas para uma nova alternativa de poder. E para isso, o método com o qual Trotsky escreveu o Programa de Transição tem toda a sua validade. Hoje em dia, as imediatas necessidades e aspirações das massas chocam-se também com a estrutura capitalista que não tem possibilidades de resolvê-las.

No caso dos EUA a consigna de “Medicare para Todos” tem um certo caráter transicional já que se choca com o monopólio das grandes seguradoras de saúde e dos grandes laboratórios farmacológicos. Contudo, há outras consignas ou demandas que embora possam neste momento ter o mesmo caráter de consignas para a agitação e para a ação nos parece que são indispensáveis para responder às necessidades que estão colocadas e com isso acumular forças e ganhar setores dos trabalhadores para construir um poder alternativo.

4. Não pode haver poder alternativo sem um programa de ação ou um sistema de consignas que respondam às necessidades colocadas, embora dentro deste sistema de consignas de ação (como Medicare para todos) e outras mais de agitação propagandística, como dizia Lenin. E há nos EUA como em todos os países, possibilidades de construí-lo porque há demandas colocadas como necessidade para o movimento de massas.

Por exemplo, é preciso passar a limpo o conceito de revolução política do qual fala corretamente Bernie Sanders. Significa um regime político diferente ao velho bipartidarismo que como vimos tem muitas fissuras. Um novo regime político significaria que o voto popular elege o presidente, que é necessário haver um novo sistema de representação política direta que acabe com o domínio dos grandes capitalistas e de suas corporações dos partidos políticos. Isso indubitavelmente não querem nem republicanos nem democratas, mas sim o povo estadunidense está querendo isso.

Por outro lado, já está há bastante tempo na ordem do dia a questão de quem paga os impostos para manter o estado e sua administração; se os ricos ou os pobres. E a consigna de taxar aos ricos e ligá-la à necessidade de que as grandes corporações e bancos abram seus livros de contabilidade para saber seus ganhos também é uma necessidade. Seguramente, há outras consignas importantes para estruturar este sistema e já se deve estar construindo.


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Pedro Micussi