Carta aberta de Veronika Mendoza a Papa Francisco
A congressista peruana expõe a realidade e os problemas estruturais de seu país ao líder máximo da Igreja Católica.
Papa Francisco
O senhor acaba de chegar ao Peru. Esperam-no as autoridades do governo e, sobretudo, um importante setor da cidadania que escutará com atenção suas palavras. Por isso, é muito importante que o senhor esteja inteirado do que realmente ocorre em nosso país.
Conhecemos sua preocupação pela pobreza, a desigualdade e a crise ambiental, pelo cuidado que o senhor tem chamado “nossa casa comum”. Sabemos, também, que é consciente que atrás destes problemas há um sistema que os mantém e promove, e por isso o senhor tem que “enquanto que os lucros de uma minoria crescem exponencialmente, também cresce a distância que separa a maioria da prosperidade da qual gozam alguns poucos. Este desequilíbrio é resultado das ideologias que defendem a autonomia absoluta do mercado e a especulação financeira… A sede de poder e bens não tem limite. Neste sistema, que tende a devorar tudo o que se ponha frente a maiores lucros, o frágil, como o meio ambiente, é indefeso ante os interesses de um mercado endeusado”. 1
Nossos governantes lhe dirão que a pobreza caiu nos últimos anos. É verdade. Porém, não lhe dirão que foi às custas de exacerbar a dependência de uma intensa exploração e exportação de minerais, depredando e contaminando fontes de água, reprimindo os que exigiam respeito a seu meio ambiente, a seus modos de vida e a um trabalho digno. Não lhe dirão que deixaram abandonados a outros setores produtivos, como as centenas de milhares de trabalhadores do campo, como os produtores de batata que apenas há alguns dias protestaram nas ruas de nosso país porque recebem uma miséria pela venda de seus produtos. Nossos governantes não lhe dirão que estão cortando os fundos de programas sociais que atendem aos mais pobres enquanto mantêm exonerações e vantagens tributárias milionárias a grandes empresas.
O senhor deve saber também que nossa Amazônia – e muito especialmente Madre de Dios, região que visitará – está sendo destruída pela mineração do ouro, afetando um dos maiores pulmões da humanidade tem para se proteger do aquecimento global e destruindo os territórios de vida dos povos indígenas. Nossas autoridades não lhe dirão que nesta destruição convergem o desespero de gente muito pobre que busca qualquer alternativa de renda – ainda que seja às custas de sua própria saúde e do bem-estar de seus próprios filhos – com o afã de lucro de grandes empresários inescrupulosos que vendem maquinaria pesada, insumos químicos, energia e canais de comercialização às máfias que controlam esses territórios. Não lhe dirão que não fizeram nada para aliviar essa pobreza que gera desespero nem para controlar a esses grandes empresários que fazem negócio com a destruição de nossa casa comum.
Nossas autoridades lhe falarão de paz e reconciliação, mas não lhe dirão que o Sr. Kuczynski, presidente da República, acaba de liberar um ex-ditador que estava preso por ser ladrão e assassino, que nunca expressou nenhum remorso pelos crimes cometidos nem pediu perdão aos familiares das vítimas. Lhe dirão que foi um indulto “humanitário” quando a verdade é que o Ministério da Justiça não avalizou nenhum enfermidade terminal, mas que foi feito em troca de apoio político ao Sr. Kuczynski envolvido em casos de corrupção desde que ocupou cargos ministeriais em governos anteriores. Sim, lamentavelmente, o governo que hoje o recebe é um dos corruptos e insensíveis.
Por outro lado, sabemos que o senhor determinou a intervenção do Sodalicio de Vida Cristiana, instituição da Igreja Católica na qual foram cometidos horríveis crimes de violência física, psicológica e sexual contra jovens aspirantes a integrá-la. É uma decisão que saudamos, esperando que sirva para evitar que outros jovens sofram esse inferno. Mas sabemos que não reparará o dano causado. As vítimas e suas famílias merecem que se julgue e condene em consequência ao Senhor Luis Figari, denunciado por dezenas de vítimas, ao que lamentavelmente a Igreja que você preside mantém protegido em Roma.
Espero que possa escutar as vítimas e seu clamor por justiça.
Finalmente, espero que o Senhor, que sempre rechaçou o colonialismo e exclusão, possa escutar o respeitoso pedido que lhe fizeram diversos Ayllus e organizações indígenas, herdeiros e cultivadores de nossa milenar religiosidade andina, para que possa lhes restituir o acesso pleno ao Qorikancha, lugar sagrado que cinco séculos atrás lhe foi profanado e usurpado de nossos antepassados, como eles pediram, num”espaço de encontro, do diálogo entre religiões”. 2
Creio num Estado laico, na pluralidade religiosa e espiritual e, sobretudo, na igualdade, na justiça, no direito a uma vida digna para todas e todos. Por isso, e porque sei que sua voz é escutada por uma parte importante do povo peruano, lhe peço que essa voz não cale a depredação da natureza nem a desigualdade em nosso país, que suas voz não avalize indultos imorais nem impunidade, e que se levante em defesa das vítimas de abuso sexual dentro de sua própria Igreja, das vítimas da ditadura a quem acabam de arrebatar a pouca justiça que tanto lhes havia custado conseguir, a voz das vítimas de um sistema que exclui, corrompe e depreda. Que ressoem as vozes do amos e da justiça.
Respeitosamente
Verónika Mendoza
Cusco, 17 de janeiro de 2018
1 Evangelii Gaudium
2 Carta del Hatun Ayllu Qorikancha dirigida ao Papa Francisco. Cusco, Qhapaq Raymi, dezembro de 2017.