Hitler é filho de Lênin?
Fazer da história um destino inapelável é uma forma pouco sofisticada de desresponsabilizar os crimes.
Simon Montefiore é um curioso historiador tornado romancista, que se especializou na história russa e tem produzido biografias sobre os Romanov e sobre Stalin (“A Corte do Czar Vermelho”, publicado em Portugal). Mas, ao contrário do que manda o ofício do historiador, Montefiore exibe uma relação sentimental com os seus biografados, definindo-os por traços que não podem ser mais do que atribuições hipotéticas e subjectivas. Assim, o seu fascínio por Stalin leva-o a descrevê-lo como “enérgico e vaidoso” (p.23), “loquaz, sociável e um excelente cantor” (p.24) que “zumbia de energia sensitiva” (p.65), sendo um “político superinteligente e dotado” (p.24), para chegar a afirmar que “a base do poder de Stalin dentro do partido não era o medo: era o encanto” (p.64), o que a história parece contrariar.
Na vertigem dos cem anos da revolução de Outubro, o nosso romancista acrescentou a esta história-socialite uma outra filosofia, a da história-destino. Em artigo no New York Times, que merece certamente ser destacado no Observador, deu voz a uma ideia circulante e cómoda: “Sem Lênin não teria havido Hitler”. Ele explica-se: “Sem a revolução russa de 1917, Hitler teria acabado como um pintor de postais em algum das lojas onde começou. Sem Lênin, nada de Hitler – e o século XX tornar-se-ia inimaginável. De facto, mesmo a geografia da nossa imaginação se tornaria inimaginável.” É sempre uma aventura imaginar o inimaginável que a imaginação não consegue descrever. Mas Montefiore vai disparado e todo o século XX mudou na sua fantasia: “Mao, que recebeu uma grande ajuda soviética nos anos 1940, não teria conquistado a China, que talvez ainda fosse dirigida pela família de Chiang Kai-Chek. As inspirações que iluminaram as montanhas de Cuba e as selvas do Vietname nunca teriam acontecido. Não teria havido Guerra Fria.”
É melhor pararmos antes que nos diga que, sem Lênin, nunca teria havido uma cápsula a viajar até à Lua ou que Éder não teria marcado o golo da vitória no campeonato europeu. De facto, a curiosidade desta narrativa sobre o destino cósmico é que é estritamente instrumental e portanto ideológica: em vez de analisar os factos e os processos sociais e políticos, Montefiore quer atribuir culpas e ajustar contas e escolhe para isso atrabiliariamente os seus alvos. Ora, a falsidade de tais propósitos é grotesca: se o nazismo resulta da vontade de sectores importantes do capital alemão de destruírem os movimentos populares que o ameaçavam na Alemanha, e que foram apoiados pelo impacto da revolução em Petrogrado, isolar o nazismo como uma irritação anti-soviética é desculpá-lo ou, pior, ignorar que o mesmo sistema de acumulação de capital já tinha gerado a escravatura, o colonialismo e bastas ditaduras ocidentais. O capitalismo foi fascista sempre que precisou de o ser.
Assim, a história é sempre uma escolha: em todos os momentos, encontra bifurcações, alternativas possíveis que dependem da vontade dos actores sociais, da relação de forças e das estratégias seguidas. Fazer da história um destino inapelável é uma forma pouco sofisticada de desresponsabilizar os crimes, neste caso os de Hitler, para nem discutir a esfusiante narrativa sobre o século XX com a eternidade da família Chiang Kai-Chek ou com Fidel Castro a desaparecer na Sierra Maestra e os casinos de Baptista e da Mafia a prosperarem até aos dias de hoje.
O problema suplementar desta história fantasiosa é que nunca tem um princípio: se Hitler e Stalin são filhos de Lênin, este é filho de quem? Dos Romanov? De Marx? E Marx é filho de Hegel, Hegel é filho de Napoleão, este de Maria Antonieta, esta de Mazarino, este de Alexandre Dumas, este do iluminismo? Chegamos a Gengis Khan ou a Júlio César? A Cristo? Uma história ideológica é sempre uma mentira patética.
(Artigo publicado originalmente em blogues.publico.pt)