Leon Trotsky: As Lições de Outubro
As Lições de Outubro foram escritas em setembro de 1924 como prefácio a um volume dos escritos de Leon Trotsky de 1917.
Reproduzimos aqui As Lições de Outubro, que foram escritas por Leon Trotsky em setembro de 1924 como prefácio a um volume dos seus escritos de 1917. Como o texto é extenso, ele está separado em capítulos que podem ser acessados clicando nos itens abaixo:
- É Preciso Estudar Outubro
- A Ditadura Democrática do Proletariado e do Campesinato: Fevereiro e Outubro
- A Guerra à Guerra e o Defensismo
- A Conferência de Abril
- As Jornadas de Julho, a Sublevação de Kornilov, a Conferência Democrática e o Pré-Parlamento
- Em Torno da Revolução de Outubro
- A Insurreição de Outubro e a Legalidade Soviética
- Sovietes e Partido na Revolução Proletária
- Duas Palavras Sobre Este Livro
1. É Preciso Estudar Outubro
Se é verdade que na revolução de Outubro tivemos sorte, outro tanto não se poderá dizer do seu lugar na nossa literatura. Ainda não dispomos de uma única obra que dê um quadro geral da revolução de Outubro, fazendo sobressair os seus principais momentos do ponto de vista político e organizativo. Além disso, ainda não foram editados os materiais que caracterizam os diferentes aspectos da preparação da revolução ou a própria revolução. Publicamos muitos documentos e materiais sobre a história da revolução e do Partido, antes e depois de Outubro; todavia, especificamente a Outubro, consagra-se muito menos atenção. Realizado o golpe de força, parece que decidimos nunca mais ter que o repetir; parece que não esperávamos uma utilidade directa do estudo de Outubro e das condições da sua preparação imediata, quanto às tarefas urgentes de organização ulterior.
Contudo, semelhante apreciação, mesmo que seja em parte inconsciente, está profundamente errada, revestindo, além do mais, um carácter de estreiteza nacional. Se já não temos que repetir a experiência da revolução de Outubro, isto não significa que esta experiência nada nos tenha a ensinar. Somos uma parte da Internacional; ora o proletariado dos outros países tem que resolver ainda o seu problema de Outubro; e no decurso do ano passado tivemos provas bastante convincentes de que os partidos comunistas mais adiantados do Ocidente, não só não assimilaram a nossa experiência, como nem sequer a conhecem do ponto de vista dos factos.
Na verdade, pode-se fazer notar que é impossível estudar Outubro e mesmo editar os materiais que lhe dizem respeito, sem levar de novo a exame as antigas divergências. Porém, seria muito miserável abordar a questão de tal forma. Os desacordos de 1917 eram evidentemente muito profundos e estavam longe de ser fortuitos. Mas seria muito mesquinho tentar agora fazer deles uma arma de luta contra aqueles que então se enganaram; e mais inadmissível seria ainda que, por considerações de ordem pessoal, se escamoteassem os problemas capitais da revolução de Outubro, de uma importância internacional.
O ano passado sofremos duas penosas derrotas na Bulgária: primeiro, o P. C. B., por considerações doutrinárias fatalistas, deixou escapar um momento excepcionalmente favorável a uma acção revolucionária (levantamento dos camponeses depois do golpe de força de Tsankof, em Junho); a seguir, esforçando-se por reparar o erro, lançou-se na insurreição de Setembro sem ter preparado as suas premissas políticas e organizativas. A revolução búlgara devia ser uma introdução à revolução alemã. Infelizmente, esta deplorável introdução teve um desenvolvimento ainda pior na própria Alemanha. No segundo semestre do ano passado, observamos neste país uma demonstração clássica da forma como se pode deixar escapar uma situação revolucionária excepcional, de uma importância histórica mundial. Também as experiências búlgara e alemã não foram objecto de uma apreciação suficientemente completa e concreta. O autor destas linhas traçou o esquema do desenvolvimento dos acontecimentos alemães do ano passado (ver os capítulos “A uma viragem” e “A etapa que atravessamos” do opúsculo “O Oriente e o Ocidente”). Tudo o que se passou desde então confirmou inteiramente este esquema. Ninguém tentou dar outra explicação. Não nos basta porém um esquema; é preciso um quadro completo, com base em factos, do desenvolvimento dos acontecimentos da Alemanha no ano passado, um quadro que esclareça as causas desta penosa derrota.
Todavia, é difícil pensar numa análise dos acontecimentos da Bulgária e da Alemanha, quando ainda não traçámos um quadro político e táctico da revolução de Outubro. Ainda não nos apercebemos exactamente do que fizemos e de como o fizemos. Depois de Outubro, parecia que os acontecimentos na Europa se desenvolveram por si próprios, com tal rapidez, que nem sequer nos deixariam tempo para assimilar teoricamente as lições de Outubro. Verificou-se, porém, que na ausência de um partido capaz de o dirigir, o golpe de força proletário tornava-se impossível. O proletariado não pode conquistar o poder através de uma insurreição espontânea: mesmo num país industrialmente muito desenvolvido e altamente culto, como a Alemanha, a insurreição espontânea dos trabalhadores (em Novembro de 1918) apenas conseguiu transferir o poder para as mãos da burguesia. Apoiando-se nas suas riquezas, na sua “cultura”, nas suas inúmeras ligações ao antigo aparelho estatal, uma classe possidente é capaz de conquistar o poder arrancado a outra classe possidente. Quanto ao proletariado, nada lhe pode substituir o Partido. A partir de meados de 1921 é que começa verdadeiramente o período de organização dos Partidos Comunistas (“luta pelas massas”, “frente única”, etc.). As tarefas de Outubro recuam então para longe. Simultaneamente, o estudo de Outubro é relegado para último plano. O ano passado defrontámo-nos com as tarefas da revolução proletária. Já é tempo de reunir todos os documentos, de editar todos os materiais e proceder ao seu estudo.
Embora, como é evidente, saibamos que cada povo, cada classe e até cada partido se educam principalmente a partir da sua própria experiência, de modo nenhum isto significa que a experiência dos outros países, classes e partidos seja de pouca importância. Sem o estudo da grande Revolução Francesa, da Revolução de 1848 e da Comuna de Paris, nunca teríamos realizado a revolução de Outubro, mesmo com a experiência de 1905. Mas, para o estudo da revolução vitoriosa de 1917, nem sequer realizamos um décimo do trabalho que dispendemos para a de 1905. É certo que não vivemos num período de reacção, nem na emigração. Em contrapartida, as forças e os meios de que actualmente dispomos não podem ser comparados com os desses penosos dias. É preciso pôr na ordem do dia, no Partido e em toda a Internacional, o estudo da revolução de Outubro. É preciso que todo o nosso Partido e particularmente as Juventudes, estudem minuciosamente a experiência de Outubro, que nos forneceu uma verificação incontestável do nosso passado e nos abriu uma ampla porta para o futuro. A lição alemã do ano passado não só é uma séria lembrança, mas também um ameaçador aviso.
Na verdade, pode-se dizer que o conhecimento mais profundo do desenvolvimento da revolução de Outubro não teria sido para o nosso Partido alemão uma garantia de vitória. Mas semelhante raciocínio não adianta nada. É certo que o estudo da revolução de Outubro, só por si, é insuficiente para nos garantir a vitória nos outros países; contudo, é possível que surjam situações em que todas as premissas da revolução existem, salvo uma direcção clarividente e resoluta do Partido, baseando-se na compreensão das leis e dos métodos da revolução. Tal era precisamente a situação na Alemanha, o ano passado. Pode vir a repetir-se noutros países. Ora, para o estudo das leis e dos métodos da revolução proletária, não há fonte mais importante, até agora, do que a nossa experiência de Outubro. Os dirigentes dos Partidos comunistas europeus que não estudassem, de maneira crítica e em todos os pormenores, a história do golpe de força de Outubro, parecer-se-iam com esse chefe que, ao preparar-se actualmente para novas guerras, descurasse a experiência estratégica, táctica e técnica da última guerra imperialista. Semelhante chefe votaria à derrota os seus exércitos.
O Partido é o instrumento essencial da Revolução proletária. A nossa experiência de um ano (de Fevereiro de 1917 a Fevereiro de 1918) e as experiências complementares da Finlândia, Hungria, Itália, Bulgária e Alemanha, quase permitem erigir em lei a inevitabilidade de uma crise no Partido, quando este passa do trabalho de preparação revolucionária à luta directa pelo poder. Regra geral, as crises no Partido surgem a cada viragem importante, como prelúdio ou consequência. É que cada período de desenvolvimento do Partido tem os seus traços especiais, exigindo determinados hábitos e métodos de trabalho. Uma viragem táctica acarreta uma ruptura mais ou menos importante nestes hábitos e métodos: nela reside a causa directa dos choques e das crises: “A uma viragem brusca da história – escrevia Lenine em Julho de 1917 – acontece muito frequentemente, até aos partidos avançados, não se chegarem a habituar à nova situação num maior ou menor espaço de tempo, repetindo as palavras de ordem que, embora justas ontem, hoje perderam todo o seu sentido; coisa que sucede tão “subitamente” como a viragem histórica”. Daí um perigo: se a viragem tiver sido demasiadamente brusca ou inesperada e o período posterior tiver acumulado demasiados elementos de inércia e de conservadorismo nos órgãos dirigentes do Partido, este revelar-se-á incapaz de assumir a direcção no momento mais grave, para o qual se preparou durante anos ou dezenas de anos. O Partido deixar-se-á corroer por uma crise e o movimento processar-se-á sem objectivo, preparando a derrota.
Um partido revolucionário está submetido à pressão de outras forças políticas. Em cada período do seu desenvolvimento elabora os meios para lhes resistir e as recalcar. Nas viragens tácticas, que comportam reagrupamentos e fricções interiores a sua força de resistência diminui. Daí a possibilidade constante de se desenvolverem consideravelmente os reagrupamentos do partido, formados pela necessidade de viragem táctica, e se tornarem uma base de diferentes tendências de classes.
Se, a cada viragem táctica importante, a observação que acabamos de fazer é justa, é-o tanto mais no que toca às grandes viragens estratégicas. Em política, entende-se por táctica, por analogia com a ciência da guerra, a arte de orientar operações isoladas; por estratégia, a arte de vencer, isto é, conquistar o poder. Não fazíamos vulgarmente esta distinção antes da guerra, na época da II Internacional, limitando-nos à concepção da táctica social-democrata. E não era por obra do acaso: a social-democracia tinha uma táctica parlamentar, sindical, municipal; cooperativa, etc. A questão da combinação de todas as forças e recursos, de todas as armas para alcançar a vitória sobre o inimigo, não se levantava na época da II Internacional, pois esta não fixava como tarefa prática a luta pelo poder. Depois de um longo interregno, a Revolução de 1905 pôs novamente na ordem do dia as questões essenciais, as questões estratégicas da luta proletária, garantindo com isto enormes vantagens aos social-democratas revolucionários russos, quer dizer, aos bolcheviques. Em 1917 começa a grande época da estratégia revolucionária, primeiro para a Rússia depois para toda a Europa. É evidente que a estratégia não impede a táctica: as questões do movimento sindical, da actividade parlamentar, etc., longe de desaparecerem do nosso campo visual, adquirem agora uma importância diferente, como métodos subordinados da luta combinada pelo poder. A táctica está subordinada à estratégia.
Se, habitualmente, as viragens tácticas produzem fricções interiores no Partido, com mais forte razão as viragens estratégicas devem provocar abalos muito mais profundos. Ora, a viragem mais brusca é aquela em que o Partido do proletariado passa da preparação, propaganda, organização e agitação para a luta directa pelo poder, à insurreição armada contra a burguesia. Tudo o que há de irresoluto, cético, conciliador e capitulacionista no interior do Partido, ergue-se contra a insurreição, busca fórmulas teóricas para a sua oposição, encontrando-as já preparadas nos adversários de ontem, os oportunistas. Ainda vamos ter de observar muitas vezes este fenómeno.
No período de Fevereiro a Outubro, ao levar a efeito um largo trabalho de agitação e organização das massas, o Partido fez um último exame, uma derradeira escolha da sua arma antes da batalha decisiva. Durante e após Outubro, verificou-se o valor desta arma numa operação de vasta envergadura. Dedicarmo-nos agora a apreciar os diferentes pontos de vista sobre a Revolução em geral e a Revolução russa em particular, passando em silêncio a experiência de 1917, seria ocuparmo-nos com uma escolástica estéril e não com uma análise marxista da política. Seria agir à laia dessas pessoas que discutem as vantagens de diferentes métodos de natação, mas se recusam obstinadamente a encarar o rio onde estes métodos são aplicados pelos nadadores. Assim como é quando o nadador salta para a água, que melhor se pode verificar o método de natação, também para a verificação dos pontos de vista sobre a Revolução não há nada que chegue à sua aplicação durante a própria Revolução.
2. A Ditadura Democrática do Proletariado e do Campesinato: Fevereiro e Outubro
Pelo seu desenvolvimento e desenlace, a Revolução de Outubro vibrou um formidável golpe na paródia escolástica do marxismo, muito divulgada nos meios social-democráticos russos (a começar pelo Grupo para a Emancipação do Trabalho) e que encontrou nos mencheviques a sua expressão mais perfeita. Este pseudo-marxismo consistia essencialmente em transformar o pensamento condicional e limitado de Marx: Os países adiantados mostram aos países atrasados a imagem do seu desenvolvimento futuro, numa lei absoluta, supra-histórica, na qual aquele se esforçaria por basear a táctica do Partido da classe operária. Naturalmente que, com esta teoria, seria impossível levantar a questão da luta do proletariado russo pelo poder, enquanto os países economicamente mais desenvolvidos não tivessem dado o exemplo, criando, por qualquer forma, um precedente. Não há dúvida que cada país atrasado encontra alguns dos traços do seu futuro na história dos países adiantados; mas nunca se trata de uma repetição geral do desenvolvimento dos acontecimentos. Muito pelo contrário, quanto mais mundial fosse o carácter revestido pela economia capitalista, tanto mais especial seria o carácter adquirido pela evolução dos países atrasados, onde os elementos retardatários se combinavam com os mais modernos elementos do capitalismo. No seu prefácio à Guerra Camponesa, Engels escrevia: “Numa certa etapa – que não surge necessariamente ao mesmo tempo em toda a parte ou num grau idêntico de desenvolvimento a burguesia começa a notar que o seu parceiro, o proletariado, a ultrapassa”. A evolução histórica forçou a burguesia russa a chegar a esta conclusão mais cedo e mais completamente do que qualquer outra. Já nas vésperas de 1905 Lenine tinha expresso o carácter especial da Revolução russa na fórmula da ditadura democrática do proletariado e do campesinato. Tal como se viu pelo curso ulterior dos acontecimentos, esta fórmula, só por si, apenas podia ter importância como etapa a caminho da ditadura socialista do proletariado, apoiando-se no campesinato. De forma inteiramente revolucionária, profundamente dinâmica, a questão era posta por Lenine em radical oposição ao esquema menchevista, segundo o qual a Rússia só poderia aspirar a repetir a história dos povos adiantados, com a burguesia no poder e a social-democracia na oposição. Certos círculos do nosso Partido, porém, davam ênfase, na fórmula de Lenine, não à palavra “ditadura”, mas à palavra “democrática”, que opunham à palavra “socialista”. O mesmo era dizer que na Rússia, pais atrasado, só a Revolução democrática era concebível e que, desta feita, só poderíamos enveredar pela estrada do socialismo atrás da Inglaterra, da França e da Alemanha. Mas este ponto de vista resvala inevitavelmente no menchevismo, o que ficou nitidamente demonstrado em 1917, quando se puseram as tarefas da Revolução, não como questões de prognóstico, mas sim como questões de acção.
Nas condições da Revolução, querer realizar por completo a democracia contra o socialismo (considerado prematuro), seria resvalar, politicamente, da posição proletária para a posição pequeno-burguesa, passar para a ala esquerda da Revolução nacional.
Considerada à parte, a Revolução de Fevereiro era uma revolução burguesa. Mas como revolução burguesa, era demasiadamente tardia, não encerrando em si nenhum elemento de estabilidade. Dilacerada por contradições que imediatamente se manifestaram pela dualidade de poder, deveria transformar-se em introdução directa à Revolução proletária – o que veio a acontecer – ou então, sob um regime de oligarquia burguesa, lançar a Rússia num estado semi-colonial. Por conseguinte, o período consecutivo á Revolução de Fevereiro poderia ser considerado quer como um período de consolidação, de desenvolvimento ou de conclusão da Revolução democrática, quer como um período de preparação da Revolução proletária. O primeiro ponto de vista não só foi adotado pelos mencheviques e os s.r.(1), como por um certo número de dirigentes bolcheviques. Todavia, estes distinguiam-se dos mencheviques e dos s.r. pelo esforço com que pretendiam levar o mais possível para a esquerda a Revolução democrática. Mas no fundo o seu método era o mesmo: consistia em exercer pressão sobre a burguesia dirigente, embora não saindo do quadro do regime democrático burguês. Se esta política tivesse triunfado, a Revolução ter-se-ia desenvolvido fora do nosso Partido, não se tratando, no fim de contas, de uma insurreição das massas operárias e camponesas dirigida pelo Partido, mas sim de Jornadas de Julho numa vasta escala, quer dizer, de uma catástrofe.
É evidente que a consequência directa desta catástrofe teria sido a destruição do Partido. Por aqui se vê toda a profundidade das divergências que então existiam.
A influência dos mencheviques e dos s.r. durante o primeiro período da Revolução nas massas pequeno-burguesas, sobretudo camponesas, da população russa revela a falta de maturidade da revolução.
Nas condições especiais criadas pela guerra, foi precisamente esta falta de maturidade que deu aos revolucionários pequeno-burgueses, defensores dos direitos históricos da burguesia no poder, a possibilidade de dirigir o povo, pelo menos aparentemente. O que não significa que a Revolução russa tivesse necessariamente de trilhar a via que na realidade veio a tomar de Fevereiro a Outubro de 1917. Tal via não resultava só das relações de classe, mas também das condições temporárias que a guerra criou. Graças à guerra, o campesinato viu-se organizado e armado, sob forma de um exército de milhões de homens. Antes que o proletariado tivesse tempo de se organizar sob a sua bandeira, para arrastar atrás de si as massas rurais, os revolucionários pequeno-burgueses tinham encontrado um apoio natural no exército camponês revoltado contra a guerra. Com todo o peso deste numeroso exército, do qual tudo dependia diretamente, exerceram pressão sobre o proletariado, chegando a arrastá-lo atrás de si, nos primeiros tempos. A marcha da Revolução poderia ter sido diferente nas mesmas bases de classe, como demonstram, acima de tudo, os acontecimentos que precedem a guerra. Em Julho de 1914, greves revolucionárias que levaram mesmo a combates de rua, abalam Petrogrado. A direcção deste movimento pertencia incontestavelmente à organização clandestina e à imprensa legal do nosso Partido. Na luta directa contra os liquidacionistas e os partidos pequeno-burgueses em geral, o bolchevismo consolidava a sua influência. O desenvolvimento do movimento significou, acima de tudo, o crescimento do Partido bolchevique: se tivessem sido instituídos, os Sovietes dos deputados operários de 1914 teriam sido provavelmente bolcheviques, desde o início. O toque de alvorada para a campanha foi dado sob a direcção dos Sovietes urbanos, dirigidos também pelos bolcheviques. O que não quer necessariamente dizer que os s.r. tenham perdido logo toda e qualquer influência nas campanhas; de acordo com todas as previsões, a primeira etapa da Revolução proletária dever-se-ia transpor sob a bandeira dos narodniki. Mas estes ver-se-iam forçados a adiantar a sua ala esquerda para ficar em contacto com os Sovietes bolcheviques das cidades. Também neste caso, a saída directa da insurreição teria dependido, sobretudo, do estado de espírito e da conduta do exército ligado ao campesinato. É impossível e, aliás, inútil tentar agora adivinhar se o movimento de 1914-1915 teria conduzido à vitória, no caso de não ter rebentado a guerra. É muito provável, porém, que, se a Revolução vitoriosa se tivesse desenvolvido na via que os acontecimentos de Julho de 1914 inauguraram, o derrube do czarismo tivesse provocado a chegada ao poder dos Sovietes operários revolucionários que, por intermédio (nos primeiros tempos) dos narodniki de esquerda, arrastaria na sua órbita as massas camponesas.
A guerra interrompeu o movimento revolucionário, adiou-o, acelerando-o depois extremamente. Sob a forma de um exército de vários milhares de homens, a guerra criou para os partidos pequeno-burgueses não só uma base social, como, inesperadamente, uma excepcional base de organização: com efeito, é difícil transformar-se o campesinato, mesmo quando se revela revolucionário, em base de organização. Apoiando-se no exército, nessa organização já formada, os partidos pequeno-burgueses impunham-na ao proletariado, encerrando-o nas malhas do defensismo. Aí está porque Lenine, logo de inicio, combateu impiedosamente a antiga palavra de ordem “ditadura democrática do proletariado e do campesinato”, que significava, nas novas condições, a transformação do Partido bolchevique em esquerda do bloco defensista. A tarefa principal consistia, quanto a Lenine, em livrar a vanguarda proletária do pântano defensista. Só com esta condição o proletariado poderia tornar-se, na etapa seguinte, o centro de união das massas trabalhadoras rurais. Mas que atitude se impunha para com a Revolução democrática, ou melhor, para com a ditadura democrática do proletariado e do campesinato? Lenine ridiculariza acerbamente esses “velhos bolcheviques” que, “já por muitas vezes, na história do nosso Partido, desempenharam um triste papel, repetindo ininteligivelmente uma fórmula decorada, em vez de estudarem as particularidades da nova situação real”. “É preciso orientarmo-nos – acrescenta -, não pelas velhas fórmulas teóricas, mas pela nova realidade. A antiga fórmula bolchevique de Kamenev: “A Revolução democrática burguesa não terminou”, abarca esta realidade? Não, esta fórmula está velha. Já não tem valor nenhum. Morreu. Serão vãos os esforços para a ressuscitar”.
É verdade que Lenine dizia às vezes que, na primeira época da Revolução de Fevereiro, os Sovietes dos deputados operários, soldados e camponeses representavam, até certo ponto, a ditadura revolucionária do proletariado e do campesinato. Na medida em que estes Sovietes exerciam o poder, trata-se duma afirmação verdadeira. Mas, como Lenine explicou muitas vezes, os Sovietes do período de Fevereiro só exerciam um semi-poder. Sustentavam o poder da burguesia, exercendo pressão sobre esta sob a forma de uma semi-oposição. Precisamente esta situação equivoca é que não lhes permitia sair do quadro da coligação democrática dos operários, camponeses e soldados. Na medida em que se apoiava, não em relações estatais formalizadas, mas na força armada e na conjuntura revolucionária, esta coligação tendia para a ditadura, embora estando ainda muito longe dela. No carácter democrático não-oficial desta coligação dos operários, camponeses e soldados no exercício de um semi-poder, é que residia a instabilidade dos Sovietes conciliadores. O caminho para estes seria verem o seu papel reduzir-se até ao enfraquecimento completo, ou então conquistar verdadeiramente o poder. Mas, em vez de o conquistarem como coligação democrática dos operários e camponeses representados por diferentes partidos, podiam fazê-lo na qualidade de ditadura do proletariado dirigida por um partido único, arrastando atrás de si as massas rurais, a começar pelas camadas semi-proletárias. Ou melhor, a coligação democrática operária e camponesa só podia ser considerada, antes da chegada ao poder, como uma forma preliminar, uma tendência e nunca como um facto. A marcha para o poder devia inevitavelmente fazer estoirar o envólucro democrático, levar a maioria dos camponeses a sentir a necessidade de seguir os operários; permitir ao proletariado realizar a sua ditadura de classe, pondo, por isso mesmo, na ordem do dia, paralelamente à democratização radical das relações sociais, a interferência socialista do Estado operário nos direitos da propriedade capitalista. Nestas condições, continuar a defender a fórmula da “ditadura democrática”, era na realidade renunciar ao poder, pondo a revolução num beco sem saída. A principal questão em litígio, à volta da qual giravam todas as outras, era a seguinte: deve-se lutar pelo poder? Deve-se ou não conquistar poder? Já isto, só por si, revela que estávamos em presença, não de episódicas divergências, mas de duas tendências de principio. Uma era proletária, inserindo-se na via da Revolução mundial, a outra “democrática”, isto é, pequeno-burguesa, implicando, em última análise, a subordinação da política proletária às necessidades da sociedade burguesa que se reformava. Durante 1917, em todas as questões, mesmo nas menos importantes, estas tendências entraram violentamente em choque. Numa época revolucionária, quer dizer, numa altura em que se põe em acção o capital acumulado pelo Partido, desacordos deste género tinham de aparecer inevitavelmente. Em maior ou menor medida, com as diferenças que a situação suscitar, estas duas tendências manifestar-se-ão ainda, por diversas vezes, em periodo revolucionário, em todos os países. Se se entende por “bolchevismo” uma educação, uma têmpera, uma organização da vanguarda proletária que a torna capaz de conquistar o poder pela força; e se se entende por “social-democracia” o reformismo e a oposição no quadro da sociedade burguesa, assim como a adaptação à legalidade, quer dizer, a educação das massas na Ideia da inabilidade do Estado burguês; é claro que mesmo num Partido Comunista – que não sai armado à priori da forja da história – a luta entre as tendências social-democratas e o bolchevismo tem de se manifestar em período revolucionário da mais nítida e clara forma, quando a questão do poder se põe directamente.
A tarefa da conquista do poder só se pôs ao Partido em 4 de Abril, quer dizer, depois da chegada de Lenine a Petrogrado. Mas, ainda mesmo a partir dessa altura, a linha do Partido não reveste um carácter continuo, indiscutível para todos. Apesar das decisões da conferência de Abril, uma resistência, ora surda, ora declarada, manifesta-se durante todo o período preparatório da revolução.
O estudo do desenvolvimento das divergências entre Fevereiro e a consolidação da revolução de Outubro, além do excepcional interesse teórico que apresenta, tem também uma incalculável importância prática. Em 1910, Lenine classificara os desacordos manifestados no II Congresso em 1903 como antecipação. Importa seguir estes desacordos a partir da origem, até mesmo desde o “economismo”. Mas este estudo só tem sentido se for completo, abarcando igualmente o período em que as divergências foram submetidas à derradeira prova, quer dizer, a Outubro.
Muito embora não possamos empreender, nestas páginas, o exame profundo de todas as fases desta luta, julgamos necessário preencher parcialmente a inadmissível lacuna existente na nossa literatura sobre o período mais importante do desenvolvimento do nosso Partido.
Conforme já dissemos, a questão do poder é o fulcro destas divergências. Nela assenta o critério que permite determinar o carácter dum partido revolucionário (e até dum partido não revolucionário). No período que estudamos, a questão da guerra põe-se e resolve-se em conexão estreita com a do poder. Examinaremos por ordem cronológica estas duas questões: posição do Partido e da sua imprensa no primeiro período após o derrube do czarismo, antes da chegada de Lenine; luta à volta das teses de Lenine; conferência de Abril; consequências das jornadas de Julho; sublevação de Kornilov; conferência democrática e Pré-parlamento; questão da insurreição armada e da crise do poder (Setembro-Outubro); questão dum governo socialista “homogéneo”.
O estudo destas divergências permitir-nos-á, assim o esperamos, tirar conclusões que possam servir aos outros partidos da Internacional Comunista.
3. A Guerra à Guerra e o Defensismo
O derrube do czarismo, em Fevereiro de 1917, representava evidentemente um gigantesco salto em frente. Mas, a revolução de Fevereiro, considerada à parte, significava somente que a Rússia se aproximava do tipo de república como a que existe por exemplo em França. É evidente que os partidos revolucionários pequeno-burgueses, apesar de a não considerarem burguesa, nem por isso a encararam como etapa a caminho da revolução socialista; consideraram-na antes como legado democrático, como um valor, só por si, independente. Nisto se baseia a ideologia do defensismo revolucionário. Em vez da dominação de uma determinada classe, defenderam a revolução e a democracia. Contudo, nos primeiros tempos, a revolução de Fevereiro provocou também no nosso Partido um considerável deslocamento das perspectivas revolucionárias. Em Março o Pravda estava, no fundo, muito mais próxima da posição do defensismo revolucionário do que da posição de Lenine.
“Quando dois exércitos se defrontam – diz-se num artigo da redacção – a mais estúpida das políticas seria propor a um deles que depusesse as armas e retirasse. Tal política não seria de paz, mas de escravatura; repugnaria, com indignação, a um povo livre. Não, o povo permanecerá firmemente no seu posto, respondendo a cada bala com outra bala, a cada projéctil com outro projéctil. Não devemos permitir desorganização alguma das forças da revolução”. (Pravda, 15 de Março de 1917, Abaixo a diplomacia secreta). Trata-se aqui, como se vê, não de classes dominantes ou oprimidas, mas do povo livre; não são as classes que lutam pelo poder, mas sim o povo livre, ocupando “o seu posto”. As ideias, assim como a sua formulação, são puramente defensistas. No mesmo artigo pode ler-se: “Não é nossa a palavra de ordem de desorganização do exército – o qual, se ainda não é revolucionário, está a ser revolucionado, – nem tão pouco a divisa vaga: Abaixo a guerra! A nossa palavra de ordem é: pressão sobre o Governo Provisório, forçando-o a fazer abertamente, diante da democracia mundial, uma tentativa para levar todos os países beligerantes a entabular imediatamente conversações acerca dos meios para pôr termo à guerra mundial. Daí até lá, cada qual deve permanecer no seu posto de combate”. Este programa de pressão sobre o governo imperialista de modo a fazer a apregoada tentativa, era o de Kautsky e Ledebour na Alemanha, de Longuet em França, de Mac Donaldem Inglaterra, nunca porém o do bolchevismo. Neste artigo, além de se não contentar a aprovar o famoso manifesto do soviete de Petrogrado: Aos povos do mundo inteiro (manifesto impregnado de espírito de defensismo revolucionário), a redacção solidariza-se com as resoluções nitidamente defensistas adoptadas em dois meetings em Petrogrado, numa das quais se declara: “Se as democracias alemã e austríaca não ouvirem a nossa voz (quer dizer, a voz do Governo Provisório e do soviete conciliador), defenderemos a nossa pátria até à última gota de sangue”.
Este artigo não é uma excepção. Exprime exactamente a posição da Pravda até ao regresso de Lenine à Rússia. Assim, no artigo “Sobre a Guerra” (Pravda, 16 de Março de 1917), que contudo encerra algumas notas críticas sobre o manifesto aos povos, encontra-se a seguinte declaração: “O apelo de ontem através do qual o soviete dos deputados operários e soldados de Petrogrado convida os povos do mundo inteiro a forçar os seus governos a pôr termo a carnificina, só é de aclamar”. Pôr termo à guerra, como? O artigo responde assim: “O processo consiste numa pressão sobre o Governo Provisório que o leve a declarar consentir a abertura imediata de negociações de paz.”
Poder-se-ia fazer uma série de citações análogas, com carácter defensivo e conciliador mais ou menos disfarçado. Lenine, que por esta altura não conseguira ainda sair de Zurique, insurgía-se vigorosamente nas suas “Cartas de Longe” contra todo e qualquer vestígio de concessão ao defensismo ou ao conciliacionismo. “É absolutamente inadmissível – escrevia a 8 de Março – fingir desconhecer e dissimular do povo que este governo pretende a continuação da guerra imperialista, que é o agente do capital inglês e pretende a restauração da monarquia e a consolidação do domínio dos proprietários de terras e capitalistas.” Mais tarde, a 12 de Março: “Pedir a este governo para concluir uma paz democrática é a mesma coisa que pregar a virtude a gerentes de casas de passe.” Enquanto o Pravda exorta a que se exerçesse pressão sobre o Governo Provisório, obrigando-o a intervir a favor da paz diante de “toda a democracia mundial”, Lenine escreve: “Dirigir-se ao governo Gutchkov—Miliukov, propondo-lhe a conclusão, o mais depressa possível, de uma paz honrosa e democrática, é agir como um piedoso pároco de aldeia que propusesse aos proprietários de terras e mercadorias viver de acordo com a lei de Deus, amar o próximo e oferecer a face direita quando lhes batem na esquerda.”
A 4 de Abril, no dia seguinte ao da sua chegada a Petrogrado, Lenine insurgiu-se resolutamente contra a posição do Pravda na questão da guerra e da paz: “É preciso não conceder nenhum apoio ao Governo Provisório – escrevia; é preciso explicar a falsidade de todas as suas promessas, particularmente no que diz respeito à renúncia a anexações. É necessário desmascarar este governo, em vez de lhe pedir (reivindicação que apenas serve para fazer nascer ilusões) que deixe de ser imperialista.” Inútil será dizer que Lenine qualifica o apelo de 14 de Março dos conciliadores, tão favoravelrnente acolhido pelo Pravda, de “fumarento” e “confuso”. É de uma extraordinária hipocrisia convidar os outros povos a romper com os seus banqueiros e, ao mesmo tempo, criar com os seus próprios um governo de coligação. “Os homens do centro – diz Lenine no seu projecto de plataforma – juram por tudo quanto há de mais sagrado que são marxistas internacionalistas, que são pela paz e por qualquer espécie de pressões sobre o seu governo a fim de que este “manifeste a vontade de paz, do povo”.
Mas – objecção provável, numa primeira abordagem – um partido revolucionário deve renunciar a exercer pressão sobre a burguesia e o seu governo? Evidentemente que não. A pressão sobre o governo burguês está na lógica das reformas. Um partido marxista não renuncia a reformas, só que estas se referem sempre a questões secundárias, nunca às essenciais. É impossível conquistar o poder por meio de reformas. Através de uma pressão não se pode forçar a burguesia a mudar de política numa questão de que depende a sua sorte. Precisamente por não ter dado lugar a uma pressão reformista, a guerra criara uma situação revolucionária. Das duas uma: ou se seguia a burguesia até ao fim, ou então levantavam-se as massas contra ela, arrancando-lhe o poder. No primeiro caso, poderiam obter-se da burguesia certas concessões em política interna, sob condição de sustentar, sem reservas, a política externa do imperialismo. Por isso é que o reformismo socialista se transformou abertamente em imperialismo socialista, desde o começo da guerra. Por isso é que os elementos verdadeiramente revolucionários se viram obrigados a proceder à criação de uma nova Internacional. O ponto de vista do Pravda não é proletário-revolucionário, mas democrático-defensista, embora equívoco no seu defensismo. Derrubámos o czarismo, dizia-se; cabe-nos agora exercer pressão suficiente sobre o poder democrático, que deve propor a paz aos povos. Se a democracia alemã não puder exercer pressão suficiente sobre o seu governo, defenderemos a nossa “pátria” até à última gota de sangue. Por não se impôr como tarefa revolucionária prática a conquista do poder pelo proletariado, não se encarava a realização da paz como tarefa exclusiva da classe operária, tarefa a efectuar por cima da cabeça do Governo Provisório. As duas coisas contudo, eram inseparáveis.
4. A Conferência de Abril
O discurso de Lenine na estação da Finlândia sobre o carácter socialista da Revolução russa foi como que uma bomba para muitos dirigentes do Partido. Logo no primeiro dia rebentou a polémica entre Lenine e os partidários da “conclusão da revolução democrática”.
A demonstração armada de Abril, em que a palavra de ordem: “Abaixo o Governo Provisório” ecoou, deu ensejo a um grave conflito. Serviu de pretexto a certos representantes da direita para acusar Lenine de blanquismo: o derrube do Governo Provisório sustentado pelo soviete na sua maioria, só poderia pretensamente ser obtido, escamoteando a vontade da maioria dos trabalhadores. Formalmente, podia parecer que a censura não deixava de ter sentido; na realidade, não havia nem sombra de blanquismo na polémica de Lenine em Abril. Na sua opinião, toda a questão consistia em saber em que medida é que os Sovietes continuavam a reflectir o verdadeiro estado de espírito das massas e em determinar se o Partido não estava enganar-se, orientando-se por eles. A manifestação de Abril, “mais á esquerda” do que convinha, foi um reconhecimento destinado a verificar o estado de espírito das massas e as relações entre estas e a maioria do soviete. Demonstrou a necessidade de um longo trabalho de preparação. Em princípios de Maio, Lenine censurou severamente os marinheiros de Cronstadt que, no seu ardor, se adiantaram demasiadamente, declarando não reconhecer o Governo Provisório.
Os adversários da luta pelo poder abordaram a questão de forma completamente diferente. Kamenev, na Conferência de Abril do Partido, expunha as suas queixas: “No n.0 19 da Pravdahouve camaradas (trata-se evidentemente de Lenine. L. T.) que propuseram uma resolução sobre o derrube do Governo Provisório, impressa antes da última crise, que contudo rejeitaram mais tarde como susceptível de introduzir a desorganização e de influência aventureira. Como se vê, os camaradas em questão aprenderam alguma coisa durante a crise. A resolução proposta (quer dizer, a resolução proposta por Lenine à Conferência. – L. T.) comete o mesmo erro.” Esta maneira de encarar a questão é extremamente significativa. Uma vez efectuado o reconhecimento, Lenine retirou a palavra de ordem de derrube imediato do Governo Provisório; retirou-a contudo temporariamente, por algumas semanas ou meses, de acordo com a maior ou menor rapidez com que crescesse a indignação das massas com os conciliadores. A oposição, essa, considerava esta palavra de ordem como um erro. O recuo provisório de Lenine não comportava a mais pequena modificação na sua linha. Lenine não se baseava no facto de ainda não ter terminado a revolução democrática, mas tão somente em que a massa ainda não era capaz de derrubar o governo provisório, para o que devia prepará-la o mais depressa possível.
Toda a conferência de Abril do partido foi consagrada a esta questão essencial: lançamo-nos à conquista do poder para realizar a revolução socialista, ou ajudamos a concluir a revolução democrática? Infelizmente, o relatório desta conferência ainda não está impresso; contudo, talvez não haja nenhum outro congresso na história do nosso Partido com uma importância tão grande, tão directa, para a sorte da revolução.
Luta irredutível contra o defensismo e os defensistas; conquista da maioria nos Sovietes; derrube. por seu intermédio, do governo provisório; política revolucionária de paz; programa de revolução socialista no interior e de revolução internacional, no exterior. Tal é a plataforma de Lenine. Como se sabe, a oposição era pelo acabamento da revolução democrática através de uma pressão sobre o Governo Provisório, devendo permanecer os Sovietes como órgãos de “controle” do poder burguês. Daí uma atitude muito mais conciliadora para com o defensismo.
Um dos adversários de Lenine declarava na conferência de Abril: “Falamos dos sovietes operários e soldados como centros organizadores das nossas forças e do poder… Só pelo nome se mostra que são um bloco de forças pequeno-burguesas e proletárias. ao qual se impõe a necessidade de completar as tarefas democrático-burguesas. Se a revolução democrática burguesa terminasse, este bloco deixaria de existir… e o proletariado prosseguiria a luta contra ele… Contudo, reconhecemos nestes sovietes os centros de organização das nossas forças… Logo, a revolução burguesa ainda não é assunto arrumado, não mostrou aquilo que vale e, é forçoso reconhecê-lo, se já tivesse terminado, o poder passaria para as mãos do proletariado.” (Discurso de Kamenev).
A inconsistência deste raciocínio é evidente: com efeito, enquanto o poder não passar para outras mãos, nunca a revolução se dará por completamente terminada. O autor do percipitado discurso ignora o verdadeiro eixo da revolução, deduzindo as tarefas do partido, não do agrupamento real das forças de classe, mas de uma definição formal da revolução considerada como burguesa ou democrático-burguesa. Na sua opinião, enquanto não se tiver concluído a revolução burguesa, é necessário fazer bloco com a pequena burguesia e exercer um controle sobre o poder burguês. Aí está um esquema nitidamente menchevique. Limitando doutrinariamente as tarefas da revolução com o qualificativo correspondente (revolução “burguesa”) devia-se fatalmente acabar na política de controle do Governo Provisório, na reivindicação de um programa de paz sem anexações, etc… Por acabamento da revolução democrática subentendia-se a realização de uma série de reformas por intermédio da Constituinte, onde o partido bolchevique devia desempenhar o papel de ala esquerda. A palavra de ordem: “Todo o poder aos sovietes” perdia assim todo e qualquer conteúdo real. Foi o que Noguine, mais lógico do que os seus camaradas de oposição, declarou à conferência de Abril: “No decorrer da evolução, desaparecem as atribuições mais importantes dos sovietes, uma série das suas funções sendo transmitidas às municipalidades ,aos zemstvos, etc… Consideremos o desenvolvimento ulterior da organização estatal: que há de vir a ser formada uma Assembléia Constituinte e, depois dela, um Parlamento, não restam dúvidas. Daí resulta que os sovietes ir-se-ão progressivamente desincumbindo das suas principais funções, o que não quer dizer que terminem vergonhosamente a sua existência. Nada mais farão do que transmitir as suas funções. Com sovietes do tipo actual é que a república-comuna não se realizará entre nós.”
Por fim, um terceiro oponente abordou a questão do ponto de vista da maturidade da Rússia para o socialismo: “Arvorando a palavra de ordem da revolução de massas? Não, porque a Rússia.é. o país mais pequeno-burguês da Europa. Se o partido adoptar a plataforma da revolução socialista, transformar-se-á num círculo de propagandistas. Do Ocidente é que se deve desencadear a revolução… Onde é que brilhará o sol da revolução socialista? Dado o estado de coisas por cá reinante e o meio pequeno-burguês, creio que não nos cabe tomar a iniciativa da revolução socialista. Não dispomos de forças necessárias para o efeito; além disso, faltam as condições objectivas. No Ocidente a questão da revolução socialista põe-se aproximadamente da mesma forma que a do derrube do czarismo, entre nós.”.
Apesar de nem todos os adversários de Lenine chegarem às conclusões de Noguine na conferência de Abril, todos, pela lógica das coisas, foram forçados a aceitá-las alguns meses mais tarde, nas vésperas de Outubro: dirigir a revolução proletária ou limitar-se ao papel de oposição no Parlamento burguês, tal era a alternativa em que se via colocado o nosso partido. A segunda posição era menchevique ou, mais exactamente, a posição que estes se viram forçados a abandonar depois da revolução de Fevereiro. Com efeito, os chefes mencheviques afirmaram durante anos que a futura revolução seria burguesa, que o governo de tal revolução só podia realizar as tarefas da burguesia, que a social-democracia não podia assumir as tarefas da democracia burguesa, pelo que devia, “empurrando a burguesia para a esquerda”, confinar-se ao papel de oposição. Sobretudo Martinov não se tinha cansado de desenvolver o tema. Muito em breve, a revolução de Fevereiro levou os mencheviques a participar no governo. Da sua posição de princípio só conservaram a tese de que o proletariado não devia conquistar o poder.
Desta feita, os bolcheviques que condenavam o ministerialismo menchevique, insurgindo-se contra a tomada do poder pelo proletariado, estavam a entrincheirar-se nas posições pré-revolucionárias dos mencheviques.
A revolução provocou deslocamentos políticos nos dois sentidos: as direitas tornaram-se cadetes e os cadetes, republicanos (deslocamento para a esquerda); os s. – r. e os mencheviques tornaram-se partidos burgueses dirigentes (deslocamento para a direita). É através de processos deste género que a sociedade burguesa tenta criar uma nova ossatura para o seu poder, estabilidade e ordem.
Mas enquanto os mencheviques abandonam o seu socialismo formal pela democracia vulgar, a direita dos bolcheviques passa ao socialismo formal, quer dizer, à posição ocupada ainda na véspera pelos mencheviques.
A questão da guerra manifestou o mesmo reagrupamento. À excepção de alguns doutrinários, a burguesia (que, aliás, quase que já não esperava a vitória militar) adoptou a fórmula: “Nem anexações, nem contribuição”. Os mencheviques e os s. – r. zimmerwaldianos, que tinham criticado os socialistas franceses por defenderem a sua pátria republicana burguesa, logo que se sentiram em república burguesa tornaram-se defensistas: da posição internacionalista passiva passaram ao patriotismo activo. Simultaneamente, a direita bolchevique resvalou no internacionalismo passivo de “pressão” sobre o Governo Provisório, na mira de uma paz democrática “sem anexações, nem contribuição”. Deste modo, a fórmula da ditadura democrática do proletariado e do campesinato desmembra-se teórica e politicamente na conferência de Abril, dando origem a dois pontos de vista opostos: o ponto de vista democrático, disfarçado com restrições socialistas formais, e o ponte de vista social-revolucionário ou ponto de vista verdadeiramente bolchevique.
5. As Jornadas de Julho, a Sublevação de Kornilov, a Conferência Democrática e o Pré-Parlamento
As decisões da conferência de Abril, embora tenham dado ao partido uma base justa, não liquidaram as divergências de cúpula na direcção. Pelo contrário, essas divergências, no decurso dos acontecimentos, viriam a revestir formas ainda mais concretas, atingindo a sua maior acuidade no momento mais grave da revolução, as jornadas de julho.
A tentativa de organizar uma demonstração em 10 de Junho, sugerida por Lenine, foi condenada c. mo uma aventura pelos bolcheviques que tinham. reprovado o carácter da manifestação de Abril. Por ter sido proibida pelo Congresso dos sovietes, não teve lugar a manifestação de 10 de Junho. Porém, a 18 de Junho, o Partido desforrou-se: a demonstração geral de Petrogrado organizada pela iniciativa, bastante prudente aliás, dos conciliadores, efectuou-se quase que inteiramente sob as palavras de ordem bolcheviques. O governo tentou, contudo, levar a melhor: empreendeu uma ofensiva estúpida na frente. O momento era decisivo. Lenine precaveu o Partido contra as imprudências, escrevendo, a 21 de Junho na Pravda: “Camaradas, na hora actual, não seria racional intervir. É preciso que transpunhamos. agora, uma nova etapa na nossa revolução.”
Com as jornadas de Julho, assinala-se um importante momento na via da revolução e do desenvolvimento das divergências no interior do Partido. Nestas jornadas a pressão espontânea das massas petersburguesas desempenhou um papel decisivo. Não há dúvida, porém, de que Lenine perguntava então. lá para consigo, se não seria já a altura, se o estado de espírito das massas não ultrapassara a superestrutura sovietista e não nos arriscávamos, hipnotizados pela legalidade sovietista, a ficar em atraso com relação às massas, destacando-nos delas. É muito provável que, durante as jornadas de Julho, certas operações puramente militares tivessem tido lugar por iniciativa de camaradas sinceramente persuadidos de que não estavam em desacordo com Lenine, ria forma de apreciar a situação. Mais tarde, Lenine dizia: “Em Julho, fizemos asneiras que fartam.” Na realidade, também dessa vez a questão se reduziu a um reconhecimento, porém de mais vasta envergadura e numa etapa mais avançada do movimento. Tivemos que bater em retirada. Preparando-se para a insurreição e para a tomada do poder, Lenine e o Partido não viram na intervenção de Julho mais do que um episódio em que pagamos a peso de oiro o reconhecimento profundo efectuado entre as forças inimigas, mas que não podia fazer desviar a linha geral da nossa acção. Pelo contrário, os camaradas hostis à política da tomada do poder veriam no episódio de Julho uma aventura prejudicial. Os elementos da direita reforçaram a sua mobilização; a sua crítica tornou-se mais categórica, mudando, por conseguinte, o tom da resposta. Lenine escrevia: “Todas estas lamentações e reflexões tendentes a provar que não era necessário participar, provêm de renegados, se emanam dos bolcheviques. ou são manifestações de horror e confusão, habituais nos pequenos burgueses”. A palavra renegado, proferida em tal momento, iluminava com uma trágica claridade as divergências no Partido. Viria a surgir cada vez mais freqüentemente.
A atitude oportunista na questão do poder e da guerra, não-determinava evidentemente uma atitude análoga para com a Internacional. Os direitistas tentaram levar o Partido a participar na conferência dos social-patriotas de Estocolmo. A 16 de Agosto Lenine escrevia: “Os bolcheviques, fiéis ao seu Partido e aos seus princípios, não podem deixar de reprovar o discurso de Kamenev no Conselho Executivo Central, a 6 de Agosto, a respeito da conferência de Estocolmo”. Mais adiante, a propósito duma frase na qual se dizia que a bandeira revolucionária começava a flutuar em Estocolmo. Lenine escrevia; “Trata-se de uma declaração oca, no espírito das de Tchernov e Tseretelli; é uma mentira revoltante. A bandeira que começa a flutuar em Estocolmo não é a bandeira revolucionária, mas sim a das transacções, dos acordos, da anistia dos social-imperialistas e das negociações dos banqueiros para a partilha dos territórios anexados.”
Em direcção a Estocolmo chegava-se, na realidade, à II Internacional. De igual forma, com a participação no pré-Parlamento, acabava-se na república burguesa. Lenine pronunciou-se pelo boicote da conferência de Estocolmo, tal como defendeu, mais tarde, o do pré-Parlamento. Mesmo no auge da luta, nunca se esqueceu, um instante que fosse, da tarefa de criação duma nova Internacional, duma Internacional Comunista.
Já em 10 de Abril Lenine intervém para pedir a modificação do nome do Partido. As objeções que lhe são feitas, aprecia-as assim: “Esses são os argumentos da rotina, do entorpecimento e da passividade”. E insiste: “Já é tempo de despirmos a camisa suja e vestir roupa lavada.” Contudo, a resistência nas esferas dirigentes foi tão forte que teve de se esperar um ano até que o Partido se decidisse a mudar de nome, voltando às tradições de Marx e Engels. Este episódio é característico do papel de Lenine durante todo o ano de 1917: na viragem mais brusca da história, não deixa de travar uma luta implacável contra o dia de ontem, pelo dia de amanhã. E a resistência de ontem, que se manifesta sob a bandeira da tradição, atinge por momentos uma extrema acuidade.
A sublevação de Kornilov, que provocou uma viragem sensível a nosso favor, atenuou temporariamente os desacordos, embora não os fizesse desaparecer. A certa altura, no terreno da defesa da revolução e, em parte, da pátria, manifestou-se entre a direita uma tendência para a aproximação do Partido e da maioria sovietista. Lenine reagiu no começo de Setembro, na sua carta ao Comité Central: “Estou profundamente convencido de que admitir o ponto de vista da defesa nacional ou (como certos bolcheviques) chegar a fazer bloco com os s. – r., a ponto de sustentar o Governo Provisôrio, é o mais grosseiro dos erros, pelo qual se dá prova ao mesmo tempo de uma absoluta falta de princípios. Só nos tornaremos defensistas depois da tomada do poder pelo proletariado. . .” E, mais adiante: “Mesmo agora, não devemos sustentar o governo de Kerenski. Seria faltar aos princípios. Mas então, dir-se-á, não tem de se combater Kornilov? Certamente que sim. Mas entre combater Kornilov e sustentar Kerenski há uma diferença, um limite, que certos bolcheviques trans-põem, caindo no “conciliacionismo”, deixando-se arrastar na torrente de acontecimentos”.Kornilov
A Conferência Democrática (14-22 de Setembro) e o pré-Parlamento a que deu origem, assinalaram uma nova etapa no desenvolvimento das divergências. Mencheviques e s. – r. procuravam ligar-se aos bolcheviques através da legalidade parlamentar burguesa. A direita bolchevique simpatizava com esta táctica. Já vimos como os direitistas concebiam o desenvolvimento da revolução: os sovietes transferiam progressivamente as suas funções para as instituições qualificadas (municipalidades, zemstvos, sindicatos e, finalmente, Assembleia Constituinte), abandonando, por isso mesmo, a cena política. Pela via do pré-Parlamento, o pensamento político das massas deveria encaminhar-se para a Assembleia Constituinte, coroamento da revolução democrática. Ora, os bolcheviques já estavam em maioria nos sovietes de Petrogrado e de Moscovo; a nossa influência no exército crescia de dia para dia. Já não se tratava de prognósticos, nem de perspectivas, mas da escolha da via pela qual seria necessário enveredar.
A conduta dos partidos conciliadores na Conferência Democrática foi de uma baixeza lamentável. No entanto, a nossa proposta de abandono ostensivo da conferência, onde nos arriscávamos a ficar atolados, colidia com uma resistência categórica dos elementos de direita, dispondo ainda de uma grande influência na direcção do nosso Partido. As colisões neste caso serviram de introdução à luta sobre a questão do boicote do pré-Parlamento. A 24 de Setembro, quer dizer, depois da Conferência Democrática, Lenine escrevia: “Os bolcheviques deviam retirar-se em sinal de protesto, a fim de não caírem na armadilha pela qual a Conferência procura desviar a atenção popular das questões sérias.”
Apesar do seu campo restrito, os debates na fracção bolchevique à Conferência Democrática, respeitantes à questão do boicote do pré-Parlamento, tiveram uma importância excepcional. Representaram, realmente, a mais vasta tentativa dos direitistas no sentido de instigar o Partido a enveredar pelo “acabamento da revolução democrática”. Provavelmente, não se fez o relatório estenográfico destes debates; em todo o caso, que eu saiba, não se encontrou até agora uma única nota do secretário. A redacção desta colectânea descobriu nos meus papéis alguns materiais extremamente restritos sobre o assunto. Kamenev desenvolveu a argumentação eiposta mais tarde, com mais violência e nitidez, na carta de Kamenev e de Zinoviev às organizações do Partido (11 de Outubro). Noguine foi quem mais logicamente pôs a questão. “O boicote do pré-Parlamento”, dizia ele, “é, em resumo, um apelo à insurreição, quer dizer, à repetição das jornadas de Julho. Só porque se chama pré-Parlamento, ninguém ousaria boicotar tal instituição.”
A concepção essencial dos direitistas era que a revolução conduzia inevitavelmente dos sovietes ao parlamentarismo burguês, representando o pré-Parlamento urna etapa natural nesta via; e que,a partir do momento em que nos dispúnhamos a ocupar os bancos da esquerda no parlamento, não havia motivo para nos recusarmos a participar. Era preciso, segundo se supunha, completar a revolução democrática e “preparar” a revolução socialista. Mas preparar, como? Através da escola do parlamentarismo burguês; com efeito, os países avançados são para os retardatários a imagem do seu desenvolvimento. A queda do czarismo concebia-se revolucionariamente, tal como se produzira na realidade; mas a conquista do poder pelo proletariado concebia-se parlamentar-mente, na base da democracia acabada. Entre a revolução burguesa e a proletária deviam mediar longos anos de regime democrático. A luta pela participação no pré-Parlamento era uma luta pela “europeização” do movimento operário, pela sua canalização, o mais rapidamente possível, no seio da “luta” democrática “pelo poder”, quer dizer, no seio da social-democracia. A nossa fracção à Conferência Democrática contava com mais de cem membros, não se distinguindo em nada de um Congresso de Partido, sobretudo nesta época. Uma boa metade desta fracção pronunciou-se pela participação no pré-Parlamentou Por si só,este facto era já de natureza a suscitar sérias inquietações; com efeito, Lenine não deixa de tocar a rebate a partir daí.
Na altura da Conferência Democrática, Lenine escrevia: “Comportar-nos para com a Conferência Democrática como para com o parlamento seria um erro enorme da nossa parte, uma manifestação de cretinismo parlamentar sem paralelo, pois, ainda que se proclamasse parlamento soberano da revolução, a Conferência nada decidiria: a decisão é exterior, pertence aos bairros operários de Petrogrado e Moscovo.” Qual era a opinião de Lenine sobre a participação no pré-Parlamento é o que revelam as suas numerosas declarações e, em particular, a carta de 29 de Setembro ao Comité Central, onde fala de “erros revoltantes dos bolcheviques, tais como a vergonhosa decisão de participar no pré-Parlamento”. Para ele tal decisão era uma manifestação de ilusões democráticas no decurso da luta e de erros pequeno-burgueses que nunca deixara de combater. Não é verdade que longos anos separem a revolução burguesa da proletária. Não é verdade que a única ou principal escola de preparação para a conquista do poder, seja a do parlamentarismo. Não é verdade que a via em direcção ao poder passe necessariamente pela democracia burguesa. Isso são abstracções inconsistentes e esquemas doutrinários cujo resultado é tão-só acorrentar a vanguarda, fazendo dela, por intermédio do mecanismo estatal “democrático”, a oposição, a sombra política da. burguesia; são manifestações de social-democracia. É preciso dirigir a política do proletariado, não de acordo com esquemas escolares, mas pelo fluxo real da luta de classes. O que é preciso, não é entrar para o pré-Parlamento, mas sim organizar a insurreição, arrancando o poder ao adversário. O resto virá por acréscimo. Lenine chegava a propor a convocação de um Congresso do Partido extraordinário, cuja plataforma deveria ser o boicote do pré-Parlamento. A partir daí, todos os artigos e cartas desenvolvem. exclusivamente o pensamento seguinte: o que é preciso, não é passar pelo pré-Parlamento, mas descer à rua, a fim de travar a luta pelo poder.
6. Em Torno da Revolução de Outubro
Não houve necessidade de reunir um Congresso extraordinário. A pressão de Lenine garantiu o necessário deslocamento de forças para a esquerda no Comité Central ,assim como na fracção do pré-Parlamento, abandonado a 10 de Outubro pelos bolcheviques. Em Petrogrado processa-se o conflito do soviete com o governo, à volta da questão do envio para a frente das unidades da guarnição simpatizantes com o bolchevismo. A 16 de Outubro, é criado o Comité militar revolucionário, órgão sovietista legal da insurreição. A direita do Partido esforça-se por travar a marcha dos acontecimentos. Entra numa fase decisiva a luta das tendências, no interior do Partido, e a das classes, pelo país. Na carta Sobre o momento presente, subscrita por Kamenev e Zinoviev, a posição da direita demarca-se o mais completamente possível, revelando as suas motivações. Escrita a 11 de Outubro (quer dizer, duas semanas antes do golpe de força) e enviada às principais organizações do Partido, esta carta insurge-se categoricamente contra a decisão do Comité Central a respeito da insurreição armada. Precavendo o Partido contra uma subestimação das forças do inimigo – na realidade, eles é que subestimavam monstruosamente as forças da revolução, chegando até a negar a existência de estado de espírito combativo nas massas (isto duas semanas antes de 25 de Outubro!) – os seus autores declaram: “Estamos profundamente convencidos de que proclamar nesta altura a insurreição armada, é pôr em jogo, não só a sorte do nosso Partido, mas também a da revolução russa e internacional”. Mas então, se a insurreição e a tomada de poder estão fora de propósito, o que é que se há-de fazer? A carta responde com bastante clareza a esta questão. “Por intermédio do exército e dos operários, empunhamos um revólver assestado às fontes da burguesia”, que, sob esta ameaça, não poderá impedir a convocação da Assembleia Constituinte. “Nas eleições para a. Assembleia Constituinte o nosso Partido tem todas as oportunidades… A influência do bolchevismo aumenta… Com uma táctica justa, podemos obter pelo menos um terço dos mandatos para a Assembleia Constituinte.” Assim, de acordo com a carta, o Partido devia desempenhar o papel de oposição “influente” na Assembleia Constituinte burguesa. De qualquer modo, esta concepção social-democrática disfarça-se com as seguintes considerações: “Os sovietes, que se tornaram um elemento constitutivo da nossa vida, não poderão ser abolidos… No seu trabalho revolucionário a Assembleia Constituinte só se poderá apoiar nos sovietes. Eis o tipo combinado de instituições estatais para que convergimos: a Assembléia Constituinte e os Sovietes”. Facto curioso, muito característico da linha geral dos direitistas: a teoria do poder estatal “combinado” que alia a Assembléia Constituinte aos sovietes, foi retomada na Alemanha, um ano e meio ou dois anos mais tarde, por Rudolph Hilferding que, também ele, lutava contra a tomada do poder pelo proletariado. O oportunista austro-alemão estava longe de desconfiar, na altura, que cometia um plágio.
A carta Sobre o momento presente contesta que tenhamos já a nosso favor a maioria do povo da Rússia. Só tem em conta a maioria puramente parlamentar. “Na Rússia – declara-se nela – conquistámos a maioria dos operários e uma parte importante dos soldados. Mas o restante é duvidoso. Por exemplo: estamos convencidos de que se as eleições para a Assembleia Constituinte tiverem lugar, os camponeses votarão na sua maioria pelos s. – r. Pode-se considerar o fenómeno fortuito?” Esta maneira de abordar a questão comporta um erro radical: não se compreende que, apesar de não ter uma posição política independente (tem de votar pela burguesia, dando os seus votos aos s. – r., ou então ligar-se activamente ao proletariado), o campesinato possa ter poderosos interesses revolucionários e um intenso desejo de os satisfazer. Ora, da nossa política dependia a realização de uma ou de outra dessas duas eventualidades. Se entrássemos para o pré-Parlamento, assumindo o papel de oposição na Assembleia Constituinte, punha mos, por isso mesmo, quase que automaticamente, o campesinato numa situação em que devia procúrar a satisfação dos seus interesses por meio da Assembleia Constituinte, logo, através da sua maioria e não da oposição. Muito pelo contrário, a tomada do poder pelo proletariado criava imediatamente um quadro revolucionário para a luta dos camponeses contra os grandes proprietários de terras e funcionários. Para empregar as nossas expressões correntes, diria que nesta carta há .simultaneamente uma subestimação e uma sobrestimação do campesinato; uma subestimação das suas possibilidades revolucionárias (sob a direcção do proletariado) e uma sobrestimação da sua importância política. Por sua vez, este duplo erro resulta duma subestimação da força do proletariado e do seu Partido, quer dizer, de uma concepção social-democrática do proletariado. Não há nada de surpreendente nisso. Em última análise, todas as matizes do oportunismo radicam numa avaliação irracional das forças revolucionárias e das possibilidades do proletariado.
Ao combater a ideia da tomada do poder, os autores da carta procuram assustar com as perspectivas da guerra revolucionária. “A massa dos soldados apoia-nos, não na palavra de ordem da guerra, mas na da paz… Depois de termos, sozinhos, conquistado o poder e dada a situação mundial, se se vier a sentir a necessidade de travar uma guerra revolucionária, a massa dos soldados abandonar-nos-á. A elite dos jovens soldados permanecerá certamente ao nosso lado, mas a massa abandonar-nos-á.” Esta argumentação é extremamente elucidativa. Nela se encontram as razões fundamentais que mais tarde justificaram a conclusão da paz de Brest-Litovsk, sem que por isso, no caso em questão, deixassem de ser carreadas contra a tomada do poder. Claro que a posição adoptada nesta carta facultava extraordinariamente aos seus autores e partidários a aceitação da paz de Brest. Resta-nos só repetir aqui o que já dissemos mais atrás: o que caracteriza o génio político de Lenine não é a capitulação de Brest considerada abstractamente, mas a aliança de Outubro com Brest. Isso sim, é que se não deve esquecer.
A classe operária luta e cresce na consciência de que o seu adversário é mais forte. Observa-se constantemente isto na vida corrente. O adversário érico, podeioso, dispondo de todos os meios de pressão ideológica e de todos os instrumentos de repressão. Habituar-se a pensar que o inimigo é superior em força, é parte integrante da vida e do trabalho dum partido revolucionário, no periodo da preparaçao. Aliás, as consequências de actos imprudentes ou prematuros em que venha a incorrer o Partido, advertem-no brutalmente, de cada vez, da força do inimigo. Mas este hábito de considerar o adversário mais poderoso, torna-se, a certa altura, o principal obstáculo para a vitória. A fraqueza actual da burguesia dissimula-se, de qualquer forma, à sombra da sua força passada. “Vocês subestimam a força do inimigo!” Este é o ponto de união de todos os elementos hostis à insurreição armada. “Aqueles que não quiserem dissertar, pura e simplesmente, sobre a insurreição – escreviam os direitistas duas semanas antes da vitória – devem ponderar friamente todas as hipóteses. Consideramos como um dever, declarar que seria extremamente prejudicial, sobretudo no presente momento, subestimar as forças do adversário, sobrestimando as nossas. Petrogrado será decisivo para o desfecho da luta; ora, os inimigos do partido proletário acumularam forças consideráveis em Petrogrado: cinco mil junkers muito bem armados, perfeitamente organizados e com ardentes desejos (e sabendo) de se baterem; o estado-maior, os destacamentos de choque, os cossacos, uma fracção considerável da guarnição e uma parte enorme da artilharia, disposta em leque à volta da cidade. Além disso, com a ajuda do Comité Executivo Central, os nossos adversários tentarão quase de certeza trazer tropas da frente.” (No momento presente).
É evidente que na guerra civil já que não se trata simplesmente de contar os batalhões mas de avaliar o seu grau de consciência, nunca é possível alcançar uma exactidão perfeita. Até mesmo Lenine julgava que o inimigo dispunha de importantes forças em Petrogrado, pelo que propunha lançar-se a insurreição a partir de Moscovo, onde, no seu parecer, se realizaria sem efusão de sangue. No domínio da previsão, erros parciais deste gênero são inevitáveis, até nas condições mais favoráveis, sendo sempre mais racional encarar a hipótese menos propicia. Contudo, o que nos interessa no caso em questão? É a formidável sobrestimação das forças do inimigo e a completa deformação de todas as proporções, quando, na realidade, o inimigo não dispunha de força armada nenhuma.
Tal como ficou demonstrado pela experiência da Alemanha, esta questão assume uma enorme importância. Enquanto a palavra de ordem de insurreição servia principal, senão exclusivamente, de meio de agitação, os dirigentes do Partido comunista alemão não se preocupavam com as forças armadas do inimigo (Reichswehr, destacamentos fascistas, policia). Parecia-lhes que o fluxo revolucionário, crescendo incessantemente, resolveria, por si só, a questão militar. Mas quando se viram perante o problema, esses mesmos camaradas que, por qualquer forma, haviam considerado a força armada do inimigo como inexistente, caíram no outro extremo: puseram-se a aceitar confiadamente todos os números que lhes eram fornecidos sobre as forças armadas da burguesia, adicionaram-nos cuidadosamente às forças do Reichswehr e da policia, para depois arredondarem a soma (até ao meio milhão e tal) e terem assim à sua frente uma massa compacta, armada até aos dentes, suficiente para paralizar os seus esforços. Apesar de as forças da contra-revolução alemã, além de incontestavelmente mais consideráveis, estarem sem dúvida mais bem organizadas e preparadas, o que é certo é que também as forças activas da revolução alemã não se comparavam com as nossas. O proletariado representava a maioria esmagadora da população da Alemanha. Entre nós, pelo menos na primeira fase, a questão decidia-se em Petrogrado e Moscovo. Na Alemanha, a insurreição disporia logo de uma dezena de potentes núcleos proletários. Se os dirigentes do P.C.A. tivessem tomado isso em consideração, as forças armadas do inimigo parecer-lhes-iam menos imponentes do que nos seus cálculos estatísticos colossalmente exagerados. Em todo o caso, é preciso rejeitar categoricamente os cálculos tendenciosos que se fizeram e continuam a fazer, depois da derrota de Outubro na Alemanha, a fim de justificar a política que a provocou. No caso em questão o nosso exemplo russo tem uma importância excepcional: duas semanas antes da nossa vitória sem efusão de sangue em Petrogrado – vitória que já podíamos ter alcançado há duas semanas – políticos experientes do Partido viam uma multidão de inimigos erguer-se contra nós: os junkers, desejosos de se bater e sabendo fazê-lo, as tropas de choque, os cossacos, uma parte considerável da guarnição, a artilharia disposta em leque à volta de Petrogrado e as tropas vindas da frente. Ora, na realidade, não se passava absolutamente nada disso. Admitamos agora, por momentos, que os adversários da insurreição tivessem levado a melhor no Partido e no Comitê Central. Nesse caso, não fosse o apelo contra o Comitê Central, que Lenine se dispunha a lançar ao Partido e que seria certamente eficaz, a revolução ficaria votada à ruína. Mas nem todos os partidos poderão dispor de um Lenine, quando defrontarem situação idêntica. Não é difícil de imaginar como a história seria escrita se tivesse triunfado no Comitê Central a tendência para evitar a batalha. Os historiadores oficiais exporiam a situação, sem dúvida alguma, de modo a mostrar que a insurreição, em Outubro de 1917, teria sido uma verdadeira loucura; muniriam o leitor com estatísticas fantásticas acerca do número de junkers, cosacos, destacamentos de choque, artilharia “disposta em leque” e corpos do exército vindos da frente. Na ausência de uma insurreição que as pusesse à prova, semelhantes forças podiam parecer muito mais ameaçadoras do que na realidade eram. Esta é a lição que se deve incrustar profundamente na consciência de cada revolucionário.
A pressão instante, contínua, incansável, exercida por Lenine no Comitê Central durante os meses de Setembro e Outubro, justificava-se pelo receio de que deixássemos escapar o momento. Que bagatela! respondiam os direitistas, a nossa influência nada mais fará do que aumentar. Quem tinha razão? E que significava deixar escapar o momento? Com isto abordamos a questão na qual a apreciação bolchevique activa, a avaliação estratégica das vias e métodos da revolução, mais nitidamente contrasta com a social-democrática, menchevique, impregnada de fatalismo. O que significava deixar escapar o momento? Evidentemente que a situação mais favorável para a insurreição é aquela em que a correlação das forças pende mais para o nosso lado. Escusado será dizer que se trata neste caso da correlação das forças no domínio da consciência, quer dizer, da superestrutura política e não da base, que se pode considerar mais ou menos constante durante toda a época revolucionária. Na mesma base econômica e com idêntica diferenciação de classe da sociedade, a correlação das forças varia em função do estado de espírito das massas proletárias, do naufrágio das suas ilusões, da acumulação da sua experiência política, do abalo de confiança no poder estatal das classes e grupos intermediários e, finalmente, do enfraquecimento da confiança deste em si próprio. Em épocas revolucionárias estes processos decorrem rapidamente. Toda a arte táctica consiste em saber aproveitar o momento em que combinação das condições é mais favorável. A sublevação de Kornilov preparara definitivamente estas condições. As massas, que tinham perdido a confiança nos partidos da maioria sovietista, viram o perigo de contra-revolução com os próprios olhos. Consideraram que cabia agora aos bolcheviques encontrar uma saída para a situação. Nem a desagregação do poder estatal, nem tão pouco o afluxo espontâneo da confiança impaciente e exigente das massas nos bolcheviques, podiam ser de longa duração; de uma maneira ou de outra, a crise tinha que desembocar numa solução. Agora ou nunca! repetia Lenine.
Ao que os direitistas replicavam: “É um profundo erro histórico abordar desta forma (ou agora ou nunca) a questão da passagem do poder para as mãos do partido proletário. Não, o partido do proletariado crescerá e o seu programa tornar-se-á cada vez mais claro para massas cada vez mais numerosas… Nas actuais circunstâncias, tomar a iniciativa da insurreição só serviria para interromper a marcha das suas vitórias… Saibamos prevenir-nos contra esta política funesta.” (No momento presente).
Este optimismo fatalista exige um estudo atento. Não tem nada de nacional nem, com mais forte razão, de individual. A mesma tendência, observamo-las o ano passado na Alemanha, para não irmos mais longe. No fundo, sob este fatalismo expectante oculta-se a irresolução e até a incapacidade de acção, disfarçadas porém com um prognóstico consolador: pretende-se que nos tornaremos cada vez mais influentes, a nossa força nada mais fazendo do que aumentar com o decorrer do tempo. Que erro grosseiro! A força dum partido proletário só aumenta ate determinado momento, a partir do qual pode declinar: face à passividade do partido, as esperanças das massas dão lugar à desilusão, enquanto o inimigo se refaz do pânico, tirando partido dela. Assistimos a uma viragem deste género na Alemanha em Outubro de 1923. Também não estivemos muito longe disso no Outono de 1917, na Rússia. Para que se consumasse, bastaria talvez deixar passar mais algumas semanas. Lenine tinha razão: Agora ou nunca!
“Mas a questão decisiva – dizem os adversários da insurreição, esgrimindo assim o seu último e mais forte argumento – é a seguinte: será o estado de espírito dos operários e soldados da capital verdadeiramente de molde a já não verem salvação, a não ser na batalha de rua, ansiada custe o que custar? Não. Tal estado de espírito não existe… A existência dum estado de espírito combativo nas massas da população pobre da capital, incitando-as a descer à rua, seria uma garantia de que, se tomassem a iniciativa da intervenção, arrastariam na sua esteira as mais consideráveis e importantes organizações (sindicato dos empregados dos caminhos de ferro, dos correios e telégrafos, etc.), entre as quais a influência do nosso Partido é fraca. Mas como tal estado de espírito nem sequer existe nas usinas e casernas, arquitectar planos nessa base seria uma ilusão.” (No momento presente).
Estas linhas, escritas a 11 de Outubro, adquiriram importância pela sua actualidade excepcional, se nos lembrarmos de que também os camaradas alemães, dirigentes do Partido, para explicarem a retirada sem luta do ano passado, alegaram que as massas não se queriam bater. Todavia, é preciso compreender que, regra geral, é quando as massas – já na posse de uma experiência suficiente para se não lançarem à batalha despropositadamente – esperam e exigem uma direcção combativa, resoluta e inteligente, que melhor se garante a vitória insurreccional. Em Outubro de 1917, as massas operárias (pelo menos a sua elite), educadas pela intervenção de Abril, pelas jornadas de Julho e pela sublevação de Kornilov, compreendiam perfeitamente que já não se tratava de protestos expor números parciais, nem de reconhecimentos, mas da insurreição decisiva para a tomada do poder. Por conseguinte, o seu estado de espírito tornara-se mais concentrado, mais crítico e racional. A passagem da espontaneidade confiante, cheia de ilusões, a uma consciência mais critica, provoca inevitavelmente uma crise revolucionária. Esta crise progressiva no estado de espírito das massas só pode ser superada através de uma política de Partido adequada, quer dizer, acima de tudo através do desejo e verdadeira capacidade para dirigir a insurreição do proletariado. Pelo contrário, um partido que por muito tempo se consagrou a uma agitação revolucionária, arrancando pouco a pouco o proletariado à influência dos conciliadores, mas que, uma vez guindado à direcção dos acontecimentos pela confiança das massas, começa a hesitar, á procura de complicações onde não as há, tergiversando e cambaleando, tal partido, dizíamos, apesar de paralisar a actividade das massas e provocar nelas a decepção e a desorganização, condenando à morte a revolução, garante, em contrapartida, a possibilidade de alegar, depois da derrota, a falta de actividade das massas. A carta Sobre o momento presente concitava a organização nesse sentido. Felizmente, sob a direcção de Lenine, o Partido eliminou resolutamente esse estado de espírito nas esferas dirigentes e, só graças a isso, realizou vitoriosamente o golpe de Estado.
Agora que caracterizamos a essência das questões políticas referentes á preparação da revolução de Outubro, na tentativa de esclarecer o sentido profundo das divergências no nosso Partido, resta-nos examinar brevemente os momentos mais importantes da luta desencadeada no seu interior, no decurso das últimas semanas, as decisivas.
Em 10 de Outubro o C. C. adoptou a decisão de empreender a insurreição armada. Em 11, a carta Sobre o momento presente foi enviada às principais organizações do Partido. Em 18, quer dizer, uma semana antes da revolução, Kamenev publicou uma carta no Novaia Jizn. “Não só Zinoviev e eu” – declara -, “mas também uma série de camaradas, reputamos de inadmissível; de acto funesto para o proletariado e a revolução, tomar a iniciativa da insurreição armada nesta altura, com a actual correlação de forças, independentemente do Congresso dos sovietes e a alguns dias da sua convocação.” (No vaia Jizn, 18 de Outubro de 1917). Tomado o poder em 25 de Outubro, constituía-se o governo sovietista em São Petersburgo. Em 4 de Novembro, vários militantes eminentes apresentaram a sua demissão do C. C. e do Conselho dos Comissários do povo, exigindo a criação dum governo de coligação recrutado entre os partidos dos sovietes. “Caso contrário” – escreviam -“ficamos sujeitos a ter que nos resignar com um governo puramente bolchevique, mantendo-se através do exercício do terror político.” Pela mesma altura, noutro documento: “Não nos podemos responsabilizar pela funesta política praticada pelo C. C., contrária à vontade de uma grande parte do proletariado e dos soldados, que deseja o fim da efusão de sangue entre as diferentes partes da democracia, o mais rapidamente possível. Por isso nos demitimos de membros do C. C., pelo que passamos a gozar do direito de dar a nossa opinião sincera à massa dos operários e soldados, exortando-a a apoiar a divisa: “Viva um governo dos partidos sovietistas! Imediato acordo nesta base!” (O Golpe de força de Outubro, Arquivos da Revolução de 1917).
Desta feita, aqueles que se opuseram á insurreição armada e à tomada do poder, considerando-as como uma aventura, intervieram, depois da vitória insurreccional, para que se restituísse o poder aos partidos a quem o proletariado o arrancara. Por que razão devia o partido bolchevique vitorioso restituir o poder – tratava-se evidentemente duma restituição – aos mencheviques e s. -r.? Os membros da oposição respondiam:
“Consideramos necessária a criação de um tal governo, de modo a precaver qualquer derramamento de sangue, ameaça de fome, esmagamento da revolução pelos partidários de Kaledine e como garantia de convocação da Assembléia Constituinte na data fixada e realização efectiva do programa de paz adoptado pelo Congresso pan-russo dos sovietes dos deputados operários e soldados.”
Ou melhor, tratava-se de abrir caminho em direcção ao parlamentarismo burguês através da porta soviética. Se a revolução se recusasse a passar pelo pré-Parlamento, escavando no terreno de Outubro o seu leito, a tarefa que se impunha no parecer da oposição consistia em salvar a revolução da ditadura, canalizando-a para o regime burguês com a ajuda dos mencheviques e s. – r. Tratava-se, nem mais nem menos, que da liquidação de Outubro. Evidentemente que em tais condições não se podia admitir nenhum acordo.
No dia seguinte, 5 de Novembro, apareceu mais uma carta reflectindo a mesma tendência:
“Quando há marxistas que, contrariamente ao bom senso e a despeito da situação, se recusam a considerar as condições efectivas que nos ditam imperiosamente o acordo com todos os partidos socialistas, não posso ficar calado, mesmo em nome da disciplina do Partido… Não posso, em nome dessa disciplina, entregar-me ao culto da personalidade e fazer depender um acordo político com todos os partidos socialistas (que consolida as nossas reivindicações fundamentais) da participação anterior de determinada pessoa no ministério, prolongando assim, por instantes que seja, a efusão de sangue.” (Gazeta Operária, 5 de Novembro de 1917).
Lozovsky, o autor desta carta, proclama, em conclusão, a necessidade de lutar pelo Congresso do Partido, a fim de se decidir “se o P. S. – D. O. R. dos bolcheviques continuará a ser o partido marxista da classe operária ou se deverá definitivamente adoptar uma orientação que nada tem a ver com o marxismo revolucionário”.
Com efeito, a situação parecia desesperada. Não só a burguesia e os proprietários de terras, nem tão pouco a “democracia revolucionária” – na posse da qual se encontravam ainda numerosas organizações (Comité pan-russo dos empregados dos caminhos de ferro, funcionários, etc.) -condenavam publicamente o Partido pela tentativa de permanecer no poder a fim de realizar o seu programa. Também os militantes mais influentes do nosso Partido, os membros do C. C. e do Conselho dos Comissários do Povo, o condenavam. Examinada superficialmente, a situação podia parecer desesperante. Aceitar as reivindicações da oposição era o mesmo que liquidar Outubro. Nesse caso não valia a pena ter feito a revolução. Só havia uma coisa a fazer: avançar, confiando na vontade revolucionária das massas. Em 7 de Outubro, o Pravda publicou uma declaração categórica do C. C., escrita por Lenine, irradiando entusiasmo revolucionário e com fórmulas claras, simples e indiscutíveis, destinadas á massa do Partido. Este apelo dissipou definitivamente todas as dúvidas sobre a política ulterior do Partido e do seu Comité Central.
“Que vergonha para todos esses homens de pouca fé, para todos os que hesitam, que duvidam, que se deixaram assustar pela burguesia ou pelos clamores dos seus auxiliares directos ou indirectos! Nas massas dos operários e soldados petersburgueses, moscovitas e outros, não há sombra de hesitação. Como um só homem, o nosso Partido monta guarda à volta do poder sovietista, velando pelos interesses de todos os trabalhadores e, prioritariamente, pelos dos operários e camponeses pobres.” (Pravda, 20 de Novembro de 1917).
Superara-se a crise mais aguda no Partido. No entanto, a luta interior, que prosseguia na mesma linha, não se dava ainda por terminada. Mas cada vez mais diminuía a sua importância política. Num relatório apresentado por Uritsky à sessão do Comité de Petrogrado do nosso Partido, a 12 de Novembro, respeitante à convocação da Assembleia Constituinte, encontra-se um testemunho extremamente interessante:
“As divergências no nosso Partido não são de agora. Anteriormente, aquando da questão da insurreição, já o processo era o mesmo. Hoje em dia, certos camaradas consideram a Assembleia Constituinte como o coroamento da revolução. Raciocinam como pequenos burgueses, pedem que não tenhamos falta de tacto, etc., não querem que os bolcheviques, como membros da Assembleia Constituinte, controlem a sua convocação, a relação de forças, etc. Encaram as coisas dum ponto de vista formal, não compreendendo que os dados desse controle nos permitem ver o que se passa em redor da Assembleia Constituinte e, por conseguinte, determinar a nossa atitude para com ela… Estamos a lutar pelos interesses do proletariado e dos camponeses pobres; ora, alguns camaradas consideram que a revolução é burguesa, devendo terminar pela Assembleia Constituinte”.
A dissolução da Assembleia Constituinte assinalou o fim de uma importante etapa na história da Rússia e do nosso Partido. Depois de superadas as resistências internas, o Partido do proletariado não só conquistara o poder, como também o conservara.
7. A Insurreição de Outubro e a “Legalidade” Soviética
Em Setembro, durante a Conferência Democrática, Lenine exigia a insurreição, imediatamente:
“Se queremos tratar a insurreição como marxistas” – escrevia ele – “quer dizer, como uma arte, devemos, simultaneamente e sem perda de tempo, organizar um estado-maior dos destacamentos insurreccionais, repartir as nossas forças, lançar nos pontos mais importantes os regimentos fiéis, cercar o teatro Alexandra, ocupar a fortaleza Pedro-e-Paulo, deter o grande estado-maior e o governo, enviar destacamentos prontos a sacrificarem-se até ao último homem (antes isso do que permitir a penetração do inimigo nas partes centrais da cidade) contra os alunos oficiais e a “divisão selvagem”; mobilizar os operários armados, convocá-los para a suprema batalha, ocupar o telégrafo e o telefone simultaneamente, instalar na central telefónica central o nosso estado-maior insurreccional, pô-lo em ligação telefónica com todas as fábricas e regimentos, com todos os pontos em que a luta armada prossiga, etc. É evidente que tudo isto só é aproximativo. Contudo, vejo-me na obrigação de ter de provar que, actualmente, é impossível mantermo-nos fiéis ao marxismo e à revolução sem se tratar a insurreição como uma arte”.
Esta maneira de encarar as coisas pressupunha a preparação e realização da insurreição por interédio e sob a direcção do Partido, devendo a vitória ser sancionada em seguida pelo Congresso dos sovietes. O Comité Central não aceitou esta proposta. A insurreição foi canalizada na via soviética e subordinada ao 2º Congresso dos sovietes. Esta divergência exige uma explicação especial; inserir-se-á depois, naturalmente, não no quadro duma questão de princípios mas duma questão puramente técnica, embora de grande importância prática.
Já referimos como Lenine temia deixar escapar o momento da insurreição. Face às hesitações manifestadas pelas sumidades do Partido, a agitação que subordinava formalmente a insurreição à convocação do 2º Congresso parecia-lhe um inadmissível atraso, uma concessão à irresolução e aos irresolutos, uma perca de tempo, um verdadeiro crime. A partir de fins de Setembro, Lenine insiste várias vezes neste pensamento.
“Existe uma tendência, uma corrente no C. C. e entre os dirigentes do Partido.” – escrevia a 29 de Setembro – “a favor da espera pelo Congresso dos Sovietes e contra a imediata tomada do poder, contra a insurreição, imediatamente. Essa tendência, essa corrente, tem que ser combatida”. Nos começos de Outubro, Lenine declara: “É um crime contemporizar; esperar pelo Congresso dos sovietes é um formalismo infantil e absurdo, é uma traição à revolução”. Nas suas teses à conferência de Petrogrado, em 8 de Outubro, diz: “É preciso lutar contra as ilusões constitucionais e as esperanças no Congresso dos Sovietes, pondo de parte o propósito de esperar, a todo o custo, por ele”. Finalmente, em 24 de Outubro, escreve: “É claro que qualquer atraso agora na insurreição, equivale à morte”, e mais adiante: “A História não perdoará um atraso a revolucionários que, podendo vencer hoje (e vencerão certamente), se arriscam a deitar tudo a perder se esperam pelo dia de amanhã”.
Todas estas cartas, em que cada frase é forjada na bigorna da revolução, revestem um interesse excepcional para a caracterização da Lenine e a avaliação do momento. O sentimento que as inspira é a indignação face à atitude fatalista, expectante, social-democrática, menchevique, para com a revolução, considerada como uma espécie de filme sem fim. Se, regra geral, o tempo é um importante factor da política, em períodos de guerra e revolução a sua importância multiplica-se. Nada nos garante que se possa deixar para amanhã o que se pode fazer hoje. Se é possível hoje lançar a revolta, abater o inimigo e tomar o poder, amanhã talvez já não. Porém, tomar o poder é modificar o curso da história; semelhante acontecimento pode depender de um intervalo, de 24 horas? Certamente que sim. Quando se trata da insurreição armada, os acontecimentos medem-se, não ao quilometro de política mas ao metro de guerra. Em certas condições, deixar passar algumas semanas, alguns dias, às vezes um único dia, equivale a render a revolução, a capitular. Não fosse a pressão, a crítica e a desconfiança revolucionária de Lenine, o partido não chegaria provavelmente a corrigir no momento decisivo a sua linha, até porque a resistência nas altas esferas era muito forte e o estado-maior, na guerra civil como na guerra em geral, desempenha sempre um importante papel.
Mas, ao mesmo tempo, a preparação da insurreição a coberto da preparação do 2.º Congresso dos Sovietes e a palavra de ordem da defesa deste congresso, conferiam-nos evidentemente inestimáveis vantagens. Depois de termos anulado, na qualidade de Soviete de Petrogrado, a ordem de Kerensky a respeito do envio para a frente de dois terços da guarnição, instaurava-se efectivamente o estado de insurreição armada. Lenine, que na altura se encontrava ausente de Petrogrado, não avaliou o facto em toda a sua importância. Se bem me lembro, não se referiu a ele nas suas cartas da altura. Todavia, o desenlace da insurreição de 25 de Outubro pré-determinara-se já, pelo menos em três quartas partes, no momento em que, opondo-nos ao afastamento da guarnição de Petrogrado, criámos o Comité Militar Revolucionário (7 de Outubro), nomeamos os nossos comissários para todas as unidades e instituições militares e, por isso mesmo isolamos completamente, não só o estado-maior da circunscrição militar de Petrogrado, mas também o governo. Tratava-se, em suma, de uma insurreição armada (embora sem derramamento de sangue) dos regimentos de Petrogrado_ contra o Governo Provisório, dirigida pelo Comité Militar Revolucionário e sob a palavra de ordem da preparação para a defesa do 2.º Congresso dos Sovietes, que devia resolver a questão do poder. Por não lhe ser possível, do seu refúgio, conhecer a viragem radical que se produzira, não só no estado de espírito, mas também nas ligações orgânicas de toda a hierarquia militar, após o levantamento “pacífico” da guarnição da capital em meados de Outubro, Lenine aconselhou a lançar a insurreição a partir de Moscovo, onde, na sua opinião, se podia garantir a vitória sem derramamento de sangue. A partir do mome1nto em que, por ordem do Comité Militar Revolucionário, os batalhões se recusaram a abandonar a cidade, estava-se perante uma insurreição vitoriosa na capital, que os derradeiros farrapos do Estado democrático burguês mal disfarçavam. A insurreição de 25 de Outubro teve só um carácter complementar. Por isso foi tão indolor. Em Moscovo, pelo contrário, embora já se tivesse instaurado o poder do Conselho dos Comissários do Povo, a luta foi muito mais longa e sangrenta. Se tivesse começado em Moscovo, antes do golpe de força de Petrogrado, a insurreição ainda teria sido, evidentemente, de mais longa duração e o seu êxito muito duvidoso. Ora, uma derrota em Moscovo teria uma grave repercussão em Petrogrado. Se é certo que, mesmo com plano de Lenine, a vitória não se tornava impossível, a via tomada pelos acontecimentos revelou-se, contudo, muito mais econômica e vantajosa, garantindo mais completamente a vitória.
Só porque a insurreição armada, “silenciosa”, quase “legal” – pelo menos em Petrogrado – era já um facto consumado (senão em nove décimos pelo menos em três quartos), é que nos foi possível fazer coincidir mais ou menos exactamente a tomada do poder com o momento da convocação do 2.º Congresso dos Sovietes. Esta insurreição era “legal” no sentido de surgir das concessões “normais” da dualidade de poder. Já tinha acontecido muitas vezes, mesmo quando estava nas mãos dos conciliadores o soviete de Petrogrado controlar ou modificar as decisões do governo. Era uma forma de se deixar enquadrar na constituição do regime conhecido pelo nome de kerenskismo. Nós, bolcheviques, quando obtivemos a maioria no soviete de Petrogrado, nada mais fizemos do que prolongar e acentuar os métodos de dualidade do poder. Encarregamo-nos de controlar e rever a ordem de envio da guarnição para a frente. Precisamente por isso, cobrimos a insurreição efectiva da guarnição de Petrogrado com as tradições e procedimentos da dualidade do poder. Além disso, unindo, na agitação que fazíamos, a questão do poder e a convocação do 2.º Congresso dos Sovietes, desenvolvemos e aprofundamos as tradições desta dualidade, preparando o quadro da legalidade sovietista para a insurreição bolchevique em toda a Rússia. Não alimentávamos as ilusões constitucionais sovietistas das massas, porque, sob a palavra de ordem de luta pelo 2.º Congresso, conquistávamos para a nossa causa, agrupando-as, as forças do exército revolucionário. Simultaneamente e muito mais do que era de esperar, conseguimos atrair os nossos inimigos, os conciliadores, para a armadilha da legalidade sovietista. Politicamente, é sempre perigoso o recurso a ardis, sobretudo em épocas revolucionárias, pois além de ser difícil enganar o inimigo, corre-se o risco de induzir em erro as massas que nos seguem. O nosso “ardil” foi um êxito completo, não por ser uma invenção artificial de um estratega engenhoso, desejando evitar a guerra civil, mas por resultar naturalmente da decomposição do regime conciliador e das suas flagrantes contradições. O Governo Provisório queria desfazer-se da guarnição. Os soldados não queriam ir para a frente. Dando a este sentimento natural uma expressão política, um objectivo revolucionário e uma cobertura “legal”, garantimos a unidade no seio da guarnição, ligando-a estreitamente aos operários de Petrogrado. Na sua situação desesperada e caótica, os nossos inimigos tinham, pelo contrário, tendência para considerar a legalidade sovietista como moeda segura. Queriam ser enganados, pelo que lhes demos todas as possibilidades disso.
Urna luta pela legalidade sovietista prosseguia entre nós e os conciliadores. Para as massas, a fonte do poder estava nos Sovietes. Deles saíram Kerenski, Tseretelli e Skobelev. Também nós estávamos estreitamente ligados aos Sovietes, mas pela palavra de ordem fundamental: todo o poder aos Sovietes. A burguesia defendia a sua filiação na Duma do Império; os conciliadores, embora defendessem a sua nos Sovietes, pretendiam reduzir o seu papel à insignificância. Quanto a nós, provenientes dos Sovietes, o que nos interessava era transmitir-lhes o poder. Não podendo romper ainda os 1aços com os Sovietes, os conciliadores apressavam-se a estabelecer uma ponte entre a legalidade sovietista e o parlamentarismo. Convocaram, para o efeito, a Conferência Democrática, criando o pré-Parlamento. Fosse como fosse, a participação dos Sovietes no pré-Parlamento sancionava a sua acção. Os conciliadores esforçavam-se por surpreender a revolução com o engodo de legalidade sovietista, canalizando-a no parlamentarismo burguês.
Todavia também nós estávamos interessados em utilizar a legalidade sovietista. No final da Conferência Democrática, arrancamos aos conciliadores o consentimento para a convocação do 2.º Congresso dos Sovietes. Este congresso deixou-os extremamente perplexos: com efeito, não podiam opor-se à sua convocação sem romper com a legalidade sovietista; por outro lado, compreendiam perfeitamente que este congresso, pela sua composição, nada de bom lhes prometia. Precisamente por isso é que apelávamos tanto mais instantemente para que fosse realizado, enquanto senhor dos destinos do país, convidando, em toda a nossa propaganda, a apoiá-lo e protegê-lo dos inevitáveis ataques da contra-revolução. Se é certo que os conciliadores nos apanharam na ratoeira da legalidade sovietista com o pré-Parlamento saído dos Sovietes, por sua vez, através do 2.0 Congresso dos Sovietes, encurralamo-las nessa mesma legalidade. Uma coisa era organizar uma insurreição armada sob a palavra de ordem da tomada do poder pelo partido, outra, muito diferente, preparar e depois realizar a insurreição, invocando a necessidade de defender os direitos do Congresso dos Sovietes.
Assim, se bem que quiséssemos fazer coincidir a tomada do poder com o 2.º Congresso dos Sovietes, de modo nenhum tivemos a esperança ingênua de que este, por si só, pudesse resolver a questão do poder. Este fetichismo da forma sovietista era-nos completamente alheio. No domínio da política, da organização e da técnica militar, o trabalho necessário à conquista do poder ocupáva-nos activamente. Contudo, procedíamos legalmente quando nos referíamos ao próximo congresso que devia decidir a questão do poder.
Lançando a ofensiva em toda a linha, dávamos mostras de nos defender. Pelo contrário, se se quisesse defender seriamente, o Governo Provisório deveria proibir a convocação do Congresso dos sovietes, dando, por isso mesmo, pretexto à parte adverso para a insurreição armada (para o Congresso era o pretexto mais vantajoso). Além disso, não só púnhamos o Governo Provisório numa situação política desvantajosa, mas entorpecíamos também a confiança que nele muitos depositavam.
Os membros do governo acreditavam sincera-mente tratarmos do parlamentarismo sovietista, de um novo Congresso em que seria adoptada uma nova resolução sobre o poder no espírito das dos sovietes de Petrogrado e Moscovo, depois do que, referindo-se ao pré-Parlamento e à próxima Assembleia Constituinte, o governo deixara de nos venerar, colocando-nos numa situação ridícula. Era assim que os pequenos burgueses mais razoáveis pensavam, como prova incontestavelmente o testemunho de Kerensky.
Este conta nas suas memórias a discussão tempestuosa que teve com Dan e outros na noite de 24 para 25 de Outubro, a propósito da insurreição que já se desenvolvia profundamente.
“Logo de início Dan declarou-me” – conta Kerensky – “estarem muito melhor informados que eu, pelo que exagerava os acontecimentos sob a influência das comunicações do meu estado-maior reacionário. Garantiu-me depois que a resolução da maioria do soviete, desagradável “para o amor-próprio do governo”, contribuiria indiscutivelmente para uma viragem favorável no estado de espírito das massas cujo efeito se fazia sentir já, e que a influência da propaganda bolchevique “decairia agora rapidamente”.
“Por outro lado, na sua opinião, nas conversações com os chefes da maioria sovietista, os bolcheviques declararam estar prontos a “submeter-se à vontade da maioria dos sovietes”, dispondo-se a tomar “de amanhã em diante” todas as medidas para abafar a insurreição que “deflagrara contra a sua vontade e sem a sua sanção”. Em conclusão, Dan lembrou que, “de amanhã em diante” (sempre o dia de amanhã), os bolcheviques dissolveriam o seu estado-maior militar, declarando que todas as medidas por mim tomadas para reprimir a insurreição só contribuiriam para “exasperar” as massas e que a minha “intromissão” só servia para “impedir os representantes da maioria dos sovietes de conseguirem a liquidação da insurreição nas suas conversações com os bolcheviques”.
“Ora, na altura em que Dan me fazia esta notável comunicação, os destacamentos da guarda vermelha iam ocupando sucessiva-mente os edifícios governamentais. E, quase imediatamente após a saída de Dan e dos seus camaradas do Palácio de Inverno, o ministro dos Cultos, Kartachev, de volta da sessão do Governo Provisório, foi detido na Míllionnaia e conduzido ao Smolni, aonde Dan regressara para prosseguir as entrevistas com os bolcheviques. Há que reconhecer que os bolcheviques agiram então com grande energia e completa habilidade. Numa altura em que a insurreição estava no auge e as “tropas vermelhas” operavam por toda a cidade, alguns dos chefes bolcheviques especializados na tarefa esforçavam-se (não sem êxito) por lograr os representantes da “democracia revolucionária”. Esses finórios passaram toda a noite numa discussão interminável sobre as diversas fórmulas que deviam pretensamente servir de base a uma reconciliação e liquidação da insurreição. Com este método nas “conversações”, os bolcheviques ganharam um tempo extremamente precioso. As forças combativas dos s. – r. e mencheviques não foram mobilizadas a tempo. Isso é que era preciso demonstrar!” (A. Kerenski, De longe).
Com efeito, isso é que era preciso demonstrar! Como se vê, os conciliadores deixaram-se completamente apanhar na ratoeira da legalidade sovietista. A suposição de Kerenski, segundo a qual os bolcheviques especializados nesta missão induziram em erro os mencheviques e os s. – r. a respeito da próxima liquidação da insurreição, é falsa. Na realidade, só tomaram parte nas conversações os bolcheviques que verdadeiramente queriam a liquidação da insurreição e a constituição dum governo socialista com base num acordo entre os partidos. Objectivamente, porém, estes parlamentares prestaram à insurreição um certo serviço, alimentando com as suas as ilusões do inimigo. Mas só porque o Partido, apesar dos seus conselhos e avisos, com uma infatigável energia, prosseguia e consumava a insurreição, puderam prestar à revolução esse serviço.
Era preciso um excepcional concurso de circunstâncias, grandes e pequenas, para o êxito desta larga manobra envolvente. Era preciso, acima de tudo, um exército que já não quisesse bater-se. No momento da revolução, se não dispuséssemos de um exército camponês de vários milhares de homens, vencido e descontente, todo o seu desenvolvimento revolucionário assumiria um aspecto muito diferente, em particular no primeiro período, de Fevereiro a Outubro, inclusive. Só nestas condições era possível realizar exitosamente com a guarnição de Petrogrado a experiência que pré-determinava a vitória de Outubro. Não se pode pretender erigir em lei a combinação especial duma insurreição tranqüila, quase despercebida, com a defesa da legalidade sovietista contra os kornilovianos. Muito pelo contrário, pode-se afirmar com segurança que esta experiência em parte alguma jamais se repetirá da mesma forma. Porém, é necessário estudá-la cuidadosamente. Este estudo alargará o horizonte de cada revolucionário, revelando4he a diversidade dos métodos e meios susceptíveis de serem postos em acção, na condição de que se fixe um objectivo claro e se tenha uma nítida ideia da situação e da vontade de travar a luta até ao fim.
Em Moscovo a insurreição foi muito mais prolongada, causando mais vítimas. E isto porque a guarnição de Moscovo não fora submetida, como a de Petrogrado, a uma preparação revolucionária (envio dos batalhões para a frente).
A insurreição armada – repetimos – efectuou-se por duas vezes em Petrogrado: na primeira quinzena de Outubro, quando os regimentos se recusaram a cumprir as ordens do comando, submetendo-se à decisão do soviete que correspondia inteiramente ao seu estado de espírito; e em 25 de Outubro, quando já só bastava uma pequena insurreição complementar para derrubar o governo de Fevereiro. Em Moscovo a insurreição efectuou-se de uma só vez. Esta provavelmente a principal razão por que se prolongou. Mas há ainda uma outra: uma certa irresolução por parte da direção. Passou-se, por várias vezes, das operações militares às conversações, voltando-se a seguir à luta armada. Se as hesitações da direcção – sentidas perfeitamente pelas tropas – são, regra geral, politicamente prejudiciais, durante uma insurreição tornam-se mortalmente perigosas. Neste momento, muito embora tivesse já perdido confiança nas suas próprias forças, a classe dominante detinha ainda o aparelho governamental. À classe revolucionária incumbia a tarefa de conquistar o aparelho estatal, para o que lhe era necessário confiar nas suas próprias forças. A partir do momento em que arrastou os trabalhadores na esteira da insurreição, o Partido teve que retirar daí todas as conseqüências necessárias. Na insurreição, tal como na guerra – e muito menos no primeiro caso – não se podem tolerar hesitações ou perdas de tempo. Marcar passo, tergiversar, ainda que por algumas horas, restitui parcialmente aos dirigentes a confiança em si próprios, retirando aos insurrectos parte da sua certeza. Ora, esta confiança, esta certeza, determinando a correlação das forças, decide o desenlace da insurreição. Este é o ângulo do qual é necessário estudar, par e passo, o andamento das operações militares em Moscovo, na sua combinação com a direcção política.
Seria extremamente importante assinalar ainda alguns dos pontos em que a guerra civil decorreu sob condições especiais (por exemplo, quando se complexificava com o elemento nacional). Um tal estudo, baseando-se no exame minucioso dos factos, é de natureza a enriquecer consideravelmente a nossa concepção do mecanismo da guerra civil e, por isso mesmo, a facilitar a elaboração de determinados métodos, regras, processos, com um carácter suficientemente geral para puderem ser introduzidos numa espécie de estatuto da guerra civil. A verdade é que o desenlace em Petrogrado determinava numa larga medida a guerra civil na província, embora se revelando morosa em Moscovo. A revolução de Fevereiro danificara consideravelmente o antigo aparelho -herança que o Governo Provisório era incapaz de renovar e consolidar. Por conseguinte, entre Fevereiro e Outubro o aparelho estatal só funcionava pela inércia burocrática. A província habituara-se se orientar por Petrogrado: fizera-o em Fevereiro, voltando a fazê-lo em Outubro. A nossa grande vantagem estava em prepararmos o derrube dum regime que ainda não tivera tempo de se formar. A extrema instabilidade do aparelho estatal de Fevereiro e a falta de confiança em si mesmo facilitaram singularmente o nosso trabalho, mantendo a certeza das massas revolucionárias e do próprio Partido.
Na Alemanha e na Áustria, depois de 09 de Novembro de 1918, houve uma situação análoga. Nesse caso, porém, foi a própria social-democracia a colmatar as fendas do aparelho estatal, ajudando ao restabelecimento do regime burguês republicano que, apesar de ainda hoje não poder ser considerado modelo de estabilidade, conta já no entanto com seis anos de existência. Quanto aos outros países capitalistas, esses não gozarão desta vantagem, quer dizer, desta proximidade entre a revolução burguesa e a proletária. Há já muito tempo que realizaram a sua revolução de Fevereiro. É certo que na Inglaterra ha ainda bastantes sobrevivências feudais; mas seria impróprio falar de uma revolução burguesa independente na Inglaterra. Logo que tenha conquistado o poder, o proletariado inglês, com a primeira vassourada que der, livrará o país da monarquia, dos lords, etc. A revolução proletária no Ocidente ver-se-á a braços com um Estado burguês completamente formado. Q que não quer dizer que depare com um aparelho estável, dado que a própria possibilidade de insurreição proletária pressupõe uma desagregação do Estado capitalista, bastante adiantada. Se entre nós a revolução de Outubro foi uma luta contra um aparelho estatal que ainda não tivera tempo de se formar desde Fevereiro, nos outros países a insurreição terá contra si um aparelho estatal em estado de progressivo desmembramento. Regra geral é de supor que, tal como dissemos no IV Congresso da I.C., a resistência da burguesia nos antigos países capitalistas será muito mais forte do que entre nós; o proletariado a lançará a vitória mais dificilmente; em contrapartida, a conquista do poder garantir-lhe-á uma situação muito mais firme e estável do que a nossa logo após Outubro. Entre n6s, a guerra civil só se desenvolveu verdadeiramente depois da tomada do poder pelo proletariado nos principais centros urbanos e industriais, preenchendo os três primeiros anos de existência do poder sovietista. Há muitas razões para que o proletariado tenha mais dificuldade em conquistar o poder na Europa central e ocidental; em contrapartida, depois da tomada do poder, ficará com os braços muito mais livres do que nós. É evidente que estas conjunturas só podem ter um carácter condicional. O desenlace dos acontecimentos dependerá, numa larga medida, da ordem segundo a qual a revolução se processar nos diferentes países da Europa, das possibilidades de intervenção militar e da força econômica e militar da União Soviética nesse momento. Seja como for, a eventualidade muito provável de a conquista do poder vir a chocar-se com uma resistência das classes dominantes na Europa e na América, muito mais séria, muito mais implacável e reflectida do que entre nós, obriga-nos a considerar a insurreição armada e a guerra civil em geral, como uma arte.
8. Sovietes e Partido na Revolução Proletária
Os sovietes dos deputados operários surgiram entre nós em 1905 e 1917, a partir do próprio movimento, como forma de organização natural a certo nível da luta. Mas os jovens partidos europeus que aceitaram os sovietes mais ou menos como “doutrina” e “princípio”, estão sempre expostos ao perigo de uma concepção fetichista dos sovietes, considerados como factores autônomos da revolução. Com efeito, apesar da imensa vantagem que apresentam como organização de luta pelo poder, é perfeitamente possível que a insurreição se desenvolva com base noutra forma de organização (comitês de usinas, sindicatos) e os sovietes sujam apenas como órgão do poder no momento da insurreição ou mesmo depois da vitória.
Muito elucidativa, deste ponto de vista, é a luta em que Lenine se empenhou depois das jornadas de Julho contra o fetichismo sovietista. Uma vez que os sovietes s.-r. e mencheviques se tinham tornado em Julho organizações que incitavam abertamente à ofensiva os soldados e perseguiam os bolcheviques, o movimento revolucionário das massas operárias podia e devia procurar outras vias. Lenine indicou os comitês de fábrica como organização da luta pelo poder. O movimento teria muito provavelmente tomado essa direcção se não fosse a insurreição de Kornilov que obrigou os sovietes conciliadores a defender-se a si mesmos e permitiu aos bolcheviques insuflar-lhes de novo o espírito revolucionário, ligando-os estreitamente às massas por intermédio da sua esquerda, quer dizei>dos bolcheviques.
Tal como a recente experiência da Alemanha demonstrou, esta questão reveste uma enorme importância internacional. Neste país, os sovietes foram por várias vezes construídos como órgãos da insurreição, como órgãos do poder, sem o deter, O resultado foi que em 1923 o movimento das massas proletárias e semi-proletárias começou a agrupar-se à volta dos comitês de fábrica, que no fundo preenchiam as mesmas funções que incumbiam entre nós aos sovietes no período que precedeu a luta directa pelo poder. No entanto, em Agosto e Setembro, alguns camaradas propuseram proceder-se imediatamente à criação de sovietes na Alemanha. Depois de longos e ardentes debates a proposta foi repelida, e com razão. Como os comitês de fábrica já se tinham tornado efectivamente pontos de concentração das massas revolucionárias, os sovietes desempenhariam no período preparatório um papel paralelo ao dos comitês de fábrica, não sendo senão uma forma sem conteúdo. Nada mais fariam do que desviar o pensamento das tarefas materiais da insurreição (exército, polícia, centúrias, caminhos de ferro, etc.) reportando-os a uma forma de organização autônoma. Por outro lado, a criação dos sovietes como tais, antes da insurreição, teria sido como que urna proclamação de guerra sem efeito. O governo, obrigado a tolerar os comitês de fábrica por reunirem massas consideráveis à sua volta, fustigaria os primeiros sovietes enquanto órgão oficial que procurava conquistar o poder. Os comunistas ver-se-iam obrigados a assumir a defesa dos sovietes enquanto organização. A luta decisiva não visaria a tomada ou defesa de posições materiais, não se desenrolando no momento, por nós escolhido, em que a insurreição decorreria necessariamente do movimento das massas; teria, sim, rebentado por causa de uma forma de organização, os sovietes, no momento escolhido pelo inimigo. Ora, é evidente que todo o trabalho preparatório da insurreição podia ser subordinado com toda a eficiência à forma de organização dos comitês de fábrica que já tinham tido tempo de se tornar organizações de massas, continuando a aumentar e a fortificar-se, e davam carta branca ao Partido em relação à fixação da data da insurreição. Evidentemente que os sovietes, numa certa etapa, teriam que surgir. Nas condições que acabamos de indicar, é duvidoso que tivessem surgido no auge da luta como órgãos directos da insurreição, pois daí poderia resultar uma dualidade de direcção revolucionária no momento crítico. Não é preciso mudar de cavalo quando se atravessa uma torrente, diz um provérbio inglês. É possível que, depois da vitória nas principais cidades, os sovietes começassem a aparecer em todos os pontos do país. Em todo o caso, a insurreição vitoriosa provocaria necessariamente a criação dos sovietes como órgãos do poder.
Não nos esqueçamos que, entre nós, os sovietes surgiram já na etapa “democrática” da revolução, sendo então legalizados de qualquer forma; em seguida herdamo-los e utilizamo-los. O mesmo não sucederá nas revoluções proletárias do Ocidente. Nessas, os sovietes criar-se-ão, na maioria dos casos, por apelo dos comunistas, tornando-se em seguida órgãos directos da insurreição proletária. É evidentemente possível que a desorganização do aparelho estatal burguês se torne muito forte antes da conquista do poder pelo Pro1etariado o que permitiria criar sovietes como órgãos declarados da preparação da insurreição. Mas é muito pouco provável que esta seja a regra geral. Na maior parte dos casos só nos últimos dias se conseguem criar os sovietes, como órgãos directos da massa pronta a insurgir-se. Finalmente, é também muito possível que os sovietes surjam após o momento crítico da insurreição e até depois da sua vitória, como órgãos do novo poder. É preciso encarar constantemente todas estas eventualidades de modo a não cair no fetichismo de organização e não transformar os sovietes, de forma de luta flexível e vital, em “princípio” de organização, introduzido no movimento do exterior e entravando o seu desenvolvimento regular.
Declarou-se recentemente na nossa Imprensa desconhecermos por que porta entraria a revolução proletária na Inglaterra: se pelo partido comunista, se pelos sindicatos. Decidir é impossível. Esta maneira de pôr a questão, que pretende atingir a envergadura histórica, é radicalrnente falsa e muito perigosa, pois oculta a principal lição dos últimos anos. Se não houve nenhuma revolução vitoriosa no fim da juerra, foi por não haver um partido. Esta constatação aplica-se a toda a Europa. Seguindo par e passo o movimento revolucionário nos diferentes países, poder-se-á verificar a sua Justeza. No que diz respeito a Alemanha, se a massa fosse dirigida pelo Partido tal como se impunha, é claro que a revolução em 1918 e 1919 poderia vir a triunfar. Em 1917, o exemplo da Finlândia mostrou-nos que o movimento revolucionário se desenvolvia em condições excepcionalmente favoráveis, a coberto e com a ajuda militar directa da Rússia revolucionária. Mas a maioria da direcção do Partido finlandês, sendo como era social-democrata, votou à derrota a revolução. Não menos claramente sobressai esta lição da experiência da Hungria. Neste país os comunistas, aliados aos social-democratas de esquerda, embora não tendo conquistado o poder, receberam-no das mãos da burguesia apavorada. A revolução húngara, vitoriosa sem combate nem vitória, viu-se privada de uma direcção combativa desde o início, O Partido comunista fundiu-se com o Partido social-democrático, demonstrando com isso nem mesmo ser verdadeiramente comunista e por conseguinte incapaz de conservar o poder que obtivera tão facilmente, apesar do espírito combativo dos proletários húngaros. A. revolução proletária não pode triunfar sem o Partido, contra o Partido ou através dum sucedâneo dele. Este é o principal ensinamento dos últimos dez anos. É certo que os sindicatos ingleses podem tornar-se uma poderosa alavanca da revolução proletária; em certas condições e durante um determinado período, poderão até, por exemplo, substituir os Sovietes operários. Mas, sem o apoio do Partido comunista e, com mais forte razão, contra ele, não serão capazes disso; só se a propaganda comunista se tornar preponderante no seu seio é que poderão desempenhar esse papel. Pagamos demasiado caro esta lição sobre o papel e importância do Partido, para não a termos retido integralmente.
Nas revoluções burguesas, a consciência, a preparação e o método desempenharam um papel muito menos relevante do que são chamados a desempenhar e desempenharam já nas revoluções do proletariado. A força motriz da revolução burguesa foi também a massa, mas muito menos consciente e organizada do que nos nossos dias. A direcção pertencia as diferentes fracções da burguesia, que dispunha da riqueza, da instrução e da organização (municipalidades, universidades, imprensa, etc.). A monarquia burocrática defendeu-se empiricamente, agindo completamente ao acaso. A burguesia escolheu o momento favorável em que pudesse, explorando o movimento das massas populares, lançar todo o seu peso social no prato da balança e conquistar o poder. Porém, na revolução proletária, o proletariado é não só a principal força combativa, mas também, na pessoa da sua vanguarda, a força dirigente. Só o partido do proletariado pode desempenhar na revolução proletária o papel que o poderio da burguesia, a sua instrução, as suas municipalidades e universidades desempenharam na revolução burguesa. O seu papel é tanto maior quanto mais formidavelmente recrudesceu a consciência de classe do seu inimigo. Ao longo de séculos de dominação, a burguesia elaborou uma escola política incomparavelmente superior à da antiga monarquia burocrática. Se o parlamentarismo foi, até certo ponto, para o proletariado, uma escola de preparação para a revolução ainda foi mais uma escola de estratégia contra-revolucionária para a burguesia. Como prova, basta indicar que foi pelo parlamentarismo que a burguesia educou a social-democracia, hoje em dia a mais poderosa proteção da propriedade individual. Tal como as primeiras experiências provaram, a época da revolução social na Europa será uma época de batalhas, não só implacáveis, mas também calculadas, muito mais calculadas do que entre nós, em 1917.
Impõe-se-nos, por isso, abordar as questões da guerra civil e, em particular, da insurreição, de forma diferente da actual. Na esteira de Lenine, repetimos freqüentemente as palavras de Marx: “A insurreição é uma arte”. Porém, se não se estudarem os elementos essenciais da arte da guerra civil com base na vasta experiência acumulada durante os últimos anos, tal pensamento nada mais será do que uma frase vazia. É preciso declarar abertamente que a nossa indiferença pelas questões da insurreição armada é testemunho da força considerável que a tradição Social-democrática conserva no nosso seio. O partido que considerar superficialmente as questões da guerra civil na esperança de que tudo se combine por si só no momento necessário, sofrerá com toda a certeza uma derrota. É preciso estudar colectivamente e assimilar a experiência das batalhas proletárias desde 1917.
A história dos agrupamentos do Partido em 1917, esboçada mais atrás, representa igualmente uma parte essencial da experiência da guerra civil, assumindo uma importância directa para a política da Internacional Comunista. Já dissemos, mas voltamos a dizer: o estudo das nossas divergências não pode nem deve ser considerado, de maneira nenhuma, como dirigido contra os camaradas que defenderam então uma política errada. Mas, por outro lado, seria inadmissível riscar o capítulo mais importante da história do Partido, só porque todos os seus membros não andavam então a par da revolução do proletariado. O Partido pode e deve conhecer todo o seu passado para o apreciar convenientemente e pôr as coisas nos seus devidos lugares. A tradição dum partido revolucionário não é feita de reticências, mas de clareza política.
A história garantiu ao nosso Partido incomparáveis vantagens revolucionárias. Tradições de luta heróica contra o czarismo, hábitos, processos revolucionários ligados às condições de acção clandestina, elaboração teórica da experiência, revolucionária de toda a humanidade, luta contra o menchevismo, contra a corrente dos narodniki, contra o conciliacionismo, experiência da Revolução de 1905, elaboração teórica desta experiência durante os anos da contra-revolução, exame dos problemas do movimento operário internacional do ponto de vista das lições de 1905: eis o que, no conjunto, deu ao nosso Partido uma têmpera excepcional, uma superior clarividência, uma envergadura revolucionária sem paralelo. E, contudo, no momento da acção decisiva, formou-se neste partido tão bem preparado, ou melhor, nas suas esferas dirigentes, um grupo de antigos bolcheviques, revolucionários experientes, que se opôs violentamente ao golpe de força proletário e assumiu em todas as questões essenciais, durante o período mais critico da revolução – de Fevereiro de 1917 a Fevereiro de 1918 – uma posição social-democrática. Foi preciso a excepcional influência de Lenine no Partido para preservar este e a revolução das funestas conseqüências de tal estado de coisas. Eis o que nunca se deverá esquecer se quisermos que os Partidos comunistas dos outros países aprendam alguma coisa na nossa escola. A questão da selecção do pessoal dirigente tem uma importância excepcional para os Partidos da Europa Ocidental. É o que demonstra, entre outras, a experiência do fracasso de Outubro de 1923 na Alemanha. Mas esta selecção deve efectuar-se de acordo com o princípio da acção revolucionária… Dispusemos de bastantes ocasiões na Alemanha para pôr à prova o valor dos dirigentes do Partido no momento das lutas directas. Sem esta prova, todos os outros critérios não poderiam ser considerados seguros. Ao longo dos últimos anos, a França teve muito menos convulsões revolucionárias, mesmo que limitadas. Houve contudo algumas explosões ligeiras de guerra civil quando o Comitê Directivo do Partido e os dirigentes sindicais tiveram que reagir face a questões urgentes e importantes (por exemplo: o meeting sangrento de 11 de Janeiro de 1924). O estudo atento de episódios deste gênero fornece-nos dados inestimáveis que permitem apreciar o valor da direcção do Partido e a conduta dos seus chefes e diferentes órgãos. Não tomar em consideração estes dados para a selecção dos homens, é caminhar inevitavelmente para a derrota, pois que, sem direcção perspicaz, resoluta e corajosa do Partido, a vitória da revolução proletária é impossível.
Qualquer partido, mesmo o mais revolucionário, elabora inevitavelmente o seu conservadorismo de organização: caso contrário, não alcançaria a estabilidade necessária. Mas, no caso em questão, tudo depende do grau. Num partido revolucionário a dose necessária de conservadorismo deve combinar-se com uma total libertação de rotina, flexibilidade de orientação e audácia actuante. Estas qualidades verificam-se melhor nas viragens históricas. Lenine – vimo-lo mais atrás – dizia que quando sobrevinha uma mudança brusca na situação e, portanto nas tarefas, os partidos, mesmo os mais revolucionários, continuavam na maior parte dos casos a seguir a sua linha anterior, tornando-se ou ameaçando tornar-se, por isso mesmo, um travão para o desenvolvimento revolucionário. O conservadorismo do Partido, tal como a sua iniciativa revolucionária, encontram nos órgãos da direcção a sua expressão mais concentrada. Ora, os Partidos comunistas europeus têm ainda que efectuar a sua mais brusca viragem: aquela em que passarão do trabalho preparatório à tomada do poder. É a que mais qualidades exige, mais responsabilidades impõe e a mais perigosa. Deixar escapar tal momento é o maior desastre de que o Partido pode ser vitima.
A experiência das batalhas dos últimos anos na Europa e principalmente na Alemanha, considerada á luz da nossa própria experiência, mostra-nos que há duas categorias de chefes com tendência a empurrar para trás o Partido na altura de dar em frente o maior salto. Uns são levados a ver principalmente as dificuldades e os obstáculos, apreciando cada situação com o “parti pris”, inconsciente por vezes, de se furtar a acção. Para esses o marxismo torna-se um método utilizado para motivar a impossibilidade de acção revolucionária, Os mencheviques russos representavam os espécimes mais característicos deste tipo de chefes. Este não se limita, porém, ao menchevismo, revelando-se no momento mais crítico no interior do partido mais revolucionário e no seio de militantes que ocupam os postos mais elevados. Os representantes da outra categoria são agitadores superficiais. Enquanto não forem de encontro aos obstáculos, não os vêem. Quando chega o momento da acção decisiva, o hábito que têm de iludir as dificuldades reais jogando com as palavras, o seu extremo optimismo em todas as questões, transforma-se inevitavelmente em impotência e pessimismo. Para o primeiro tipo, para o revolucionário mesquinho, amolador ambulante, as dificuldades da tomada do poder nada mais são do que a acumulação e multiplicação de todas as dificuldades que está habituado a ver no caminho. Para o segundo tipo, o optimista superficial, as dificuldades da acção revolucionária surgem sempre subitamente. No período de preparação, a conduta destes dois homens é diferente: um mostra-se como que um céptico com quem é impossível firmemente contar do ponto de vista revolucionário; em contrapartida, o outro pode parecer um revolucionário ardente. Mas no momento decisivo ambos andam de mãos dadas, insurgindo-se contra a insurreição. Contudo, só na medida em que torna capaz o Partido, e sobretudo os seus órgãos dirigentes, de determinar o momento da insurreição e de a dirigir, é que todo o trabalho de preparação tem valor. Porque a tarefa do Partido comunista é conquistar o poder a fim de proceder à refundição da sociedade.
Nos últimos tempos, tem-se falado e escrito freqüentemente sobre a necessidade de bolchevização da Internacional Comunista. É uma tarefa urgente, indispensável, cuja necessidade se faz sentir mais imperiosamente ainda depois das terríveis lições que nos foram dadas na Bulgária e na Alemanha, o ano passado. O bolchevismo não é uma doutrina (quer dizer, não tão-somente uma doutrina), mas um sistema de educação revolucionária para a realização da revolução proletária. O que é bolchevisar os Partidos comunistas? É educá-los, seleccionar no seu seio pessoal dirigente que não fuja no momento da sua revolução de Outubro.
9. Duas Palavras Sobre Este Livro
A primeira fase da revolução “democrática” vai da Revolução de Fevereiro à crise de Abril e à sua solução, a 06 de Maio, com a criação dum governo de coligação no qual participavam os mencheviques e os narodnikis. Por só ter chegado a Petrogrado a 5 de Maio, na véspera da constituição do governo de coligação, o autor da presente obra não participou nos acontecimentos desta primeira fase. A primeira etapa da revolução e as suas perspectivas são assinaladas nos artigos escritos na América. Em tudo o que contêm de essencial, suponho que estes artigos estão de acordo com a análise da Revolução feita por Lenine nas suas Cartas de longe.
Logo que cheguei a Petrogrado, trabalhei em conformidade absoluta com o Comitê Central dos bolcheviques. Escusado será dizer que apoiei totalmente a teoria de Lenine sobre a conquista do poder pelo proletariado. No que diz respeito ao campesinato, não tive nem por sombras nenhuma divergência com Lenine, que terminava então a primeira etapa da sua luta contra os bolcheviques de direita, arvorando a palavra de ordem da “Ditadura democrática do proletariado e do campesinato”. Até á minha adesão formal ao partido, participei na elaboração duma série de decisões e documentos, selados pelo Partido. O único motivo que me fez diferir por três meses a minha adesão ao Partido foi o desejo de acelerar a fusão dos bolcheviques com os melhores elementos da organização intersectorialista e, de maneira geral, com os internacionalistas revolucionários. Prossegui esta política com a total aprovação de Lenine.
A redacção desta obra chamou-me a atenção para uma frase num dos meus artigos dessa época em favor da unificação, na qual fazia notar o “estreito espírito de circulo” dos bolcheviques, em matéria de organização. Certamente que pensadores profundos como Sorine não deixarão de ligar directamente esta frase às divergências sobre o 1.º parágrafo dos estatutos. Agora que reconheci, verbal e efectivamente, os meus erros em matéria de organização, não acho necessário empenhar-me numa discussão sobre o assunto. Até o leitor menos avisado, encontrará nas condições concretas do momento uma explicação muito mais simples e directa para a expressão precipitada. Muitos operários intersectorialistas mantinham-se ainda numa desconfiança muito grande a respeito da política de organização do Comitê de Petrogrado. Foi a isso que repliquei no meu artigo:
“O espírito de círculo, herança do passado, ainda existe; mas, para que diminua, os intersectorialistas devem deixar de prosseguir uma existência isolada, à parte.”
A minha “proposta” puramente polémica, no 1º Congresso dos Sovietes, de formar um governo com uma dúzia de Piechekhanov foi interpretada – penso que por Sukhanov – como manifestativa duma inclinação pessoal por Piechekhanov e, simultaneamente, como uma táctica diferente da de Lenine. Evidentemente que isso é um absurdo. Quando exigi que os Sovietes, dirigidos pelos mencheviques e socialistas-revolucionários, tomassem o poder, o nosso Partido “exigia” por isso mesmo um ministério composto por pessoas como Piechekhanov, Tchernov e Dan; qualquer deles podia servir para facilitar a transmissão do poder, da burguesia para o proletariado. Talvez Piechekhanov conhecesse um pouco mais de estatística e desse a impressão dum homem um pouco mais prático do que Tseretelli ou Tchernov. Uma dúzia de Piechekhanov seria um governo composto por vulgares representantes da democracia pequeno-burguesa, em vez da coligação. Quando as massas de São Petersburgo, dirigidas pelo Partido, arvoraram a palavra de ordem: “Abaixo os dez ministros capitalistas – exigiam por isso mesmo que os mencheviques e os narodnikis ocupassem os lugares destes. “Livrem-se dos cadetes e tomem o poder, Senhores democratas burgueses; ponham no governo doze Piechekhanov, que prometemos expulsar-vos o mais “pacificamente” possível, quando chegar a hora. E não tarda muito que soe. Não cabe falar aqui duma linha especial; a minha linha era a que Lenine por varias vezes formulara…
Kislovodsk, 15 de setembro de 1924.
(Extraído de marxists.org)