E, entretanto, quão perto
Há três semanas, faleceu Daniel Viglietti, músico e ativista político uruguaio. Publicamos tradução de artigo sobre seu legado.
Quando estávamos começando a digerir o falecimento de Coriún Aharonián, a morte — essa senhora a que o Sabalero tão justamente faltava com o respeito — decidiu aparecer de novo para nos deixar muito mais pobres, não somente seus companheiros de Brecha, mas o Uruguai inteiro. A seguir este outro triste espaço, o que queríamos que nunca chegasse, o dedicado a despedir e homenagear o nosso querido Daniel Viglietti.
As últimas mensagens de Daniel foram urgentes: “Acabo de chegar de La Higuera a Vallegrande” — escrevia –, e alguns dias depois: “Estou saindo de Vallegrande a Santiago, daí a Valparaíso para cantar em uma escola e depois ao Congresso para receber uma homenagem e almoço”. E um pouquinho mais tarde: “Eu, depois o do Che Guevara na Bolívia, de volta em Santiago, cantando e respondendo entrevista. O de Coriún, ainda que sabíamos ser inevitável, foi um golpe muito fundo. A notícia nos chegou em meio aos trabalhos, foi muito duro. Em meio ao ato central de massas de 9 de outubro em Vallegrande, com presença de Evo Morales e García Linera, fiz questão de mencionar a partida de Coriún na coincidência da data”.
Assim foram os últimos dias de Daniel sobre esta terra, porque assim era ele: incansável, solidário, entusiasta utador, amigo e muito consciente da história olhada a partir do presente — o único que reparou na coincidência da morte de Coriún, porque era o único capaz de não esquecer (em suas notas no Brecha ou em seus programas de Tímpano ou Párpado) as datas e feitos históricos que não deveriam jamais ser passadas em branco.
Daniel, sem saber ainda, ia despedindo-se de seus amigos: “Um abraço, saindo para uma rádio e um recital em Quipué. Se você tem amigos em Santiago, meu show é o de segunda-feira . Reserva-me o triste espaço ” — pedia, enquanto percorria de cima a baixo o continente latino-americano. A seguir este outro triste espaço, o que queríamos que nunca chegasse, o dedicado a despedir e homenagear ao nosso querido Daniel.
Seu pai, Cédar Viglietti (1909-1978), era violonista e musicólogo — estudioso do folclore uruguaio e da história do violão. Sua mãe, Lyda Indart (1917-2016), foi uma excelente pianista clássica. Às vezes a genética e a criança têm seus mistérios, mas neste caso é como se algum deus estivesse executando a receita para engendrar a Daniel Viglietti.
Nasceu em 24 de julho de 1939 em Montevidéu. Além da música que absorveu dos pais (e do tio José Indart, que tocava o piano em casas noturnas e hotéis), viu-se muito atraído pela explosão do folclorismo argentino ocorrida até 1950, e sobretudo pela música de Antonio Tormo e Atahualpa Yupanqui. Como ocorreu com tantos uruguaios de sua geração, cresceu sentindo o folclorismo argentino como expressão do “próprio”, ainda que é de supor que os conhecimentos musicológicos de don Cédar devem tê-lo mantido próximo à referência do folclore especificamente oriental. Pelo lado da música erudita, o nome que mais aparece em suas reminiscências é Igor Stravinsky, e isso se nota no desfrute pelo surgimento de dissonâncias num contexto mais bem diatônico e simples, na contenção expressiva, o gosto pelas linhas claras, a preferência pelos ventos e o veto pelos arcos (Viglietti jamais teria admitido os violinos melosos que comprometem algumas das gravações de Zitarrosa, por exemplo). Aperfeiçou-se no violão com Atilio Rapat e, depois, com Abel Carlevaro no Conservatório Nacional — onde também estudou harmonia e canto.
Folclorismo
O “complexo cultural” do folclorismo musical uruguaio era mais sério, artístico e adulto que o pop bailável, e mais responsável que outras músicas sérias, artísticas e adultas, como o tango ou o jazz. “Mais responsável” porque, com relação ao jazz, era um elemento identitário, e em comparação com o tango, costumava lidar com “temas que importam”. Esta apreciação com respeito ao tango pode parecer injusta, mas descendia da noção romântica segundo o qual o homem humilde do campo era a encarnação autêntica do espírito da nação, enquanto que a cultura proletária e pequeno burguesa se sentia contaminada, menos louvável. O homem cosmopolita da cidades, em todo caso, alcançava a arte naquele momento de um processo de depuração intelectual-espiritual, muitas vezes mediado por uma reconexão sublimada com o folclore.
Assim, quando Viglietti deixou sua carreira em ascensão como concertista clássico e começou a se apresentar como cantor folclorista, seguiu atuando num meio prestigioso que merecia a atenção da crítica e que, como contrapartida, implicava para o intérprete-criador o desafio de “dizer coisas”, e fazer isso a partir da exigência de refinamento própria do artista (poeta e músico).
Seu primeiro disco (1963) saiu no momento em que o formato LP começava a se impor no mercado uruguaio. Num mesmo triênio (1962-1964) surgiram os primeiros LP de alguns de seus companheiros de geração (Los Olimareños, Santiago Chalar), amalgamados com os de colegas mais veteranos (Osiris Rodríguez Castillos, Anselmo Grau, Los Carreteros). Entre todos pautaram o desvelar de um pujante panorama de folclorismo local, pronto a enriquecer-se com a entrada em cena de vários nomes mais. O disco de Viglietti expressava em forma especialmente clara a dualidade erudito-popular. Intitulado Canciones folclóricas y seis impresiones para canto y guitarra, tinha de um lado uma coleção de peças folcloristas e do outro o ciclo de “impressões”. Estas eram como Lieder modernos, curiosa e requintada de ares trovadorescos, harmonias e “pintura de palavras” de 1600 e recursos modernistas.
Não eram propriamente música erudita: o modelo do compositor acompanhando-se com o violão estava assimilado à música popular, e o ciclo circulou neste âmbito. Em tal sentido, as impressões pareciam como o trabalho harmonicamente mais original da música popular uruguaia de então, e o seguiriam sendo, junto às criações subsequentes do próprio Viglietti, pelo menos até o amadurecimento de Mateo até o final da década. Frente a isso, chamava a atenção sua disposição de ser tão simples e direto nas zambas e milongas do lado folclorístico. O universo dos textos era rural: as estações do ano, céu, terra, árvores, trigo e a disposição lírico-animista de falar com o vento e com o rio. A arquifamosa Canción para mi América (“dale tu mano al indio”) era a mostra, ainda isolada, da canção de mobilização de massas com fins políticos. A técnica do violão era fabulosa, na limpeza do som, na riqueza de matizes, na agilidade, na ausência de qualquer esforço notório. Esse debut de Viglietti ganhou o Grande Prêmio do Círculo Crítico do Disco.
Protesto
“Canción para mi América” traduzia o impacto que havia tido sobre sobre Viglietti — como em tantos de sua geração — a revolução cubana. Esse marco histórico, combinado com outra série de fatores, canalizou a evolução de vários folcloristas uruguaias para a canção-protesto, tendência consagrada com a mobilizadora participação de uma numerosa delegação local no Encontro Canção Protesto em Cuba, em 1967. Nenhum outro movimento musical calou tão fundo em Uruguai como este, e suas emoções seguem presente para os que viveram isso ou quem absorveram-no posteriormente. Tanto é assim que de alguma maneira os uruguaios dão isso por descontado, como algo natural, quiçá sem precaver-se de forma cabal de sua absurda singularidade: o fato de que, num país colonial, o primeiríssimo escalão do “comercial” em música se corresponda com produtos de forte acento regional, altamente questionadores do sistema econômica e político, com uma atitude que não contempla estritamente os procedimentos comerciais estabelecidos, que se identifica muito mais com a atitude do “artista” — fundida com a do agitador e militante — que com a do “treinador”, e que, nos fatos, resistiu à passagem do tempo. Canções como “A don José”, “Doña Soledad” ou “A desalambrar” estão tão entranhadas na alma coletiva que parecem fenômenos naturais, como se fossem a corticeira ou a colina Pão de Açúcar. Isso distrai de outro fato fundamental: além dessas canções serem reprocessadas das raízes, há um componente altíssimo de invenção e perícia.
A relativa multiplicidade dos nomes da canção-protesto folclorista uruguaia indica que o fenômeno indica que o fenômeno não dependeu da idiossincrasia acidental de determinado músico carismático, mas que foi um fato coletivo, a cooperação do espírito do tempo com a super-abundância de talento característica deste país. Em 1979 Zitarrosa caracterizaria a suas três figuras mais prominentes: “enquanto Viglietti chegava fluidamente aos setores universitários e estudantis em geral, Los Olimareños dialogavam sem esforço com o campesinato, e, eu… talvez achasse a melhor resposta entre os assalariados urbanos”.
A pegada de Viglietti entre o estudantado respondia a alguns dos traços já mencionados de sua música (o refinamento, a erudição). Também teve a ver com que, dessa sorte de músicos, Viglietti foi o mais receptivo aos Beatles, recolocando assim sua atitude ante a música oriunda de países anglófonos e reconsiderando o papel da novidadeira cultura especificamente juvenil e, portanto, a hierarquia da cultura popular urbana. Pájaro Canzani contou o forte que foi para ele ver Viglietti, já então com o cabelo longo e calça jeans, cantando “A desalambrar” no liceu de Fray Bentos no qual estudava. Viglietti foi o folclorista que gostava de forma mais imediata das meninices de formação beat. E mais ainda depois de que, em seu disco Canciones chuecas (1971) incorporou bateria e baixo elétrico, ou depois de que, no ano seguinte, deu a conhecer “Anaclara”, o retrato por excelência da parte feminina desse setor do público (“bufanda rojinegra por la espalda/ minifalda/ anaclara”). Foi muito importante para “desalambrar” o terreno cultural, ou em todo caso para redesenhar as alianças: o “protesto” ganharia espaço também no âmbito beat (sobretudo com Dino), e seria gerado um terreno novo que incorporaria tanto o espírito do rock como o da canção-protesto folclorista. Seria a guia para Los que Iban Cantando e muitos dos demais músicos que conformaram o Canto Popular durante a ditadura.
Viglietti representou também a radicalidade. Não foi o primeiro nem o único músico a assumir uma adesão à luta armada, mas foi o mais massivo de todos. Em sua “fase tupamara” (ele a chamou assim, a posteriori), seus discos Canto libre (1970) e Canciones chuecas (1971) podem ser vistos como panfletos de recrutamento, e o repertório (de composição própria e alheia) cobre os tópicos que correspondem: sumário doutrinal (as canções de Salerno), identificação do inimigo e despertar de maus sentimentos até ele (“Ding-Hug, juglar”, “Cantaliso en el bar”), enaltecimento do combatente (“La canción de Pablo”, “Muchacha”), insuflamento de decisão, coragem e entusiasmo (“Esa canción nombra”, “A una paloma”, “Canto libre”, “Cielito de tres por ocho”), despertar de indignação e desejos vingativos ao embandeirar companheiros mortos (“Coplas de Juan Panadero”, “El Chueco Maciel”, “Sólo digo compañeros”), compaixão pelas vítimas inocentes da injustiça e a opressão (“Ding-Hug, juglar”, “Negrita Martina”), identificação de aliados reais ou potenciais (“Me gustan los estudiantes”, “Gurisito”).
A abordagem totalmente franca não deveria permitir os eufemismos e generalizações (que, de todos os modos, abundam). Não se trata de mera “coerência”, “humanismo”, “valores universais”, “a eterna luta do bem contra o mal”. O seu foi a defesa de uma estratégia específica — a luta armada guerrilheira — com o objetivo de derrubar os regimes de governo e princípios de organização sociopolíticas e econômicas de países latino-americanos submetidos ao domínio imperial estadunidense. É a senda que “nos mostró el Che”. “Papel contra balas no puede servir.” “Mi mejor luto será/ echarme un fusil al hombro/ y al monte irme a pelear.” A “mirada” se torna “luz amartillada”. “Qué joven la puntería.” “Cielo negro, cielo guerra, y después un cielo nuevo.”
Música, franqueza e valentia
Como bom aluno de Carlevaro, Viglietti quando tocava ficava imóvel na posição que lhe assegurava o mínimo de tensão muscular. Não havia lugar para “deixar-se levar” pela própria música. O seu lugar era a concentração máxima para controlar cada detalhe da interpretação, que costuma ser a postura dos intérpretes de música erudita.
Tampouco o ouvinte podia “deixar-se levar” no sentido mais ligeiro: não são canções de divertimento, mas são canções empenhadas em canalizar em forma concentrada as energias de uma emoção fortíssima. A maioria da música popular massiva, que enche estádios, funciona melhor como uma desintoxicação: alguém purga os demônios depois de saltar e bailar um par de horas, e sai mais leve. Mas o de Viglietti, ao contrário, recarregava, depositava um sedimento na alma do ouvinte, que vai seguir aí depois da saída. Nesse sentido, sua música era inteira com seus textos e seus propósitos. O controle interpretativo era essencial para calibrar esse efeito. Observem “A una paloma” (letra de Idea Vilariño). A composição está baseada num giro harmônico que se repete a cada estrofe do texto. Essa estrutura giratória é importante para fundamentar a transformação da “palomita” [pombinha] em “falcão”: o que soava no início como uma canção lírica vai se convertendo em enérgica canção guerreira.
O intérprete tem que ser capaz de circular nos dois extremos, e Viglietti era capaz de fazê-lo em forma intensíssima: o início (“Palomita blanca/ de ojito rosado”) está cantado com essa ternura cálida irresistível, que é impossível não amar (a mesma com que cantava “Anaclara”), respaldava na profundidade envolvente de sua voz grave. Mas depois quando vocifera “sacale los ojos (…) y volvete halcón”, o cantor se tornou um bicho obscuro, agressivo e mortífero, com a emoção em ebulição, a voz quase gritada. Para que funcionasse essa evolução havia que dosificá-la: se o fim fosse apressado perdia efeito, se fosse atrasado não seria construído o mesmo apogeu. E tampouco podia ser um crescendo linear, porque se torna previsível e perde interesse.
Assim, o processo de crescimento está cheio de pequenos retrocessos e de variantes expressivas diversas: são oito vezes a mesma linha melódica e nenhuma é igual a outra, nunca se repete o mesmo truque. (Se escutamos distintas gravações ao vivo de Viglietti pode-se constatar, ademais, que estas microvariantes que ele costumava fazer eram improvisadas, ainda que a improvisação fosse feita a partir de uma concentração que manteria o todo sempre sob controle). O final da canção não chega a conter a catarse: “y volvete halcón” vem sem resolução harmônica, apoiado por um acorde apagado, e segue nada mais que o silêncio. Acabou-se, agora ajeita-se como possas. Por algo é que nos espetáculos ao vivo de Viglietti, depois de suas canções mais poderosas e mobilizadoras costumava-se seguir uma massa fervente de gritos e aplausos.
Viglietti podia ser vários personagens vocais: terno e próximo, satiristas mordaz, guerreiro, o indignado embargado pela emoção. Às vezes os distintos personagens se alternavam rapidamente, como em “A desalambrar”. Aqui, primeiro vem a voz grave, cavernosa, que entabula a primeira comunicação e estabelece a seriedade do assunto (“Yo pregunto a los presentes/ si no se han puesto a pensar”). Em seguida vem a proclamação, oitava acima, com o registro metálico, estentor: “que esta tierra es de nosotros/ y no del que tenga más”. Já o melisma que resolve cada frase (“má-a-a-a-a-a-as”) de imediato obscurece o timbre, que se torna mais aveludado, muito menos emotivo: é preciso por o arco final à frase e levá-la à tônica, mas não não pode se dar maior projeção ao ornamento que ao slogan central.
A música de Viglietti é incorruptível, praticamente impossível de desviar ou diminuir. Somos impedidos por sua austeridade, seus finais abruptos, seu caráter implacável. É uma música de alcance massivo que é impossível utilizar para um jingle, como música de fundo ou para uma paródia assassina do tipo guarango. Em sua simplicidade, em sua alusão a clichês diversos, está a poucos passos de distância da ligeireza, e no entanto eleva uma barreira impossível de transpor ante a possibilidade de uma escuta ligeira.
Exílio e depois
Em 1969 houve chamativos atos de censura contra sua música (em especial a interrupção de uma transmissão televisiva de “A desalambrar”). Em 1972, foi levado preso, sem motivo maior que suas canções, e esteve detido por algumas semanas. Pouco depois, pareceu-lhe prudente exilar-se. Instalou-se na França e percorreu o mundo participando em campanhas contra a ditadura, pelos direitos humanos ou em apoio a processos revolucionários — o de Nicarágua, por exemplo. Sua música e suas atividades só chegavam ao Uruguai de forma clandestina: seus discos foram retirados da circulação comercial, não se passavam na rádio, e os que tinham exemplares tratavam de tê-los escondidos ou disfarçados porque se temia que pudessem ser qualificados como posse de material subversivo.
Sua influência permaneceu e teve consequências. Foi notada inclusive antes do exílio, sobretudo num precoce Numa Moraes, que foi diretamente aluno de Viglietti, foi tomado como principal modelo no início de sua carreira, e teve que se exilar mais ou menos ao mesmo tempo que ele. Foi um modelo também para os músicos que emergiram depois do golpe de Estado. A influência esteve pautada por alguns dos seguintes fatores: a afinidade ideológica (anarquistas e pró-luta armada), a identificação com a noção do artistas cem por cento dedicado a uma causa política, o gosto simultâneo pelo folclore e pelo rock, a assimilação do princípio formalista de uma canção mobilizadora na qual os componentes “formais” foram inextricáveis do “conteúdo” (ou seja, uma propensão ao modernismo político e ao experimentalismo), ou a mera atração por uma música popular folclorista com um altíssimo grau de refinamento e depuração formal.
Somando tudo, é um leque muito amplo e bastante fértil. Houve seguidores bastante decididos e diretos, como Jorge Lazaroff, Jorge Bonaldi, Luis Trochón ou Rubén Olivera — os que radicalizaram, incorporaram e adaptaram suas respectivas personalidades e ideias, procedimentos que aprenderam de Viglietti. Podem-se distinguir traços de sua influência em músicos tão distintos como Leo Maslíah e Jaime Roos — ambos professaram em distintas ocasiões sua admiração. Darnauchans me disse que seu gosto pelos modalismos medievais e as harmonias renascentistas procederam em primeira instância de Viglietti, e depois a partir disso se aproximou às fontes trovadorescas originais. Num sentido mais genérico teria havido uma quantidade de cantores que se viram estimulados a estudar violão clássica mobilizados pelo modelo de Viglietti.
Desde que saiu do país, suas composições diminuíram muito em quantidade. A que apareceu em discos ao vivo durante ou após o exílio marca uma média de cerca de duas músicas por ano. Em 1984, ele conseguiu retornar à região e foi recebido como herói, tanto no Uruguai como na Argentina. Em 1992, ele lançou Esdrújulo, seu único álbum de estúdio com suas próprias canções após Canciones chuecas (1971), com 15 novas composições. Seu último disco foi Devenir (2004), gravado ao vivo, que trouxe quatro novas composições, e que creio terem sido as últimas que ele deu a conhecer. Sua produção do exílio já não exerceu uma influência notável. Contém muitos temas preciosos. Ele se aventurou em terras novas e mais subjetivas, e ele fez isso com a criatividade e a profundidade usuais.
Sempre me deixou um gosto um pouco incômodo a noção de que incursionava nesses terrenos como que pedindo desculpas, justificando a seu público a licença que tomava ao abandonar a postura de cantor-cem-por-cento-político, que tampouco sei se alguém efetivamente cobrava. E por outro lado, me apenou um pouco ver um cantor tão político não saber bem como se colocar frente ao mundo concreto em que vivia, e talvez não conseguir expressar-se em canções sobre tantos problemas que hoje temos que enfrentar.
Muitos jovens vêm descobrindo e perpetuando “Negrita Martina” e “Gurisito”, duas músicas extremamente ternas que, precisamente, não mencionam o programa de guerrilha.
O próprio Daniel nunca deixou de cantar suas canções “tupamaras”, que no novo contexto, suscitavam um estranhíssimo e interpelante choque semiótico, já que na atualidade não vislumbramos a emergência de um processo revolucionário pelas vias as quais ele aludia. O que se aplaudia, o que movia aos ouvintes nessas canções quando ele cantava em seus espetáculos anuais no teatro Solís ou em algum dos muitos atos solidários nos quais nunca deixou de participar com generosidade e entrega? O heroísmo e a valentia de um músico que se atreveu a por em poesia, sem ambiguidade alguma, o que muitos pensavam mas poucos se atreviam a expressar em forma explícita? A incrível habilidade, sensibilidade, empatia, conexão, com que plasmou suas canções-mensagens? O fundamento de amor pelos desvalidos, de esperança de um mundo melhor e de justiça para a maioria — além do acordou, ou não, com o caminho sugerido para alcançar esses fins? A nostalgia dos tempos em que os problemas pareciam mais simples e as soluções mais próximas? O encanto com a expressão viva de tal época, que ainda contemplada com distância e superação segue tendo seus atrativos, ainda que seja estéticos? O fato de que segue tendo ‘caídos’, e que embora essas canções tenham sido escritas há quarenta anos, quando as ouvimos hoje nos falam, por exemplo, de Santiago Maldonado? A própria poética, extrínseca mas presente, que o devir histórico impôs ao suscitar todas essas contradições, e a necessidade de pensar nessas contradições para traçar os novos caminhos da luta? E sim, companheiros. Para amanhecer.
(Artigo publicado originalmente no Viento Sur e traduzido por Charles Rosa para a Revista Movimento)